Chile: O que esperar do governo de Gabriel Boric?

O governo de Boric, forjado na mobilização social, terá que lidar com os desafios da institucionalidade e de um país regido pelo modelo neoliberal

Gabriel Boric em comício realizado após a vitória eleitoral | Foto: Fernando Ramírez/Divulgação
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"A esperança venceu o medo", disse Gabriel Boric em discurso feito logo após ser eleito presidente do Chile, no domingo (19). Boric conseguiu vencer o ultradireitista José Antonio Kast, o "Bolsonaro chileno", com a maior votação já conquistada por um presidente na história do país, 4,6 milhões de votos, e a segunda maior margem percentual desde a redemocratização.

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O contundente resultado das urnas não diminui as dificuldades que o presidente eleito terá de enfrentar em um país que vive uma tensa crise social provocada pelo desgaste do modelo neoliberal imposto na ditadura de Augusto Pinochet. Entre os principais desafios estão o enfrentamento das consequência da pandemia de Covid-19, a crise no sistema de aposentadorias, o desemprego de mais de 8% (que ultrapassou os 10 dígitos em 2020) e, é claro, a reforma da Constituição que tem sido conduzida por uma Assembleia Constituinte.

Além disso, o presidente terá uma difícil missão de dialogar com um Congresso bastante dividido, onde a direita tradicional conseguiu manter uma grande bancada, apesar do fracasso do governo de Sebastián Piñera em produzir um sucessor.

Boric promete mudanças profundas de forma gradual no Chile

No discurso feito após o resultado, Boric prometeu avançar com mudanças estruturais "sem deixar ninguém para trás". "Mas vamos fazê-lo com responsabilidade”, disse, sustentando que “avanços substantivos exigem amplos acordos".

Esse avanço gradual, com cautela, já estava presente em seu plano de governo. “Para que sejam sólidos, o progresso deve ser fruto de amplos acordos. E que, para durar, estes devem ser sempre feitos passo a passo, de modo gradual, para não inviabilizar ou pôr em risco o que cada família conquistou com seu esforço”, afirmou.

"Nesta noite de triunfo, reitero o compromisso que assumimos ao longo da campanha: vamos ampliar os direitos sociais e o faremos com responsabilidade fiscal, vamos fazê-lo cuidando da nossa macroeconomia. Vamos fazê-lo bem e isso permitirá melhorar as aposentadorias e a saúde sem que tenhamos retrocessos no futuro", disse ainda.

Governo marcado pelas lutas sociais dos últimos anos

O presidente eleito fez questão de reforçar que é produto de um processo histórico de lutas, em especial das que tiveram seu início em 2006, contaram com a participação intensa de Boric em 2011 e explodiram em uma enorme hecatombe social em 2019.

“Eu sei que a história não começa conosco. Sinto-me herdeiro de uma longa trajetória histórica, a daqueles que, de diferentes posições, incansavelmente buscaram a justiça social, a expansão da democracia, a defesa dos direitos humanos, a proteção das liberdades. Esta é a minha família ampliada, que gostaria de ver reunida nesta fase que agora iniciamos ”, afirmou o presidente eleito.

Durante a jornada de 2011, Boric era presidente do diretório de estudantes da Universidade do Chile e lutou por educação pública, gratuita e de qualidade. As faíscas desse momento contribuíram para explosão de uma jornada de protestos gigantesca em 2019 contra o neoliberalismo e a herança pinochetista, o que expôs as feridas de um país que foi vítima de uma das ditaduras mais cruéis da América Latina.

Em 25 de outubro de 2019, estima-se que 3 milhões pessoas foram às ruas no país de cerca de 19 milhões de habitantes.

As mobilizações de 2019 provocaram a construção de uma Assembleia Constituinte que vai substituir a Constituição de Pinochet. Garantir a continuidade dos trabalhos desse instrumento é também um dos desafios do novo presidente. Boric, inclusive, visitou a presidenta do órgão, Elisa Loncón, nesta terça-feira (21).

Movimentos sociais e institucionalidade

Os movimentos sociais devem ter atuação importante na nova gestão. Em discurso, Boric fez questão de saudar a lutas das mulheres, da população LGBTQIA+ e dos povos indígenas e apontar que terão protagonismo no governo. A participação popular e o fortalecimento da democracia devem ser marcas da gestão da coalizão Aprovo Dignidade, formada pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista.

Para a cientista política Talita Tanscheit, pesquisadora do Observatório Político Sul-Americano (OPSA), Boric precisará encontrar um equilíbrio entre as reivindicações dos movimentos sociais e a institucionalidae. "A capacidade de negociação política com o Congresso é um grande desafio, assim como não permitir o rompimento dos movimentos sociais com o que representou essa candidatura do Boric", afirmou durante o Fórum Global desta terça-feira (21).

Sabrina Aquino, militante feminista que integra a Comissão de Relações Internacionais do partido Convergencia Social, também apontou a necessidade de diálogo para implementar o programa de governo. "O governo do Boric vai ser um governo de transição. Falamos muito de um processo de transformações sociais, mas é importante apontar que houve uma renovação do Congresso e que essa renovação não foi favorável nem para a esquerda, nem para a direita, há um equilíbrio de forças", declarou.

"Boric ainda vai governar com a Constituição de 1980. Nós não estamos em um processo para levar de fato ao fim do neoliberalismo no Chile, ainda estamos sob essa Constituição. A gente tem que ser muito transparente: estamos fazendo um esforço gigantesco para essa transição", completou. Aquino comentava sobre uma declaração de Boric de quando ele ainda era candidato de que o Chile será a "tumba do neoliberalismo".

Além de Tanscheit e Aquino, participaram do Fórum Global os jornalistas Victor Farinelli e Rogério Thomaz Jr., que é colunista do programa e lançou um financiamento coletivo para uma livro-reportagem justamente sobre o Chile que Gabriel Boric terá que enfrentar. Confira aqui.

Assista ao Fórum Global, a partir de 1:28:00:

https://www.youtube.com/watch?v=17Dve-aN7iw