Para compreender como um país que há poucas décadas convivia com a pobreza extrema se tornou a segunda maior economia do planeta, é preciso entender a relação singular que a China mantém com o tempo — um tempo que não se mede em mandatos ou décadas, mas em séculos e gerações.
Em março de 2019, poucos dias após o encerramento da Assembleia Nacional Popular, o presidente chinês, Xi Jinping, viajou a Roma, na Itália, onde, em encontro com o então primeiro-ministro Giuseppe Conte, expressou uma ideia que sintetiza o modo chinês de pensar o desenvolvimento:
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“Nosso entendimento de tempo é medido em séculos e milênios.”
A frase reflete uma filosofia de Estado profundamente histórica, que transcende a lógica imediatista da política contemporânea. Enquanto disputas partidárias e interesses eleitorais de curto prazo orientam boa parte das decisões no Ocidente, as lideranças chinesas constroem seus projetos com base em horizontes civilizacionais, nos quais o renascimento nacional e o progresso humano são concebidos como processos de longa duração.
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O caso de Xiamen: um laboratório do tempo
Essa percepção ganhou forma concreta na cidade portuária de Xiamen, na província de Fujian, no sudeste do país. Em 1985, o local simbolizava as contradições de uma China em transição.
Designada como Zona Econômica Especial em 1980, Xiamen se tornara um dos laboratórios das reformas e da abertura lançadas por Deng Xiaoping em 1978. Pulsava com o entusiasmo de um país que ensaiava seus primeiros passos rumo à economia global, mas ainda guardava a simplicidade de um porto modesto, sustentado por apenas dois guindastes envelhecidos.
Nesse contexto, Xi Jinping, então com 32 anos, assumiu o cargo de vice-prefeito. Cercado por debates sobre o rumo das reformas — alguns defendendo a cópia literal do modelo de Singapura, outros temendo o fracasso da abertura —, Xi escolheu o caminho mais difícil: pensar a longo prazo.
O modelo singapurense, popular entre tecnocratas chineses, combinava capitalismo de Estado, planejamento centralizado e disciplina social. Sob Lee Kuan Yew, Singapura havia se industrializado rapidamente, atraindo investimentos estrangeiros e mantendo rígido controle político. Muitos planejadores viam nessa receita um atalho para o sucesso.
Xi, porém, rejeitou a imitação mecânica. Para ele, o desenvolvimento chinês deveria seguir um modelo próprio, moldado pelas condições históricas, culturais e sociais do país. Essa convicção — aprender com o exterior sem perder a identidade nacional — se tornaria uma das marcas centrais de sua trajetória.
Planejar para o século seguinte
Em Xiamen, Xi Jinping deu forma a uma visão que transcendia os ciclos políticos e administrativos. Naquele ano de 1985, ele elaborou um plano diretor de 15 anos que projetava o futuro da cidade até o ano 2000 — algo inédito na China até então.
“Não podemos focar apenas no imediato”, advertiu na época, ao defender que uma gestão sem visão acabaria refém do improviso e desperdiçaria oportunidades históricas.
O resultado foi a “Estratégia de Desenvolvimento Econômico e Social de Xiamen (1985–2000)”, um documento pioneiro que previu a mudança do eixo econômico mundial do Atlântico para o Pacífico e posicionou Xiamen como elo entre a China e a Ásia-Pacífico.
O plano, considerado utópico nos anos 1980, antecipou a ascensão da China ao centro do comércio global. Décadas depois, a antiga cidade portuária tornou-se um dos principais polos logísticos e tecnológicos do país, movimentando mais de 10 milhões de contêineres por ano e conectando-se a 51 países e regiões.
Um estudo do Instituto Xinhua de 2024, intitulado “Explorando o Desenvolvimento Financeiro com Características Chinesas: As Práticas de Xi Jinping em Fujian”, mostra como essa experiência foi o embrião do modelo de governança econômica que hoje define a China moderna.
