CHINA EM FOCO

Como é trabalhar na China — por Rafael Henrique Zerbetto

Jornalista relata diferenças na cultura de trabalho entre Brasil e China

Mina de carvão em Shanxi usa realidade virtual para simular situações críticas no treinamento dos trabalhadores Créditos: Como é trabalhar na China — por Rafael Henrique Zerbetto
Agricultoras produzem verduras em estufa nos arredores de Nanquim Créditos: Rafael Henrique Zerbetto
Operários na linha de montagem de caminhões em fábrica em Urumqi Créditos: Rafael Henrique Zerbetto
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O dia 1° de maio, Dia do Trabalhador, é um dos feriados mais longos da China — perdendo apenas para o Dia da Pátria (1° de outubro) e o Ano Novo Chinês (que segue o calendário tradicional do país). Isso diz muito a respeito da importância dada pelo país ao trabalhador.

Mas no imaginário dos estrangeiros, a China é vista com desconfiança quando o assunto é trabalho: há desde quem associe o país a uma visão romantizada do socialismo até quem acredite em trabalho forçado e jornadas exaustivas. Afinal de contas, quem tem razão?

Evolução histórica

Primeiramente, a relação do chinês com o trabalho é muito diferente daquela que vemos no Brasil, por conta de uma diversidade de fatores. Um deles é que, ao longo de 5.000 anos, à exceção do “Século da Humilhação”, a economia chinesa desenvolveu-se de forma autônoma, servindo aos interesses do país, ao contrário do Brasil, cuja base econômica aida hoje é pautada por interesses estrangeiros.

Só isso já faz uma enorme diferença na cultura do trabalho. No Brasil, o elevador de serviço tornou-se símbolo de um modelo de relações de trabalho forjado na escravidão, que causa desprezo pelo trabalho braçal. Fora isso, a colonização do Brasil sempre foi profundamente marcada pelos aventureiros que querem colher as frutas sem plantar a árvore, e que ainda hoje são muitos.

Já a China desenvolveu-se desde a antiguidade como uma civilização marcada pelas trocas comerciais entre suas diferentes regiões, que estimularam intercâmbios e fortalecimento de laços afetivos, forjando um povo unido, profundamente vinculado a sua terra e sua cultura.

Poderíamos, ainda, comparar as bases filosóficas e religiosas da cultura ocidental, enxertada no continente americano, com aquelas da civilização chinesa, mas isso daria uma tese. Vou direto ao ponto: os chineses são disciplinados e focados nas questões práticas da vida, e a amargura da experiência histórica lhes ensinou a ser resilientes e trabalhar duro.

Em seu livro A Estrela Vermelha sobre a China, o jornalista Edgar Snow narra em pormenores sua visita a Yan’an em 1936 e tudo o que ele viu e ouviu por lá. O livro em português foi publicado no Brasil há poucos anos pela Expressão Popular, mas eu o li numa edição bilíngue, em chinês e inglês, que comprei aqui na China.

O livro apresenta as condições de vida extremamente ruins dos trabalhadores chineses antes do socialismo, e esse fator foi determinante para a revolução chinesa.

A situação dos camponeses era especialmente precária: sem proteção do Estado, eram extorquidos pelos donos das terras, que ficavam com quase tudo o que eles produziam. No desespero para pagar dívidas, muitos haviam vendido os móveis de sua casa, e depois dele vendiam a porta, a janela, qualquer coisa que pudessem.

Agricultoras produzem verduras em estufa nos arredores de Nanquim

Já nos territórios controlados pelos comunistas, a realidade era outra: trabalho infantil e casamento compulsório eram proibidos, a igualdade entre homens e mulheres era garantida, a terra era distribuída entre os trabalhadores e havia um forte espírito de união e cooperação. Em cada vila que os comunistas chegavam, construíam uma escola para alfabetizar gratuitamente a população.

A República Popular da China herdou muito da experiência anterior de governança do Partido Comunista da China (PCCh), mas também precisou adaptar as leis aos novos desafios que surgiam. A Reforma e Abertura é parte importante desse processo e ainda hoje marca profundamente a maneira como o mundo vê a questão trabalhista na China.

Sendo uma resposta à necessidade prática do país de gerar empregos e renda para a população e se atualizar tecnologicamente, a China reformou sua economia e abriu-se ao investimento estrangeiro. O que o país tinha para oferecer ao investidor estrangeiro naquela época eram mão-de-obra barata e baixo custo de produção, exigindo, em contrapartida, a transferência tecnológica.

