A China reagiu com firmeza às recentes declarações de Donald Trump, que ameaçou uma intervenção militar na Nigéria sob o argumento falso de que o país africano estaria promovendo um “genocídio cristão”.
Pequim afirmou ser contrária ao uso da religião ou dos direitos humanos como pretexto para interferência externa, sanções ou ameaças militares.
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O recado de Pequim e o apoio à Nigéria
Nesta terça-feira (4), a porta-voz Mao Ning, do Ministério das Relações Exteriores da China, respondeu a uma pergunta sobre o anúncio de Trump, que classificou a Nigéria como um “País de Preocupação Especial” — uma categoria diplomática usada pelos EUA para justificar sanções ou ações militares.
Mao Ning destacou que, como parceira estratégica abrangente da Nigéria, a China apoia o país “na busca de seu próprio caminho de desenvolvimento, de acordo com suas condições nacionais”.
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“A China se opõe veementemente a qualquer país que use religião e direitos humanos como pretexto para interferir nos assuntos internos de outros países, bem como a qualquer ameaça de sanções ou uso da força”, afirmou a diplomata.
No sábado (1º), Trump havia dito nas redes sociais que ordenou ao Pentágono que “se prepare para uma possível ação” contra o que chamou de “terroristas islâmicos” na Nigéria, alegando que o governo local não protege cristãos de ataques.
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Resposta da Nigéria a Trump
O presidente Bola Ahmed Tinubu reagiu prontamente, dizendo que as declarações de Trump “não refletem a verdadeira situação do país”. Em comunicado oficial, reafirmou o compromisso da Nigéria com a democracia, a liberdade religiosa e o respeito à diversidade de fé, e rejeitou a tentativa de retratar a nação como intolerante.
“A caracterização da Nigéria como um país religiosamente intolerante não reflete a nossa realidade nacional, nem leva em consideração os esforços consistentes e sinceros do governo para proteger a liberdade de religião e de crença de todos os nigerianos”, afirmou Tinubu.
Desde 2023, o governo nigeriano mantém diálogo constante com líderes cristãos e muçulmanos, enfrentando desafios de segurança que afetam cidadãos de diferentes religiões e regiões.
Tinubu reforçou que a tolerância é um pilar da identidade nacional e manifestou disposição em trabalhar com os Estados Unidos e a comunidade internacional na proteção das comunidades de todas as fés.
A presença da China na Nigéria
Para compreender as tensões atuais, é fundamental observar a disputa entre China e Estados Unidos na África. A Nigéria, maior economia e país mais populoso do continente, tornou-se um pilar da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) — o megaprojeto lançado por Pequim em 2013 para fortalecer infraestrutura e comércio entre Ásia, África e Europa e também chamado de Nova Rota da Seda.
Em 2018, durante o Fórum de Cooperação China–África (FOCAC) em Pequim, o então presidente Muhammadu Buhari formalizou a adesão nigeriana à BRI. Desde então, o país passou a receber investimentos bilionários em obras estratégicas, como o Porto de Lekki, a ferrovia Lagos–Ibadan e a modernização de aeroportos, executadas por empresas estatais chinesas.
Em setembro deste ano, o atual presidente Bola Tinubu reafirmou o compromisso com a parceria, chamando os empreendimentos sino-nigerianos de “ativos nacionais a serviço de todos os nigerianos”. Entre os projetos em andamento, destacam-se a Rodovia Transaariana, que conecta seis países africanos, e a estrada Akwanga–Jos–Bauchi–Gombe, construída pela China Geo-Engineering Corporation.
Outras iniciativas incluem a ferrovia Kano–Kaduna, o metrô leve de Abuja, o gasoduto Ajaokuta–Kaduna–Kano e a Usina Hidrelétrica de Zungeru, todos financiados e executados com tecnologia chinesa. Essas obras têm papel central na integração logística, no abastecimento energético e no fortalecimento industrial da Nigéria.
Hoje, o país é o maior mercado contratual da China na África e seu segundo maior parceiro comercial, consolidando-se como exemplo de como Pequim transformou investimento em influência política e diplomática. Esse protagonismo ajuda a explicar o discurso agressivo de Trump, que tenta conter o avanço chinês recorrendo a pressões políticas e retórica religiosa.
Disputa geopolítica: China x EUA na África
A África voltou ao centro da disputa entre as duas maiores potências globais. Enquanto a China aposta em infraestrutura, comércio e cooperação de longo prazo, os Estados Unidos adotam uma abordagem mais ideológica e centrada em segurança, marcada por sanções, restrições comerciais e redução de ajuda externa.
A política chinesa se apoia no princípio da não intervenção e no discurso de “amizade e benefício mútuo”, evitando impor condicionalidades políticas. Já Washington, em seu segundo governo Trump, prioriza interesses comerciais, influência religiosa e disputas estratégicas com China e Rússia, deixando em segundo plano temas como cooperação e desenvolvimento sustentável.
