Lições da China para o Esporte Brasileiro - por Rafael Henrique Zerbetto

A China tem algo a nos ensinar sobre esportes, e para isso precisamos conhecer o trabalho que o país vem realizando no setor.

Créditos: Luis Miguel Ferreira/CBTM
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A inédita vitória do brasileiro Hugo Calderano na final da Copa do Mundo de Tênis de Mesa 2025, sobre o chinês Lin Shidong, o número 1 do mundo, por 4 a 1, causou grande comoção tanto no Brasil, por ser o primeiro título do país na competição, como na China, pela frustração de perder em casa num esporte em que o país sempre reinou absoluto.

Calderano é um dos muitos atletas brasileiros que conseguiram chegar lá graças ao apoio do programa Bolsa Atleta do governo federal. Criado em 2005 pelo presidente Lula, o programa já beneficiou milhares de esportistas, ajudando-os a custear treinamento, equipamento e outras despesas.

Antes do Bolsa Atleta, alguns esportistas brasileiros tinham a sorte de conseguir patrocínio, geralmente de empresas estatais. Os demais tinham que conciliar a carreira esportiva com outro trabalho, e era comum dependerem de vaquinha de amigos para poder viajar para as competições.

Nas últimas duas décadas, o Bolsa Atleta revelou talentos e ajudou a trazer muitas medalhas para o Brasil. No mesmo período, a China se consolidou como uma potência esportiva, mantendo-se entre os três melhores colocados no quadro de medalhas desde os jogos de Atenas 2004. Obviamente, a China tem algo a nos ensinar sobre esportes, e para isso precisamos conhecer o trabalho que o país vem realizando no setor.

É preciso construir a base

Duas coisas chamaram minha atenção quando me mudei para Pequim: a quantidade de gente praticando esportes nos parques públicos da cidade e a excelente estrutura esportiva das escolas chinesas. Era comum, inclusive, contratarem brasileiros para ser treinadores de futebol.

Os parques públicos são excelentes locais para prática de esportes e costumam ter boa estrutura para isso. É comum ver corredores nas pistas principais e pessoas praticando danças e artes marciais em áreas abertas. Geralmente os parques possuem equipamentos gratuitos para exercícios.

Envelhecer com saúde: aposentado se exercita em parque de Jinan, na província de Shandong

Em muitas escolas chinesas que visitei, o complexo esportivo é separado do resto da escola por uma cerca e tem uma portaria independente, permitindo que a escola disponibilize, a preços populares, sua estrutura esportiva à comunidade nos momentos em que não está sendo usada para as aulas. Além de fortalecer a interação da escola com a vizinhança, isso gera um lucro que é reinvestido em manutenção e melhorias.

O bom trabalho em educação física acostuma os estudantes desde cedo a ter uma rotina de exercícios, além de esclarecer a importância do esporte para se ter uma vida saudável, o que é reforçado pela tradição chinesa de exercitar o corpo e a mente para envelhecer com saúde. Não é por acaso que vejo tantos idosos de aparência jovem se exercitando nos parques.

Eu nadando na piscina de uma escola publica chinesa

A educação escolar também contribui para aumentar o interesse por esportes e ajuda a revelar talentos, como é o caso de Zhang Yufei, estrela da natação chinesa, cujo talento chamou a atenção de treinadores durante competições escolares, dando-lhe a oportunidade de uma carreira profissional.

Vários discursos do presidente Xi Jinping destacam a importância de se promover a prática de esportes e um estilo de vida saudável. Com isso, diversos programas de popularização do esporte têm sido implementados, indo desde a melhoria da educação física nas escolas até a promoção de torneios esportivos.

Um bom exemplo é a popularização das corridas de rua, como as meias-maratonas que recentemente aconteceram em Pequim e Xangai. Organizadas pelos governos municipais e patrocinadas por grandes empresas, as provas oferecem prêmios gordos aos ganhadores, atraindo atletas amadores e profissionais de toda a China e até mesmo do exterior.

Visão abrangente e integração de políticas

Para além do incentivo ao esporte, a China integra diferentes políticas para aproveitar ao máximo as vantagens do esporte. O legado das olimpíadas de verão de 2008 é um exemplo disso: além de promover o esporte no país e a China no exterior, os jogos impulsionaram a rápida expansão do metrô e ajudaram a desenvolver diferentes setores da economia, desde turismo, restaurantes e hotelaria até a indústria chinesa de roupas e equipamentos esportivos.

Ao contrário do Brasil, onde estádios e outras infraestruturas esportivas costumam ser subutilizados, a China ainda hoje lucra com instalações esportivas criadas para os jogos. O Cubo D’Água, por exemplo, gera receita com um parque aquático, a abertura das piscinas olímpicas ao público quando não há competições, e visitas turísticas, além de outros serviços. Desde as Olimpíadas de Inverno de 2022, o local também oferece aos visitantes a prática de Curling.

