No início do século passado, o Japão invadiu e gradualmente anexou a península coreana para depois invadir a China. Coreanos participaram ativamente da luta para libertar a China do domínio japonês, e durante minha visita à embaixada da República Popular Democrática da Coreia (RPDC) para pegar meu visto, folheei um livreto sobre esse assunto.
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Mais tarde, foi a vez da China enviar os Voluntários do Povo Chinês para lutar ombro a ombro com o povo coreano contra a invasão dos EUA na Guerra de Resistência à Agressão Estadunidense e de Apoio à Coreia.
Durante a ocupação japonesa, milhões de coreanos e chineses foram recrutados para trabalhar em fábricas e minas no Japão, muitas vezes em condições brutais. Durante a guerra, mulheres desses dois povos foram forçadas à escravidão sexual.
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Em Harbin, no nordeste da China, a Unidade 731 do Exército Imperial Japonês desenvolveu pesquisas em cobaias humanas, a maioria delas das nacionalidades chinesa e coreana. Os experimentos envolveram vivissecção sem anestesia, exposição a condições extremas para testar os limites humanos e testagem de armas químicas e biológicas.
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Tendo compartilhado os mesmos infortúnios e lutado juntos contra um inimigo comum, os povos da China e da Coreia aprofundaram ainda mais a amizade. A divisão da Coreia tornou-se uma profunda cicatriz da Guerra Fria, que deve ser resolvida exclusivamente pelo povo coreano, à sua maneira.
O desenvolvimento da RPDC após a guerra
Inconformados por não terem conseguido dominar o povo coreano, os EUA bombardearam até mesmo matas e animais; as ordens eram para não deixar nada em pé. Herdar uma terra arrasada seria o preço a se pagar por não se submeter ao domínio de uma potência estrangeira.
Mas, sob a liderança de Kim Il Sung, a RPDC conseguiu se reerguer. Reconstruir as cidades era o problema mais urgente, e a ajuda de outros países socialistas deixou uma marca profunda nessa reconstrução — como os trens importados da Alemanha Oriental que até hoje circulam no metrô de Pyongyang.
Depois, já sob o comando de Kim Jong Il, a RPDC implementou a política Songun, de dar prioridade máxima aos assuntos militares. Essa decisão veio em resposta à queda da União Soviética, que tornou o desenvolvimento da capacidade de autodefesa uma prioridade absoluta.
Essa RPDC da política Songun ainda é a que domina o imaginário ocidental quando se fala do país, pois é o que mais irrita as potências ocidentais. A urgência do desenvolvimento militar e o crescente isolamento do país causaram estagnação econômica, mas a RPDC se consolidou como potência nuclear, o que garante sua proteção contra ataques externos e é uma condição essencial para seu desenvolvimento econômico.
Agora, sob o comando de Kim Jong Un, um líder jovem e carismático, o país desenvolve a linha Byungjin (desenvolvimento paralelo), que enfatiza o desenvolvimento econômico juntamente à manutenção da capacidade de autodefesa. Isso explica os muitos prédios modernos erguidos recentemente e a crescente diversidade de produtos industrializados de fabricação local.
Um novo ciclo de desenvolvimento socioeconômico
O moderno bairro de Hwasong, em Pyongyang — modelo para os novos projetos habitacionais —, dá uma nova cara a uma cidade que por décadas manteve a velha estética dos tempos da Guerra Fria, sendo um retrato do desenvolvimento do país sob a linha Byungjin.
A política 20x10, em implementação, é outro destaque da política interna: para reduzir a desigualdade entre a capital, mais desenvolvida, e o resto do país, a cada ano o desenvolvimento focará em 20 comarcas, de modo que após 10 anos, o equivalente a dois planos quinquenais, o interior do país estará bem mais desenvolvido.
Notei semelhanças entre a política 20x10 e a estratégia chinesa de combate à pobreza: a busca por soluções sob medida para os problemas de cada localidade e o foco no desenvolvimento do potencial econômico local. Em alguns lugares, desenvolve-se a agricultura; em outros, a indústria; em outros, o turismo — e assim por diante, conforme as perspectivas econômicas de cada comarca.
Ao conhecer esse desenvolvimento, senti uma limitação: sendo minha primeira visita ao país, eu não tinha conhecimento para comparar a situação atual com o passado. Precisei "pedir ajuda aos universitários". Muitos membros das delegações que visitaram a RPDC comigo mantêm contato com o país há mais de uma década, então passei horas fazendo-lhes perguntas sobre suas experiências anteriores.
