No momento em que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reforça sua postura autoritária e desmonta pilares da ordem internacional criada após a Segunda Guerra Mundial, o presidente da China, Xi Jinping, aposta em um discurso que exalta o diálogo entre civilizações como caminho para a paz e o desenvolvimento.
Nesta quinta-feira (10), um dia depois de Trump enviar uma carta ao presidente Lula exigindo que o governo brasileiro suspenda o julgamento de Jair Bolsonaro — uma clara interferência na soberania de outro país — Xi enviou uma mensagem à abertura da Reunião Ministerial de Diálogo de Civilizações Globais, em Pequim, reafirmando o compromisso da China com a defesa da igualdade, do aprendizado mútuo, do diálogo e da inclusão.
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Esses valores são pilares da Iniciativa de Civilização Global (GCI), lançada em março de 2023 durante o Fórum Boao para a Ásia, como parte de uma estratégia diplomática para fortalecer uma governança internacional multipolar.
“O mundo é, por natureza, um lugar de civilizações diversas. A história nos mostra que o intercâmbio e o aprendizado mútuo são essenciais para o florescimento das civilizações e para o progresso da humanidade”, escreveu Xi.
Em contraste com a retórica beligerante de Trump, Xi voltou a enfatizar que, diante de um cenário de transformações e crises, é ainda mais urgente superar o distanciamento por meio do diálogo e evitar conflitos por meio da troca de experiências.
O presidente chinês também pediu que os representantes presentes aprofundem trocas, construam consensos e somem forças para promover a convivência pacífica — um contraponto direto à diplomacia de sanções, chantagens tarifárias e ameaças que voltaram a marcar o governo Trump em seu segundo mandato.
O autoritarismo de Trump
Nesta semana, Trump oficializou uma tarifa extra de 50% sobre produtos brasileiros, alegando “injustiças comerciais”, em aparente retaliação ao julgamento de Bolsonaro no STF.
No mesmo dia, voltou a ameaçar cortar fundos da ONU e agências internacionais que não sigam “regras estadunidenses”. Essa postura de hostilidade já marcou seu primeiro governo (2017–2021), período em que os EUA abandonaram o Acordo de Paris, deixaram a OMS durante a pandemia e minaram a OMC.
Enquanto isso, a China busca projetar estabilidade global com o tripé diplomático formado pela Iniciativa de Desenvolvimento Global (2021), a Iniciativa de Segurança Global (2022) e a própria Iniciativa de Civilização Global (2023).
Desde então, Pequim tem criado fóruns culturais, bolsas de estudo, centros de pesquisa e parcerias acadêmicas com África, América Latina e Sudeste Asiático — fortalecendo seu soft power no Sul Global.
O que é a Reunião Ministerial de Diálogo de Civilizações Globais
A Reunião Ministerial, aberta nesta quinta-feira em Pequim, é organizada pelo Departamento de Publicidade e pelo Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh).
Com o tema “Salvaguardar a Diversidade das Civilizações Humanas para a Paz e o Desenvolvimento Mundial”, o evento reúne ministros da Cultura, Educação e Relações Exteriores de dezenas de países, além de organizações como a UNESCO e a Aliança das Civilizações das Nações Unidas. Acadêmicos, líderes religiosos e representantes da sociedade civil também participam.
Os debates giram em torno de três eixos principais:
- Educação intercultural e combate a narrativas de supremacia cultural.
- Construção de redes práticas de cooperação, com bolsas, intercâmbios e centros de pesquisa regionais.
- Propostas de princípios comuns de diálogo como resposta a choques culturais, extremismos e preconceitos.
A programação inclui painéis paralelos, exposições de arte, fóruns de cinema e encontros de juventude. Nesta edição, um destaque foi o anúncio de novas parcerias entre universidades chinesas e instituições da Ásia, África e América Latina, voltadas para bolsas de estudo e centros de línguas.
Um contraponto ao conceito de “Choque de Civilizações”
A Iniciativa de Civilização Global é frequentemente interpretada como uma resposta direta ao conceito de “Choque de Civilizações”, que ganhou força nos anos 1990 com o cientista político Samuel Huntington.
No famoso artigo de 1993 (e depois no livro de 1996), Huntington argumentou que, após o fim da Guerra Fria, os principais conflitos do mundo não seriam mais motivados por ideologias ou disputas entre Estados-nação, mas sim por choques entre grandes blocos culturais e civilizacionais — como Ocidente, Islã, Confucionismo, Hinduísmo, entre outros.
Segundo essa visão, fatores como religião, valores e identidades culturais estariam no centro das novas linhas de conflito, substituindo as divisões da Guerra Fria. O “Choque de Civilizações” se tornou popular em círculos estratégicos ocidentais, alimentando políticas externas baseadas na ideia de que haveria uma barreira quase irreconciliável entre o Ocidente e outras esferas culturais.
China aposta no diálogo e respeito mútuo
Ao longo dos anos, Pequim rejeitou publicamente essa lógica de confronto cultural. A narrativa oficial chinesa defende que nenhuma civilização é superior a outra e que a troca de experiências, o respeito mútuo e o aprendizado entre culturas são o único caminho para evitar conflitos e fortalecer a paz.
Assim, a Iniciativa de Civilização Global — e fóruns como a Reunião Ministerial de Diálogo de Civilizações Globais — tentam oferecer uma contraposição prática e simbólica: no lugar de barreiras culturais, redes de cooperação; no lugar de desconfiança, diálogo.
Para Xi Jinping, a ambição é transformar essa abordagem em um mecanismo regular, ampliando redes de diálogo intercivilizacional e projetando a China como promotora de uma ordem multipolar que valorize a diversidade cultural, não apenas a concorrência econômica.
Em um mundo cada vez mais fragmentado — e com disputas intensas por tecnologia, mercados e influência geopolítica —, a disputa entre China e EUA é também uma batalha de narrativas: quem será capaz de liderar e moldar as regras de uma nova ordem internacional — uma ordem de hegemonia unilateral ou de convivência entre civilizações?