As condições de trabalho nas fábricas eram, muitas vezes, inferiores às encontradas em países como o Brasil, naquela época mais avançado tecnologicamente, com mão-de-obra mais qualificada e uma forte organização sindical, mas o desafio mais urgente era gerar empregos para que as famílias chinesas pudessem custear seus gastos. Ao analisar a Reforma e Abertura sob esse ângulo, entendemos que a vida do trabalhador chinês, de um modo geral, melhorou.

Resolvido o problema mais urgente, a China nvestiu pesado em educação para formar uma mão-de-obra cada vez mais capacitada e melhor remunerada, agregando valor à sua produção. Resultado: as mesmas empresas chinesas que há duas décadas fabricavam celulares para as marcas estrangeiras, hoje crescem no mercado internacional com marcas e tecnologias próprias.

Minha experiência trabalhando na China

Boa parte das críticas que fazem à China nos dias de hoje, especialmente nas redes sociais estrangeiras, se baseiam na realidade que o país vivia nos anos 80, no início da Reforma e Abertura. Desde que cheguei à China, tenho visitado empresas de diferentes setores nos mais diversos lugares, de minas e fazendas em lugares remotos às modernas fábricas nas grandes cidades.

O que reparei nessas visitas é o alto grau de automação das fábricas chinesas, hoje em dia muitos avançadas em Internet das Coisas e aplicação industrial da internet 5G. Muitos trabalhos que expunham o trabalhador a riscos hoje são feitos por máquinas, e cada vez mais trabalhadores ficam atrás do computador monitorando o trabalho das máquinas.

Operários na linha de montagem de caminhões em fábrica em Urumqi

Já visitei, também, fábricas com trabalhadores nas linhas de produção: vi costureiras fazendo roupas manualmente, visitei linhas de montagem de caminhões e eletrodomésticos e vi os operários encaixando as peças para montar o produto final, estive em uma mina de carvão e vi trabalhadores operando as máquinas, enquanto em outro setor testavam máquinas autônomas. Em nenhum desses lugares notei condições de trabalho inadequadas.

As leis chinesas constumam restringir o trabalho nos dias muito quentes. Quando há temperaturas extremas o trabalho ao ar livre deve ser interrompido, à exceção dos serviços essenciais, sendo pago um adicional aos trabalhadores. Medidas assim são típicas de uma legislação trabalhista avançada.

E vale a pena falar do meu próprio trabalho. No prédio onde trabalho são oferecidos café da manhã, almoço e jantar. Há, inclusive, a opção de comida halal para os trabalhadores muçulmanos. No local onde trabalho também há um café e um pequeno jardim onde florescem magnólias, peônias e rosas, entre outras flores.

As condições de trabalho são boas, não tenho do que me queixar. Vez ou outra organizam atividades esportivas ou culturais: tem cursos de idiomas, sessões de cinema e outras atividades gratuitas durante o horário de almoço. Eu costumo fazer as aulas de chinês para estrangeiros, em uma sala que tem café à vontade para a gente tomar.

Um inglês que trabalhava no mesmo prédio que eu foi trabalhar na CGTN. Ano passado fui lá gravar um programa e ele estava na produção, me levou para conhecer o prédio: almoçamos no refeitório, comida boa, e ao lado tem uma academia para os funcionários usarem. Depois fomos para o café no topo do prédio, de onde se tem uma vista incrível da cidade.

Daí caímos na questão da jornada de trabalho: ele me contou que na CGTN deixam ele trabalhar em casa quando a presença no estúdio não é necessária. Antes da gravação do programa há muitas urgências e a carga de trabalho é pesada, mas depois da gravação ele tem bastante tempo livre, que compensa o trabalho extra dos dias anteriores.

Eu entro no trabalho às 9 da manhã e saio às 5 da tarde, com duas horas de intervalo para almoço. Costumo ficar até um pouco mais tarde quando estou terminando de escrever algum artigo ou tenho algo urgente, ou quando preciso fazer hora antes de jantar com algum amigo, o que vez ou outra acontece.

