CHINA EM FOCO

O fenômeno Labubu e a ascensão do soft power chinês - Por Rafael Henrique Zerbetto

Como a China aposta na cultura pop para ampliar sua influência global

O fenômeno Labubu e a ascensão do soft power chinês.Como a China aposta na cultura pop para ampliar sua influência globalCréditos: ReproduçãoToyShow
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Em meu artigo de 28 de abril (Lições da China para o Esporte Brasileiro), comentei que a China é mundialmente reconhecida como uma potência esportiva, mas enfrenta dificuldades para consolidar seu soft power cultural, especialmente na cultura pop.

A consolidação dos EUA como potência mundial, por exemplo, foi acompanhada tanto pela ascensão do país como potência esportiva quanto pela internacionalização do cinema hollywoodiano, do fast-food e de estilos musicais anglo-saxônicos como o jazz, o pop e o rock.

Na virada dos anos 80 para os 90, quando o Japão era visto como o país do futuro, a TV brasileira passou a exibir diversos seriados de super-heróis japoneses. Jaspion era o meu preferido. Tenho um amigo brasileiro aqui na China que, ainda hoje, décadas depois, sabe cantar o tema de abertura, em japonês, de um desses seriados. Esse exemplo nos dá uma ideia de como o soft power é importante na promoção internacional de um país.

A economia japonesa estagnou logo após aquela euforia com o rápido crescimento do país, mas sua influência cultural se consolidou em segmentos como a cultura cosplay, o mangá e o anime.

A Coreia do Sul, por sua vez, conquistou espaço na cena cultural internacional por meio do K-pop e do sucesso de algumas produções cinematográficas e televisivas, como o filme Parasita e a série Round 6 (Squid Game).

Mas, e a China? Como explicar que uma civilização tão rica e diversa, que por muito tempo foi a grande referência cultural do Extremo Oriente, não conquiste destaque internacional na música, no cinema e nas artes plásticas, embora tenha artistas de grande talento?

Uma cultura voltada às necessidades do país

Em muitas conversas que tive com chineses e estrangeiros sobre este assunto, percebi que muito da dificuldade da China em ser competitiva nesses segmentos tem origem na própria cultura do país.

O termo chinês guanxi (relações) é central para entender isso. Ao contrário do conceito ocidental de relações sociais, em que as interações com outras pessoas geralmente buscam vantagens pessoais ou profissionais, o guanxi chinês implica um longo compromisso de lealdade e confiança — e isso é levado muito a sério.

Etimologicamente, o termo resulta da união de guan (fechar, conectar) e xi (sistema), trazendo a ideia de que é pelas conexões pessoais que o tecido social se forma, criando um modelo de sociedade característico da China.

Esse aspecto dialoga com elementos profundamente arraigados na cultura chinesa, como o taoismo e o confucionismo, doutrinas filosóficas que desencorajam o confronto e promovem a harmonia social, o culto aos ancestrais e o respeito à etiqueta.

O cultivo do guanxi faz com que o artista chinês evite ousadias que possam colocar em risco sua reputação social, desenvolvendo suas criações dentro de um sistema cultural milenar, específico da civilização chinesa e pouco familiar aos povos do hemisfério ocidental.

Como resultado, para compreender a arte chinesa é preciso aprender a apreciá-la como um chinês, imergindo no caldo cultural único do país asiático.

Instituto Confúcio - Ópera de Pequim

Da primeira vez que vi a Ópera de Pequim, por exemplo, estranhei o som dos instrumentos e senti falta de coordenação com o canto. Passei anos descobrindo a história, os movimentos, a técnica vocal, os instrumentos musicais, entre outros elementos, para aprender a apreciar as óperas tradicionais chinesas — criações complexas que exigem grande habilidade de músicos e atores.

A cena cultural internacional é ocidental?

É especialmente curioso notar que Japão e Coreia do Sul, sociedades historicamente sob grande influência cultural da China, só conseguiram destaque na cultura pop internacional após passarem por um processo incompleto de “ocidentalização”, que modificou o tecido social a ponto de encorajar a arte a contestar padrões e regras.

O filme coreano Parasita talvez seja o melhor exemplo disso, por polemizar em torno das contradições sociais. Um filme chinês assim seria improvável, já que a polêmica estimula conflitos em vez de harmonia social, contrariando uma das bases da civilização chinesa.

Esse apetite do público internacional por conhecer o “lado podre” de um país está por trás do sucesso de filmes brasileiros como Tropa de Elite e Cidade de Deus. Parece haver um pacto silencioso de que cada país deve expor e debater abertamente seus problemas para ser validado internacionalmente.

Talvez isso explique a insistência do Ocidente em querer arrancar de chineses no exterior algum comentário negativo sobre o país — como se apenas isso importasse. A internet está cheia de vídeos de chineses constrangidos, tentando se esquivar de questões polêmicas e buscando direcionar o diálogo para algo construtivo.