Legado das olimpíadas de inverno de 2022, o parque Shougang tornou-se popular em Pequim

Pequim foi escolhida para sediar os jogos de 2022 pouco depois de minha mudança para a cidade, o que me deu a oportunidade de acompanhar toda a preparação para os jogos. Notei um esforço enorme para a popularização dos esportes de inverno, com estações de esqui se multiplicando nos arredores da cidade e muita gente aprendendo a esquiar. Mais tarde descobri que as novas estações de esqui geram empregos sazonais para a população rural, contribuindo para a eliminação da pobreza.
Também chamou minha atenção o rápido desenvolvimento do setor de roupas e equipamentos esportivos, com marcas chinesas ocupando uma fatia cada vez maior do mercado doméstico e começando a ganhar espaço no exterior.

O desenvolvimento de equipamentos, roupas e serviços, por sua vez, gera investimentos em pesquisa e produtos com maior valor agregado. Empresas chinesas desenvolveram técnicas e equipamentos para produção de gelo e neve adequados aos rígidos padrões das competições olímpicas.

Chamou minha atenção, em especial, o trabalho da equipe do prof. Wang Feiteng, da Academia Chinesa de Ciências, que desenvolveu as técnicas que garantiram a produção e a conservação da neve dentro dos parâmetros adequados aos jogos.

Wang explicou que o maior desafio foi produzir a neve para as provas de esqui alpino: conhecida como neve glacial, ela é cerca de duas vezes mais densa que aquela produzida por máquinas, mas a equipe encontrou uma solução, que possibilitou a realização das provas em Pequim.

As olimpíadas de inverno também ajudaram a impulsionar as políticas ambientais da cidade: quando cheguei aqui, nos dias de inverno checávamos a qualidade do ar e colocávamos máscaras N95 para sair às ruas quando estava muito poluído. Recebi com ceticismo a promessa de que teríamos céu azul durante os jogos.

Cerimônia de Abertura dos Jogos Paraolímpicos de Inverno de Pequim 2022

Mas em 2017 constatei que a poluição havia diminuído bastante e hoje em dia temos céu azul até mesmo no inverno. Indústrias foram realocadas para fora da capital, em modernas fábricas que poluem menos. O carvão foi substituído pelo gás natural para o aquecimento das casas.

Nas províncias vizinhas foram desenvolvidos grandes projetos de energia eólica e solar para substituir as velhas termelétricas a carvão, possibilitando a realização da primeira olimpíada da história a usar 100% de energia renovável.

Como legado desse trabalho ambiental ligado aos jogos olímpicos, resta o parque Shougang, construído no lugar de uma antiga siderúrgica. O local recebeu a icônica instalação Big Air Shougang, usada para as provas de salto que consagraram a chinesa Gu Ailing como um dos grandes nomes desse esporte.

Instrumento de soft power

Ao longo da história, a ascenção das grandes potências sempre trouxe a reboque uma forte influência cultural, mas a China, até agora, tem sido exceção a essa regra: embora o interesse internacional pelo país tenha aumentado, sua cultura pop ainda é desconhecida no exterior. Mais que isso, o Ocidente se recusa a conhecer a China real, mantendo-se apegado àquela China exótica representada pelas chinoiseries da arte barroca europeia.

Ao mesmo tempo que permanece subrepresentada na cena cultural internacional, a China tem sido habilidosa no uso do esporte para fortalecer suas relações com outros países. Nos anos 70, a Diplomacia do Pingue-Pongue ajudou o país a estabelecer laços diplomáticos com os EUA em plena Guerra Fria.

Durante os jogos olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, Brasil e China assinaram um acordo de intercâmbio técnico inspirado na velha Diplomacia do Pingue Pongue, que incluiu a contratação de treinadores de tênis de mesa pelo Brasil e trouxe atletas brasileiros, entre eles Hugo Calderano, para treinar na China. O país asiático também teve papel fundamental na modernização dos centros de treinamento desse esporte no Brasil.

“Muita gente pensa em kung fu e pingue pongue quando menciona a China, e vê a China como um país poderoso por causa dos resultados nas olimpíadas”, afirma o brasileiro Gabriel Valdetaro, que estuda o papel do esporte no soft power chinês em sua pesquisa de doutorado pela Universidade de Educação Física e Esportes da Capital, em Pequim.

O comentário de Valdetaro me faz pensar sobre como os intercâmbios entre Brasil e China são profundamente marcados pelo esporte: enquanto os brasileiros vêem a China como o país do pingue pongue e das artes marciais, os chineses vêem o Brasil como o país do futebol.

O esporte nutre uma admiração mútua entre os dois povos, criando uma relação complexa de cooperação e competição na qual temos muito a aprender um com o outro.

* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

*** Todas as fotos por Rafael Henrique Zerbetto

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