CHINA EM FOCO

O riso raro de Xi Jinping e o que ele nos ensina sobre a sua diplomacia

Durante a visita à Coreia do Sul, o líder chinês gargalhou com Trump e usou o humor para responder com elegância às suspeitas de espionagem

O riso raro de Xi Jinping e o que ele nos ensina sobre a sua diplomacia.Durante a visita à Coreia do Sul, o líder chinês gargalhou com Trump e usou o humor para responder com elegância às suspeitas de espionagemCréditos: Casa Branca
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O presidente da China, Xi Jinping, costuma adotar uma postura reservada nos palcos internacionais. Raramente é visto em momentos de descontração ou improviso. Mas, nesta semana, durante sua viagem à República da Coreia (Coreia do Sul), o líder chinês fez uma rara exceção — e revelou, em gestos e palavras, a amplitude de sua estratégia externa.

Entre 30 de outubro e 1º de novembro, Xi realizou uma intensa visita de Estado que combinou diplomacia bilateral, cooperação regional e reposicionamento global da China.

No dia 30 de outubro, em Busan, o líder chinês participou de um reencontro histórico com Donald Trump, o primeiro desde 2019. A reunião, que durou cerca de 90 minutos, resultou em uma trégua comercial de um ano e marcou a retomada do diálogo sino-americano, após anos de tensão.

No dia seguinte, 31 de outubro, Xi discursou na Cúpula da APEC 2025, em Gyeongju, onde defendeu o livre comércio, a cooperação tecnológica e uma governança global mais inclusiva, reforçando o papel da China como defensora da integração econômica da Ásia-Pacífico.

Encerrando a viagem, em 1º de novembro, Xi foi recebido em Seul pelo presidente Lee Jae Myung, durante uma cerimônia de visita de Estado. Os dois anunciaram o fortalecimento da parceria estratégica abrangente China–Coreia, com novos acordos em inovação verde, inteligência artificial, cultura e turismo.

A viagem, marcada por gestos diplomáticos e momentos de leveza incomuns no estilo de Xi, consolidou-se como um marco de reaproximação regional e um exemplo da diplomacia equilibrada que o líder chinês exerce entre potências rivais.

O lado bem-humorado de Xi

Em pelo menos duas ocasiões dessa agenda na Coreia do Sul, Xi deixou transparecer um lado mais humano e bem-humorado. A primeira ocorreu durante o encontro com Trump, quando caiu na gargalhada após o presidente dos Estados Unidos lhe mostrar um papel — cujo conteúdo, mantido em sigilo pela Casa Branca, virou motivo de curiosidade mundial.

Casa Branca

A segunda cena de descontração aconteceu durante a troca de presentes com o presidente sul-coreano Lee Jae Myung, neste sábado (1º). Xi ofereceu um conjunto de caligrafia em jade, com pincel e pedra de tinta, e dois smartphones da Xiaomi.

Um assessor chinês comentou, em referência aos celulares, que “a tela é feita na Coreia”. Lee respondeu em tom de brincadeira: “É seguro para comunicações?”, e Xi devolveu, rindo: “Verifique se não há portas dos fundos.”

O momento, amplamente repercutido na imprensa asiática, destoou do habitual tom solene das aparições públicas do líder chinês.

Go, um jogo de estratégia

Leyenda

Lee retribuiu com um tabuleiro de Go tradicional, feito de madeira de zimbro perfumada, e uma bandeja laqueada com madrepérola — presentes que refletiam o interesse comum pelo jogo e faziam referência a um conjunto de pedras de Go oferecido a Xi em sua visita de 2014.

Segundo o gabinete sul-coreano, o gesto simbolizava o desejo de que as relações entre Coreia e China se desenvolvam harmoniosamente, como uma partida de Go.

O Go é um jogo de tabuleiro milenar criado na China há mais de 2.500 anos. Considerado um dos jogos de estratégia mais antigos do mundo, é cultuado por sua profundidade e equilíbrio. No tabuleiro, chamado goban, dois jogadores — um com pedras pretas e outro com brancas — competem para cercar territórios e capturar peças adversárias.

A simplicidade das regras contrasta com a complexidade das estratégias, o que fez do Go uma metáfora duradoura do pensamento político e militar chinês. Na diplomacia, o jogo representa sabedoria, paciência e visão de longo prazo — valores que Xi Jinping incorporou à sua forma de conduzir a política externa.

Uma jogada de Go com humor diplomático

A reação bem-humorada de Xi às preocupações de Lee sobre a segurança dos celulares chineses vai muito além de uma simples piada de ocasião. Ela condensa, em tom leve, uma resposta simbólica a anos de acusações de espionagem cibernética dirigidas à China e às suas empresas de tecnologia.

Pequim nega categoricamente essas acusações, feitas pelos Estados Unidos, pela União Europeia e por aliados ocidentais. Em notas oficiais, o governo chinês afirma opor-se a qualquer forma de hacking ou espionagem, e considera tais denúncias infundadas, politizadas e parte de uma campanha para difamar o país e conter sua influência tecnológica global.

A China também costuma lembrar a contradição de seus acusadores, apontando o histórico de espionagem dos próprios Estados Unidos — revelado em 2013 por Edward Snowden, que expôs a vigilância americana sobre líderes como Angela Merkel e Dilma Rousseff. Por isso, Pequim sustenta que falta autoridade moral aos que a acusam, e exige provas concretas antes de qualquer denúncia pública.