Uma coisa que muitos observaram foi o aumento da diversidade e a melhoria da qualidade dos produtos alimentícios industrializados. Ao longo da semana, pessoas familiarizadas com o país demonstraram surpresa ao encontrar novos produtos e marcas. E nós, estrangeiros, só experimentamos a comida.
Dois dias antes da minha chegada ao país, foi inaugurado o Hospital Geral de Pyongyang, um prédio grande e bonito, com modernos leitos e aparelhos médicos para cuidar da saúde da população. Durante minha visita à Torre Juche, vi o hospital do outro lado da rua. Na RPDC, os serviços médicos são totalmente gratuitos, assim como educação e moradia.
Fora isso, tive a oportunidade de visitar a Universidade Kim Il Sung e a Escola de Quadros do Partido do Trabalho da Coreia. Ambas possuem excelente infraestrutura, com modernas salas de aula, bibliotecas e espaços para prática de esportes.
Na biblioteca da universidade, encontrei uma grande diversidade de livros importados em diversas línguas, inclusive publicações novas de diferentes áreas da ciência — em linha com o que encontramos nas bibliotecas de outras universidades mundo afora. A ciência não conhece fronteiras, nem mesmo em um país sob sanções internacionais.
A economia planificada
Ao contrário de outros países socialistas, como a China e o Vietnã, que no passado optaram pela economia de mercado para se integrar à economia mundial, a RPDC segue adotando a economia planificada, que funciona bem para a população local, mas dificulta o acesso de estrangeiros, como eu, a uma experiência mais profunda da vida diária no país.
Por ser um sistema fechado de circulação econômica, o estrangeiro que visita a RPDC não consegue adquirir moeda local (o que também resulta da impossibilidade das operações cambiais, por conta das sanções internacionais). Por isso, não pode usar transporte público e seu consumo fica restrito a poucos estabelecimentos capazes de aceitar moeda estrangeira.
Quando fui a um mercado comprar produtos locais, cada vendedor me deu um pedaço de papel com o valor da compra em moeda local. Levei os papéis ao caixa para pagar em moeda estrangeira e depois retornei às lojas, entregando o papel carimbado para pegar os produtos. O caixa faz a mágica de receber moeda estrangeira e pagar os vendedores em moeda local sem fazer uma operação de câmbio.
Muitos turistas que visitam a RPDC não se interessam em compreender as características da economia planificada e a impossibilidade de integrá-la à economia de mercado à qual os estrangeiros estão acostumados, e por isso não entendem por que não podem simplesmente atravessar a rua e comprar um refrigerante na lojinha da esquina.
Mas é justamente a análise desses detalhes que nos permite entender a cultura do país que estamos visitando. E a cultura norte-coreana é muito peculiar e, por isso mesmo, fascinante.
Comunicação intercultural: um desafio a se enfrentar
Escrevi este artigo enquanto celebrava o 10º aniversário da minha chegada à China. A oportunidade de trabalho surgiu graças à estratégia chinesa de comunicação internacional, que sempre deu importância à revisão, por nativos, das traduções de textos chineses para línguas estrangeiras e aos relatos de estrangeiros sobre suas experiências no país.
A RPDC seguiu um caminho diferente: ao visitar livrarias norte-coreanas, deparei-me com diversos livros traduzidos para línguas estrangeiras sem a participação de um revisor nativo. Os tradutores coreanos são bons, muito dedicados e talentosos — dominam a gramática e o vocabulário —, mas detalhes de estilo e pequenas nuances da língua denunciam que nenhum nativo participou do projeto.
Comprei alguns livros em inglês e espanhol. Chamou-me a atenção o estilo narrativo: tudo traduzido ao pé da letra do original coreano, ao contrário das traduções de livros chineses, nas quais evitamos repetições desnecessárias, adaptamos frases inteiras e inserimos notas explicativas para facilitar a compreensão do leitor estrangeiro.
Agora que o país se moderniza e dá passos tímidos para atualizar sua comunicação com o exterior, sinto que, daqui a algumas décadas, talvez haja revisores nativos em línguas estrangeiras trabalhando em Pyongyang. Eles terão um enorme trabalho para compreender a cultura do país e explicá-la ao leitor estrangeiro.
Fotografias e vídeos
Como mencionei no artigo anterior, senti-me instigado a fotografar e mostrar a verdadeira RPDC ao mundo. Minha experiência contrasta com os relatos tradicionais disponíveis na internet, que falam de uma vigilância rigorosa — incluindo inspeção no aeroporto para exclusão de fotos “proibidas”.
Ao passar pela inspeção de saída no aeroporto, ninguém pediu para ver minha câmera, computador ou celular; os equipamentos passaram apenas pelo raio-X. Na entrada, quiseram vê-los, mas fizeram apenas uma inspeção externa, sem ligar os aparelhos nem checar os conteúdos.