De acordo com o relatório, o plano de Xiamen foi o primeiro projeto de desenvolvimento de longo prazo elaborado por um governo local chinês e incluía medidas inovadoras, como:
- Criação de um sistema financeiro autônomo para sustentar a economia de exportação;
- Estabelecimento de instituições financeiras diversificadas e bancos especializados;
- Introdução inédita do conceito de “offshore finance”;
- Integração entre planejamento urbano, políticas fiscais e infraestrutura portuária.
Modelo Xiamen
Essas diretrizes deram origem ao que o relatório chama de “modelo Xiamen”, caracterizado pela combinação entre visão de longo prazo, disciplina administrativa e pragmatismo econômico. O documento também descreve a “reforma financeira em sete frentes”, conduzida por Xi Jinping, que estruturou o sistema financeiro local e inspirou políticas nacionais.
Entre as principais medidas estavam:
- Comercialização dos bancos locais para torná-los mais eficientes e voltados ao crédito produtivo;
- Criação dos primeiros mercados de crédito e instrumentos financeiros regionais;
- Gestão autônoma de fundos municipais, reduzindo a dependência de Pequim;
- Atração de investimento estrangeiro e cooperação internacional, com destaque para Hong Kong e Taiwan;
- Uso estratégico da dívida externa para financiar infraestrutura;
- Ampliação do crédito rural por meio de cooperativas e bancos agrícolas;
- Fortalecimento da regulação financeira, com mecanismos de controle e transparência.
Essas reformas transformaram Xiamen em um laboratório da política de reforma e abertura, estabelecendo as bases do conceito de “finanças com características chinesas” — um modelo em que o Estado mantém o controle estratégico, mas permite espaço para inovação e eficiência de mercado.
Ao transformar uma cidade periférica em um polo de experimentação financeira e urbana, Xi consolidou o método que guiaria toda a sua trajetória: planejar para décadas, executar com precisão diária — um princípio que hoje orienta os planos nacionais de desenvolvimento da China.
O tempo como política de Estado
A transformação de Xiamen, de vila costeira a polo global, sintetiza a visão de Xi: planejar além do ciclo político. Essa filosofia, moldada em experiências locais, hoje orienta o planejamento nacional. A China se guia por planos quinquenais, instrumentos que, segundo Xi, representam “uma experiência essencial de governança do Partido e uma vantagem do socialismo com características chinesas”.
Os planos são o metrônomo da modernização: cada um marca um compasso no avanço do país. Os primeiros ergueram a base industrial; outros erradicaram a pobreza e criaram uma sociedade moderadamente próspera. O atual 14º Plano (2021–2025) já colocou a China no top 10 do Índice Global de Inovação e consolidou o maior sistema de energia renovável do mundo.
O novo ciclo: do aço à inteligência artificial
Nesta semana, o 20º Comitê Central do PCCh realiza sua quarta sessão plenária, em Pequim, para discutir as propostas do 15º Plano Quinquenal (2026–2030) — o novo capítulo da modernização chinesa.
A agenda de Xi para o próximo ciclo se concentra nas “novas forças produtivas” — ciência, tecnologia e inteligência artificial. Durante um simpósio em abril deste ano, em Xangai, ele declarou:
“É preciso dar prioridade estratégica à formação de novas forças produtivas, adaptadas às condições locais.”
O objetivo, explicou, é garantir que inovação e desenvolvimento tecnológico avancem de forma sustentável e regionalmente equilibrada, em sintonia com as metas de neutralidade de carbono e prosperidade comum.
A paciência histórica como método
Para Xi, “erros de planejamento são o maior desperdício” e mudar de rumo constantemente é o maior tabu. Seu método combina liderança centralizada, consulta popular e execução disciplinada. Durante a formulação do 15º plano, o governo abriu uma plataforma online que recebeu mais de 3 milhões de sugestões de cidadãos.
Xi costuma dizer que o êxito chinês depende de paciência histórica e continuidade política. “Planejar bem e executar com rigor é o que garante o avanço decisivo da modernização socialista”, afirmou em Xangai.
Assim, ao desenhar seu futuro, a China não apresenta apenas um plano, mas uma alternativa à governança de curto prazo que domina o mundo — uma forma de transformar o tempo em política e o planejamento em poder.