Assim como em uma partida de Go, Xi evita o confronto direto. Em vez de rebater frontalmente, posiciona uma pedra estratégica no tabuleiro: responde com leveza, desloca o foco da suspeita e transforma uma situação potencialmente delicada em demonstração de autoconfiança e domínio simbólico.

O gesto converte a tensão em cordialidade — e reforça, com humor, o espírito de cooperação e equilíbrio que a China defende em suas relações bilaterais. Essa tática reflete a sabedoria confuciana de “responder à dureza com suavidade”, e ecoa Sun Tzu, para quem “a suprema arte da guerra é vencer sem lutar.”

‘Xiplomacia’: como Xi se adapta para construir pontes

Xi Jinping é conhecido por um estilo de discurso que combina rigor ideológico, sensibilidade simbólica e cálculo psicológico. Em vez de se apoiar apenas em dados econômicos ou em retórica política, o líder chinês usa gestos, metáforas e referências culturais para construir pontes e projetar poder — adaptando-se sempre ao interlocutor e ao contexto.

Três episódios recentes ilustram com clareza essa habilidade de moldar o tom conforme a ocasião: o discurso na Cúpula do BRICS, em Kazan, na Rússia, em outubro de 2024; o artigo publicado no Brasil, às vésperas de sua visita de Estado a Brasília, em novembro de 2024; e o reencontro com Donald Trump na Coreia do Sul, no último dia 30 de outubro.

A lição russa

Durante a 16ª Cúpula do BRICS, em Kazan, entre 22 e 24 de outubro de 2024, Xi falou como um estrategista intelectual. Diante de Vladimir Putin, citou o romance O que Fazer?, de Nikolay Chernyshevsky, obra que inspirou gerações de revolucionários russos — inclusive Lênin.

“Isso me lembra de um romance escrito por Nikolay Chernyshevsky, intitulado O que fazer?. A determinação inabalável e o impulso entusiasmado da protagonista são exatamente a força de vontade que precisamos hoje.”

O gesto foi simbólico. Ao resgatar um texto que moldou o pensamento socialista, Xi dialogou com a tradição intelectual russa sem confrontar o nacionalismo histórico de Putin. Falou de ideias e de vontade política, enquanto o anfitrião costuma falar de fronteiras e impérios. Foi um recado elegante: a China prefere vencer pelo pensamento, não pela guerra.

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A leveza brasileira

Pouco depois, em 17 de novembro de 2024, às vésperas de sua visita de Estado a Brasília, Xi mostrou outra face: a do diplomata afetuoso. Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, intitulado “Com futuro compartilhado e amizade que supera distâncias — é hora de navegarmos juntos sob velas cheias”, ele escreveu:

“As fofinhas capivaras, a bossa-nova, o samba e a capoeira são populares na China.”

O trecho viralizou e mostrou um lado raramente visto do líder chinês — simpático, espontâneo e bem-humorado. Ao mencionar um símbolo cotidiano da fauna brasileira, Xi usou a leveza para transmitir uma mensagem política: a amizade entre China e Brasil é natural, próxima e viva. Foi um gesto de soft power cuidadosamente calculado.

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O jogo psicológico com Trump

Na última quinta-feira, dia 30 de outubro, Xi e Donald Trump se reencontraram pessoalmente pela primeira vez desde 2019, em Busan, na Coreia do Sul. A reunião, de cerca de 90 minutos, resultou em uma trégua comercial de um ano, com Washington prometendo reduzir tarifas sobre produtos chineses e Pequim mantendo o fornecimento de terras raras.

Mas, mais do que os acordos, o que chamou atenção foi o estilo diplomático de Xi. Ele adotou um tom incomum na diplomacia chinesa: elogiou Trump, usou metáforas marítimas e espelhou sua linguagem para agradá-lo.

“Você e eu estamos no comando das relações sino-americanas”, disse Xi — uma frase raramente usada por líderes chineses.

A fala soou como um espelho da autoimagem de Trump — a de um capitão solitário conduzindo o destino do mundo. Em seguida, Xi completou:

“Diante de ventos, ondas e desafios, devemos manter o rumo correto e garantir o avanço estável do grande navio das relações China-EUA.”

A metáfora do “navio” evocou coragem e liderança, virtudes que Trump valoriza. E Xi foi além: afirmou que o desenvolvimento da China “anda de mãos dadas com a visão de tornar a América grande novamente”. Ao citar, ainda que indiretamente, o slogan “Make America Great Again”, Xi transformou o lema trumpista em ponto de convergência simbólica — uma jogada diplomática de precisão.

O resultado foi pragmático: Trump saiu celebrando o encontro como uma vitória pessoal, enquanto Xi garantiu concessões comerciais concretas sem abrir mão de poder político. Foi uma demonstração de diplomacia psicológica refinada, em que o líder chinês transformou a vaidade do adversário em instrumento de negociação.

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As múltiplas linguagens de Xi

De Kazan a Brasília, passando por Busan e Seul, Xi Jinping mostrou ser capaz de ajustar o tom sem perder o controle da mensagem. Essa versatilidade define a “diplomacia de grande país com características chinesas” — um equilíbrio entre tradição, pragmatismo e poder simbólico.

Mais do que seguir protocolos, Xi transforma cada gesto em ato de autoridade e confiança nacional, unindo o equilíbrio confuciano e a estratégia marxista-leninista sob o ideal do “rejuvenescimento nacional”.

Ele fala pouco, gesticula com precisão e adapta o discurso ao público: cita filósofos na Rússia, elogia capivaras no Brasil e usa humor na Coreia — sempre com o mesmo objetivo de afirmar a China como potência estável e previsível.

 

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