Ficou claro para mim, ao longo da semana, que a questão das fotografias tem uma base cultural. Quando saí fotografando cenas do cotidiano, explicaram-me que, na cultura local, não há esse costume. Mesmo assim, ninguém me pediu para apagar foto alguma — conservei todas.
Depois disso, entra o bom senso: divulgar fotografias para apresentar o cotidiano do país, desconstruir mitos e mostrar como as pessoas vivem tem uma justificativa legítima, pois permite que o mundo compreenda melhor a RPDC. Já vender fotografias sem autorização do fotografado ou associá-las a narrativas falsas é um desrespeito em qualquer cultura.
Observei moradores de Pyongyang tirando fotos com seus celulares nas ruas, geralmente com amigos ou familiares, e tive a impressão de que, aos poucos, a sociedade local está se abrindo a essa cultura da fotografia.
A proibição de se tirar fotos de pinturas e estátuas dos líderes do país é uma questão de respeito: Kim Il Sung e Kim Jong Il são vistos como pais pelo povo coreano, por isso suas imagens precisam ser tratadas com o mesmo respeito que você teria por seu próprio pai.
É por um motivo parecido que turistas são proibidos de fotografar imagens de Buda nos templos chineses. Na crença budista, uma imagem de Buda é feita para ser venerada, não para ser mostrada a pessoas embriagadas em um churrasco de domingo ao som de um proibidão.
Aliás, há dois mitos muito difundidos sobre fotografias na RPDC: o de que seria proibido fotografar as costas de estátuas (ou de pessoas) e o de que dobrar ou rasgar fotografias dos líderes seria crime.
Sobre fotografar as costas de estátuas — fiz isso, e ninguém me prendeu. Muita gente me viu fotografando e ninguém fez cara feia. Quanto a dobrar ou rasgar fotos de autoridades, isso não é crime, mas rasgar a foto de alguém é um desrespeito em qualquer contexto e lugar. E se a foto em questão é de alguém que você respeita tanto quanto um pai, por que a rasgaria?
Durante meus primeiros dias na RPDC, notei muita gente — inclusive estrangeiros — usando uma insígnia com os retratos de Kim Il Sung e Kim Jong Il, mas nas lojinhas que visitei ela não estava à venda. Explicaram-me que sua venda é proibida: é preciso ganhá-la. Nesse momento, entendi que os estrangeiros que usam essa insígnia conquistaram a confiança dos norte-coreanos.
A despedida
Na minha última noite no país, deixei a mala pronta para ir ao aeroporto na manhã seguinte e fui ao bar do hotel conversar com os amigos de quem teria de me despedir em breve — entre eles, um coreano falante de português, que nos acompanhou a semana inteira.
Durante a conversa, ele nos ensinou muito sobre a cultura do país, em um diálogo profundo e sincero. Lá pelas tantas, o telefone dele tocou. Ele atendeu e, em seguida, nos deu uma boa notícia: nossas insígnias haviam chegado. Eu e mais dois brasileiros estávamos sendo presenteados com as insígnias de Kim Il Sung e Kim Jong Il.
Ele nos levou a um escritório para receber o presente. Um rapaz apareceu com três caixas vermelhas aveludadas, explicou que era uma grande honra para um estrangeiro receber esse símbolo e nos orientou a cuidar dele com respeito — como se fosse o retrato de nossos próprios pais.
Nosso amigo fez questão de colocar, ele mesmo, as insígnias sobre nossos peitos. Nesse momento, entendi que, ao longo daquela semana, eu não apenas havia aprendido muito, mas também ganhado a confiança de algumas pessoas por demonstrar respeito pela cultura local e um desejo genuíno de compreender sua perspectiva.
Na manhã seguinte, muitos coreanos com quem convivi ao longo da semana estavam na porta do hotel para se despedir. O ônibus me levou ao aeroporto com outros dois brasileiros e membros de diversas delegações. Já tive muitas despedidas ao longo da vida, mas essa foi especialmente emocionante. Parti com o desejo de voltar.
Minha visita à RPDC fortaleceu minha crença no diálogo como forma de resolver conflitos. Muita gente hostiliza a RPDC e apoia sanções contra o país, sob o argumento de que se trata de uma ditadura e, portanto, mereceria intervenção externa. Mas a democracia nasce da luta do próprio povo — por isso, não acredito em democracias enxertadas.
Prefiro apostar em pontes, não em muros. Acredito que a promoção de uma cultura de paz só é possível por meio de diálogo, respeito e confiança mútua.
* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital da China, há nove anos.
* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.