Neste ano, os EUA renovaram, de forma limitada, o AGOA (African Growth and Opportunity Act) — programa que concede isenção de tarifas a exportações africanas —, mas com regras mais restritivas. Ao mesmo tempo, aumentaram tarifas e cortaram programas de apoio, reforçando uma política externa de curto prazo e foco eleitoral.
Enquanto a China constrói parcerias estruturais, os Estados Unidos intensificam ações de contenção, transformando o continente africano em campo simbólico e estratégico da nova ordem mundial.
Contexto interno: tensões e desigualdades na Nigéria
A Nigéria, com 220 milhões de habitantes, é uma nação de enorme diversidade étnica e religiosa, e vive graves desafios internos. Nos últimos anos, o país enfrentou protestos massivos, inflação, desemprego e crises de segurança.
Em 2024, manifestações tomaram as ruas de cidades como Lagos, Abuja e Kano após Tinubu eliminar subsídios aos combustíveis e unificar o câmbio — medidas que elevaram o custo de vida e geraram revolta popular.
Além disso, o país carrega antigas feridas da Guerra de Biafra (1967–1970), quando o povo ibo, majoritariamente cristão, tentou criar um Estado independente no sudeste da Nigéria. O conflito deixou mais de 1 milhão de mortos, principalmente por fome, e ainda hoje inspira movimentos separatistas, como o IPOB (Indigenous People of Biafra).
Entenda o mito do “genocídio cristão”
Nos últimos dias, perfis e programas de TV nos EUA voltaram a divulgar que a Nigéria promove um “genocídio cristão” — uma narrativa antiga, sem base em dados oficiais ou independentes. O apresentador Bill Maher afirmou em seu programa que “100 mil cristãos foram mortos e 18 mil igrejas queimadas desde 2009”, números que vêm de sites extremistas não verificados e foram amplificados pela Fox News.
Pesquisadores e organismos internacionais explicam que os conflitos na Nigéria não são religiosos, mas têm origem étnica, territorial e econômica — em disputas por terra, recursos e poder local. O grupo extremista Boko Haram, criado em 2009, declarou guerra ao Estado nigeriano, e não à fé cristã. A maioria de suas vítimas é muçulmana, incluindo líderes religiosos e civis.
A estrutura militar nigeriana, comandada em grande parte por oficiais cristãos como o general Christopher Musa, desmonta a tese de perseguição estatal. Com 220 milhões de habitantes, o país tem população quase metade cristã e metade muçulmana, que convive em todas as regiões.
Dados recentes apontam que menos de 10% dos casos de violência no país têm motivação religiosa. O restante está ligado a banditismo, terrorismo e disputas por recursos naturais.
Religião como arma política
As investidas de Trump contra países africanos seguem um padrão recorrente: o uso da fé e da desinformação como ferramentas de pressão econômica e justificativa para possíveis ações militares.
O presidente dos Estados Unidos também já atacou a África do Sul, repetindo fake news sobre um suposto “genocídio de fazendeiros brancos”. Em 21 de maio, durante uma reunião na Casa Branca com o presidente Cyril Ramaphosa, o republicano acusou o país de “perseguição racial” e criticou a reforma agrária que busca corrigir as desigualdades históricas no acesso à terra herdadas do apartheid.
Os fatos, porém, desmontam essa narrativa. Segundo o Instituto de Estudos de Segurança (ISS), entre 2022 e 2023 a África do Sul registrou 27.494 homicídios, dos quais apenas 70 envolveram fazendeiros brancos — o equivalente a 0,23% do total. Investigações independentes e reportagens da BBC e de tribunais sul-africanos classificaram a alegação como “claramente inventada”.
As acusações de Trump ocorreram pouco depois de o governo sul-africano processar Israel por genocídio em Gaza na Corte Internacional de Justiça (CIJ) — ação apoiada pelo Brasil. Em resposta, o republicano, aliado do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, suspendeu toda a ajuda humanitária à África do Sul e expulsou o embaixador do país em Washington, intensificando a crise diplomática.
Ao acusar governos africanos de “perseguir cristãos” e rotular opositores como “terroristas islâmicos”, Trump mistura religião e poder, reacendendo tensões e revivendo práticas coloniais sob o disfarce de uma suposta “defesa moral”. A retórica de “proteção à liberdade religiosa” tornou-se, na prática, um instrumento geopolítico para reafirmar a influência dos Estados Unidos sobre o Sul Global.
Os dados, no entanto, revelam outro cenário: a violência com motivação religiosa é minoritária no continente, e a maior parte das vítimas do terrorismo é muçulmana. As verdadeiras causas da instabilidade africana estão ligadas à pobreza, desigualdade e disputas por recursos naturais, não à fé.
O discurso de Trump distorce a realidade africana e faz parte de uma estratégia mais ampla de contenção da China — que se firma como a principal parceira econômica e diplomática da África, oferecendo investimento, infraestrutura e cooperação, enquanto Washington insiste em ameaças e retórica ideológica.