CHINA EM FOCO

Brasil-China: primeira missão diplomática brasileira foi realizada no século 19

Livro escrito por brasileiros conta a aventura da primeira volta ao mundo por um navio da Marinha do Brasil com destino ao país asiático e acaba de ser lançado em mandarim para o público chinês

Mapa da circum-navegação feita pela corveta Vital de Oliveira..Mapa da circum-navegação feita pela corveta Vital de Oliveira, expedição que realizou a primeira missão diplomática brasileira à China e passou por 14 países. Créditos: Acervo cartográfico da Fundação Biblioteca Nacional
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Este ano, Brasil e China celebram 50 anos de relações diplomáticas. Mas os laços entre os dois países remontam ao século 19. Entre 1879 e 1883, a Marinha brasileira realizou a primeira volta ao mundo com um navio e tripulação nacionais, um feito arriscado que também marcou a primeira missão diplomática ao país asiático.

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Este episódio histórico foi detalhado no livro "Primeira Circum-Navegação Brasileira e Primeira Missão do Brasil à China (1879)", de Marli Cristina Scomazzon e Jeff Franco. Os autores realizaram pesquisas em arquivos nacionais e internacionais para resgatar essa narrativa. A obra foi publicada pela Dois Por Quatro Editora, de Florianópolis (SC).

Reprodução Dois Por Quatro Editora

Agora, o livro foi traduzido para o mandarim e lançado na China, como relata da jornalista chinesa Isabela Shi, da Rádio China Internacional (CRI, da sigla em inglês), pelas redes sociais.

Missão pioneira

Marinha do Brasil - Corveta Vital de Oliveira

A corveta Vital de Oliveira, sob o comando do Capitão de Fragata Júlio César de Noronha, partiu do Rio de Janeiro em 26 de março de 1879, com uma tripulação de 197 homens, incluindo oficiais, marinheiros, foguistas e soldados navais.

A jornada, que durou 430 dias, dos quais 268 foram de navegação e 162 em portos, enfrentou desafios significativos. A tripulação sofreu com doenças como o beribéri, resultando em mortes, deserções e hospitalizações que impediram alguns de retornar com a guarnição.

Biblioteca Nacional - Registro da volta ao mundo da Marinha brasileira

Além da façanha marítima, a expedição carregava a primeira missão diplomática brasileira à China, com o objetivo de negociar a imigração de trabalhadores chineses para o Brasil. 

Biblioteca Nacional - Dom Pedro II, em litogravura, publicada no Chen Pao, conhecido pelo título inglês Shangai News, um dos principais periódicos do Império Chinês e Artur Silveira Motta (1843-1914), Barão do Jaceguai, líder da missão junto com Eduardo Callado Motta

Liderada pelo diplomata Eduardo Callado e pelo Contra-Almirante Arthur Silveira da Motta, futuro Barão de Jaceguai, a missão enfrentou controvérsias tanto no Brasil quanto internacionalmente.

A embarcação foi projetada pelo engenheiro naval Napoleão João Baptista Level e construída no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, sendo lançada ao mar em 21 de março de 1867, inicialmente com o nome de "Guanabara". Posteriormente, foi rebatizada em homenagem ao Capitão-Tenente Vital de Oliveira, morto em combate durante a Guerra do Paraguai.

A viagem incluiu escalas em cidades de 14 países: Lisboa, em Portugal; Gibraltar, território ultramarino britânico; Toulon, na França; Malta; Port Said, Ismaília e Suez, no Egito; Aden, no Iêmen; Colombo, no Sri Lanka; Singapura; Hong Kong e Macau, na China; Nagasak e Yokohama, no Japão; São Francisco, nos Estados Unidos; Acapulco, no México; Valparaíso, Port Otway e Punta Arenas, no Chile; e Montevidéu, no Uruguai.

A expedição permitiu contatos diplomáticos e comerciais. Ao retornar ao Brasil, a expedição trouxe conhecimentos geográficos e culturais valiosos, além de reforçar a presença brasileira no cenário internacional.

Em busca de mão de obra

A primeira volta ao mundo pela Marinha do Brasil representa um marco de coragem e diplomacia e se destaca como uma das grandes realizações navais brasileiras no século 19.

O objetivo dessa audaciosa missão diplomática brasileira à China era estabelecer um tratado de amizade, comércio e navegação, além de negociar a imigração de trabalhadores chineses para o Brasil como alternativa à mão de obra escravizada. No entanto, os resultados dessa iniciativa foram limitados.

O governo chinês mostrou-se reticente em permitir a emigração em massa de seus cidadãos, especialmente para países onde poderiam ser submetidos a condições análogas à escravidão. Essa postura foi influenciada por experiências negativas de trabalhadores chineses em outras nações e pela preocupação com a imagem internacional da China.

No Brasil, a missão enfrentou resistência significativa. Figuras proeminentes, como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, criticaram a iniciativa sob o argumento que a importação de trabalhadores chineses poderia perpetuar práticas de exploração e comprometer os esforços abolicionistas. Essa oposição refletia um debate mais amplo na sociedade brasileira sobre a transição do trabalho escravo para formas livres de trabalho.

Embora a missão tenha representado um esforço pioneiro de diplomacia brasileira na Ásia, seus objetivos principais não foram alcançados. As negociações não resultaram em acordos concretos, e a imigração chinesa em larga escala para o Brasil não se materializou naquele período. A missão, no entanto, contribuiu para o início de um entendimento mais profundo da cultura e sociedade chinesas por parte do Brasil, lançando as bases para futuras interações entre os dois países.