Quando viajo a trabalho, costumam pedir publicações com urgência. Aí é uma rotina mais pesada, de passar vários dias em viagem, coletando informações o dia todo e, no pouco tempo disponível no hotel, preparar alguma coisa para publicar. Mesmo assim, em algumas viagens a trabalho que fiz consegui arranjar tempo para reencontrar amigos, cheguei até mesmo a ir ao show do Ivan Lins em Xangai, no ano passado, quando eu estava na cidade cobrindo a CIIE. Enfim, viajar cansa, mas vale a pena.

E os operários da fábrica da BYD no Brasil?

No fim do ano passado, a imprensa brasileira deu destaque à situação dos operários chineses que estava trabalhando na construção da fábrica da BYD em Camaçari, na Bahia. Houve todo tipo de crítica a esse caso e muita gente tentou usá-lo para denegrir a imagem da China. Mas o buraco é mais embaixo.

No que diz respeito às condições de trabalho, as autoridades brasileiras apontaram problemas com relação às condições de moradia e alimentação desses trabalhadores, além de jornadas exaustivas, em desacordo com a legislação brasileira.

Concordo que, do ponto de vista da lei brasileira, as irregularidades existiram, e sempre defendi que empresas atuando no exterior precisam observar as leis do país em que atuam. Isso é inegociável. Mas, para além dessa questão, como um chinês vê isso?

Pequim tem obras para todo lado. Eu mesmo passei a maior parte dos meus anos aqui vendo as obras da expansão da linha 16 do metrô, perto da minha casa, e sempre notei que os trabalhadores dividem alojamento, morando em contêineres apertados, vivendo com pouco conforto.

O que falta esclarecer é que essa é uma moradia temporária para trabalhadores migrantes que vão para as grandes cidades em busca de dinheiro. Eles passam alguns anos nessa situação difícil, mas fazem isso porque o pagamento é bom. Depois desses anos trabalhando longe da terra natal, eles voltam com bastante dinheiro, que lhes permite, por exemplo, dar entrada num imóvel.

Disseram-me que quem trabalha em obras no exterior ganha ainda mais dinheiro, alguns conseguem até comprar casa após retornar a sua terra natal. Trata-se de um sacrifício temporário que é depois recompensado com uma vida mais confortável.

Por isso muitos chineses se irritaram quando o Brasil apontou a situação dos operários chineses no Brasil como “análoga à escravidão”. Quando um brasileiro é resgatado de um trabalho assim, sabemos que a ideia do patrão era explorá-lo ao máximo e depois se desfazer dele, deixando-o desamparado, o que justifica a preocupação das autoridades brasileiras.

Mas na China essa condição é encarada como provisória, um sacrifício de poucos anos que permite a esse trabalhador fazer um pé de meia para construir seu futuro. A partir desse ponto de vista, os trabalhadores não estão em situação análoga à escravidão, pois não serão descartados, ao contrário, terão uma vida mais digna depois de alguns anos.

Diferenças culturais

Como apontei diversas vezes, Brasil e China têm uma diferença muito grande quando o assunto é a cultura do trabalho. Outro bom exemplo disso é o direito do trabalhador brasileiro à desconexão: fora do expediente, o empregado não deve ser incomodado pelos patrões com assuntos de trabalho, salvo casos excepcionais.

Na China prevalece outra cultura, a gente recebe mensagens a qualquer momento pelo WeChat, até mesmo nos feriados e fins de semana. Há quem se incomode com isso, mas no meu caso pessoal nunca constatei abusos, sou contactado vez ou outra e tudo o que preciso fazer é responder uma pergunta ou preencher um formulário. Geralmente é assunto do meu interesse.

Mina de carvão em Shanxi usa realidade virtual para simular situações críticas no treinamento dos trabalhadores

Mas nem todo mundo consegue se acostumar. Conheci uma engenheira italiana que morou na China durante um ano, trabalhando para empresa chinesa, e irritou-se por ser incomodada em seus dias de folga. Mas o desconforto dela tinha motivo: chegaram a solicitar sua presença na empresa, fazendo-a cancelar na última hora os planos de sair com amigos.

Resumindo, cada pessoa tem suas prioridades, seus sins e seus nãos. E fora isso cada povo tem suas particularidades culturais. Morar em outro país é sempre um desafio e a adaptação não é fácil. No fim das contas, avaliações e percepções a respeito da vida e do trabalho no exterior podem dizer mais sobre você que sobre o lugar onde você viveu e trabalhou.

Para mim, vir para a China foi o melhor que podia ter me acontecido e sou grato ao país pelas valiosas experiências e oportunidades que tive aqui e quero dividir com meus leitores.

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