Mais que isso: no Brasil, sempre ouvi de artistas e do público que o papel da arte é provocar, chocar, botar o dedo na ferida, expor as vísceras. Boa parte dos artistas de renome internacional é associada à rebeldia, a hábitos excêntricos e a um estilo de vida individualista e descolado — valores pouco valorizados na sociedade chinesa.

Já na China, ouvi da diretora de uma escola de música que os artistas devem ser modelos de comportamento, não podem se envolver em escândalos nem promover hábitos considerados ruins, como beber e fumar. “Os pais chineses jamais deixariam seus filhos irem ao show de alguém que transgride as regras”, disse ela naquela ocasião.

Desde então, comecei a reparar no abismo que separa os artistas chineses dos estrangeiros. A cena cultural chinesa destaca a ancestralidade, com muitas tradições sendo passadas de pai para filho, artistas buscando referências nos clássicos e produtos culturais ancorados na tradição.

A China tem artistas de grande talento, que produzem obras admiráveis, mas criam à sua maneira, dentro dos valores e regras impostos pelo ambiente cultural ao qual pertencem. Isso levanta questionamentos sobre a inclusividade e a abertura da cena cultural internacional.

Reprodução Amazon

Há também outro ponto a lembrar: o livro Orientalismo, publicado por Edward Said nos anos 1970, denuncia um Ocidente que se recusa a ver o Oriente como ele é, preferindo descrevê-lo como exótico e atrasado para legitimar sua hegemonia. Os estereótipos são antigos, mas continuam presentes mesmo no mundo globalizado.

Primeiros passos rumo à internacionalização

Mas isso não quer dizer que a China não tenha uma cultura pop ou que artistas chineses não consigam acesso a palcos internacionais. Quem mora na China conhece a vida cultural vibrante do país, mas entende também que o país olha muito para si mesmo — e pouco para fora.

Ao longo de quase dez anos na China, testemunhei, por exemplo, a popularização das roupas tradicionais e de diversas outras tradições culturais antigas; ouvi canções entrarem na moda e depois sumirem; visitei exposições de artistas plásticos chineses e conheci o trabalho de calígrafos contemporâneos e antigos.

Também fiquei fascinado com o desenvolvimento do cinema e da literatura, sentindo-me estimulado a me aprofundar cada vez mais nesse mundo novo que se abre para quem decide viver na China. Mas a vida cultural do país é feita por chineses e para chineses.

Nos últimos anos, porém, há um fenômeno interessante: assim como as empresas chinesas, tradicionalmente voltadas ao mercado interno, agora começam a se aventurar em mercados estrangeiros, a cultura pop chinesa também dá seus primeiros passos rumo à internacionalização. Comecei a perceber isso ainda antes da pandemia, com o sucesso do TikTok no exterior.

Reprodução Nin Hao - marca chinesa de calçados Feiyue se popularizou na moda alternativa europeia.

Naquela mesma época, conheci uma jovem francesa apaixonada pela marca chinesa de calçados Feiyue, que aproveitou sua viagem à China para visitar lojas da marca e comprar modelos inexistentes no mercado europeu. Criada em 1950 como marca de tênis de kung fu, com design retrô minimalista, se popularizou na moda alternativa europeia.

O fenômeno Labubu

Nas últimas semanas, a imprensa chinesa passou a destacar a popularização das bonecas Labubu, da marca Pop Mart. Criação icônica do designer Kasing Lung, ilustrador e designer de Hong Kong, a boneca pertence a uma série de monstros que misturam elementos de contos de fadas europeus e da cultura popular chinesa, com toques de humor e fofura.

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Fundada em 2010, a Pop Mart se tornou uma febre na China ao explorar o nicho de brinquedos colecionáveis e artísticos, surfando na onda das caixas-surpresa — moda que estourou na China justamente na época em que me mudei para Pequim.

Divulgação Pop Mart - Wang Ning, fundador da Pop Mart.

Cheguei a conhecer o fundador da empresa, Wang Ning, em um fórum de jovens empreendedores. É um rapaz muito jovem, de estilo descolado, distante do perfil tradicional de um executivo. Talvez seja justamente por isso que conseguiu encontrar um nicho de mercado focado na geração Z e transformar seu negócio em um fenômeno global.

A Pop Mart também faz cocriações em parceria com marcas como Disney, Harry Potter e NBA. Em 2020, tive uma vizinha que sempre comprava bonecas da série Harry Potter: queria ter a coleção inteira, inclusive as de edição limitada — que costumam ser revendidas na internet a preços altíssimos.

Labubu é o fenômeno de vendas mais recente, caiu no gosto da geração Z e gerou grande engajamento nas redes sociais, com vídeos de unboxing alcançando mais de 4 milhões de visualizações em duas semanas e mais de 11 mil itens relacionados à venda no eBay.

O sucesso da boneca fez as vendas da Pop Mart crescerem mais de 160% em relação ao ano anterior, com o crescimento no mercado externo superando a marca de 470%.

Com produtos vendidos em quase 100 países e regiões, e uma legião de fãs que inclui personalidades famosas como Rihanna e David Beckham, a Pop Mart se consolida como um marco do soft power chinês, reposicionando o país no mercado de bens culturais.

* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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