Cenário político da China

O cenário político da China no período entre 1879 e 1881, durante a missão diplomática brasileira, era marcado pela crise interna e pela pressão de potências estrangeiras no que ficou conhecido como a "Era das Desigualdades". Esse período, também chamado de Dinastia Qing Tardia, foi caracterizado pelos seguintes elementos:

Declínio da Dinastia Qing (1644–1912)

  • Corrupção e ineficiência: A corte Qing enfrentava dificuldades para governar um vasto território, com altos níveis de corrupção e incapacidade administrativa.
     
  • Tensões sociais: A desigualdade econômica e os altos tributos impostos sobre a população camponesa alimentavam descontentamento e rebeliões locais.
     
  • Movimentos de reforma: Tentativas de modernização, como o movimento de "Auto-Fortalecimento", buscaram adotar tecnologias e práticas ocidentais para fortalecer o poder militar e econômico da China. No entanto, essas iniciativas obtiveram resultados limitados.

Impacto das Guerras do Ópio e Tratados Desiguais

  • Após as Guerras do Ópio (1839–1842 e 1856–1860), a China foi forçada a assinar uma série de tratados desiguais com potências ocidentais, incluindo o Reino Unido, França e Estados Unidos.
     
  • Esses tratados abriram portos chineses ao comércio estrangeiro, concederam extraterritorialidade aos cidadãos ocidentais e permitiram a colonização de territórios, como Hong Kong.

Interferência Estrangeira e a Questão dos Trabalhadores Chineses

  • Potências ocidentais estavam recrutando trabalhadores chineses para atuar como mão de obra barata em colônias na Ásia, América Latina e Estados Unidos. Essas condições, muitas vezes degradantes, deram origem à política chinesa de restringir a emigração.
     
  • O governo Qing temia que a emigração em massa prejudicasse sua imagem e compromissos com as potências ocidentais, especialmente considerando as críticas internacionais às condições enfrentadas pelos trabalhadores chineses, conhecidos como "coolies".

Relações Internacionais e Diplomacia

A China, embora enfraquecida, tentava manter sua soberania diante das demandas das potências estrangeiras. A recusa em facilitar a emigração para o Brasil, por exemplo, refletia o receio de que trabalhadores chineses fossem submetidos a condições análogas à escravidão, prejudicando ainda mais a imagem do país no cenário internacional.

Nesse contexto, a missão diplomática brasileira encontrou uma China politicamente fragilizada, mas ainda cautelosa em proteger seus interesses e preservar sua população. O período foi crucial para a transição da China de uma monarquia imperial tradicional para os movimentos de modernização e, eventualmente, para a Revolução de 1911, que derrubaria a Dinastia Qing.

Cenário político no Brasil

Entre os anos de 1879 e 1881, o Brasil viveu um período de intensos debates políticos e sociais durante o reinado de Dom Pedro II. A abolição da escravatura começava a ganhar espaço nas discussões, enquanto o país experimentava suas primeiras iniciativas de imigração como alternativa à mão de obra escravizada, evidenciando uma tentativa de modernizar a economia.

No cenário internacional, o envio de uma missão diplomática à China destacou a busca do Império por alternativas para o suprimento de mão de obra, ao mesmo tempo que simbolizava os esforços do Brasil em consolidar sua presença no panorama global.

Internamente, no entanto, as contradições sociais e políticas expuseram os limites de um modelo econômico ainda profundamente atrelado à escravidão, demonstrando os desafios enfrentados pelas elites para alinhar o país aos ventos da modernidade.

Contexto Político

  • Monarquia Constitucional: O Brasil vivia sob uma monarquia constitucional parlamentarista. O poder era dividido entre o imperador, que exercia o Poder Moderador, e os poderes Legislativo e Executivo, liderados por políticos das elites agrárias.
     
  • Gabinetes instáveis: O período foi marcado por frequentes mudanças nos gabinetes ministeriais, devido às disputas entre os partidos Liberal e Conservador, que dominavam a política nacional em um revezamento conhecido como "política do café com leite".

Questão escravista

  • Escravidão em debate: A abolição da escravidão era um dos temas centrais. Em 1871, a Lei do Ventre Livre havia sido aprovada, declarando livres os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir daquela data, mas o sistema escravista ainda era amplamente defendido pelas elites econômicas.
     
  • Busca por alternativas: A imigração de trabalhadores europeus e asiáticos foi proposta como alternativa à mão de obra escravizada, especialmente para atender às crescentes demandas das fazendas de café. A missão diplomática brasileira à China reflete essa tentativa de diversificar a força de trabalho.

Políticas de imigração

  • Polêmica da imigração chinesa: A ideia de trazer trabalhadores chineses gerou debates acalorados. Abolicionistas, como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, criticavam a iniciativa por temerem que ela perpetuasse práticas de exploração laboral.
     
  • Imigrantes europeus: Paralelamente, o governo incentivava a vinda de imigrantes europeus, especialmente italianos, para trabalhar em plantações de café no Sudeste.

Modernização econômica

  • Crescimento do café: O café consolidava-se como o principal produto de exportação do Brasil, estimulando investimentos em infraestrutura, como ferrovias e portos.
     
  • Expansão das exportações: Além do café, o país também exportava açúcar, algodão e borracha, o que gerava interesse por acordos comerciais internacionais.

Relações exteriores

  • Projeção internacional: O governo imperial buscava aumentar sua presença internacional, como demonstrado pela missão diplomática à China.
     
  • Esforços diplomáticos: O Brasil começava a estabelecer tratados de comércio e navegação com outros países, buscando consolidar sua posição no cenário global.

Movimento político e social

  • Surgimento de Movimentos Abolicionistas: Associações abolicionistas começaram a se organizar nas grandes cidades, impulsionando campanhas por reformas mais amplas.
     
  • Início do Debate Republicano: Embora ainda restrito, o movimento republicano ganhava força entre intelectuais e setores da classe média urbana, questionando a viabilidade da monarquia como modelo político.

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