A inteligência artificial tornou-se um dos principais campos de disputa entre as duas maiores potências globais. De um lado, a China defende uma governança multilateral, sob a liderança da ONU, com foco no desenvolvimento inclusivo, na soberania digital e no uso da IA como instrumento de bem comum. Do outro, os Estados Unidos adotam uma abordagem centrada na competição geopolítica, impondo restrições aos chineses, promovendo a desregulamentação interna e incentivando o avanço de suas gigantes tecnológicas.
Mais do que uma rivalidade tecnológica, a diferença entre as visões de Pequim e Washington reflete concepções opostas sobre governança global, valores políticos e o próprio futuro da ordem digital.
A China já consolidou sua posição com a Iniciativa de Governança Global da IA (GAIGI, da sigla em inglês), lançada pelo presidente Xi Jinping em outubro de 2023. O documento propõe regras internacionais para garantir que a IA seja segura, confiável, ética e voltada ao desenvolvimento equitativo.
Já os Estados Unidos, sob o governo de Donald Trump, revelaram nesta quarta-feira (23) seu primeiro plano abrangente para a IA desde o retorno do republicano à presidência. Um dos pilares centrais é o endurecimento dos controles de exportação, com foco direto na China.
China vai sediar evento sobre IA
O anúncio do plano dos EUA foi feito às vésperas da Conferência Mundial de IA de 2025 e da Reunião de Alto Nível sobre Governança Global da IA, reforçando o clima de rivalidade entre Washington e Pequim.
O evento será realizado neste sábado (26), em Xangai, com participação de autoridades de mais de 40 países e organizações internacionais. A diplomacia chinesa confirmou que o primeiro-ministro Li Qiang participará da cerimônia de abertura, onde fará um discurso sobre o papel da IA no desenvolvimento tecnológico global.
“A inteligência artificial está se desenvolvendo rapidamente e se tornando uma força motriz importante da nova rodada de revolução tecnológica e transformação industrial”, afirmou o porta-voz Guo Jiakun, do Ministério das Relações Exteriores da China, em coletiva de imprensa em Pequim.
Guo destacou que a realização da conferência representa um passo decisivo da China para implementar a GAIGI. Segundo ele, a intenção é consolidar o evento como referência mundial em quatro frentes: liderança tecnológica, demonstração de aplicações, aceleração industrial e fórum de governança internacional.
Sob o tema “Solidariedade Global na Era da IA”, a conferência terá como foco três eixos centrais:
- Aprofundar a cooperação em inovação e liberar o dividendo da inteligência;
- Promover o desenvolvimento inclusivo e reduzir a exclusão digital;
- Fortalecer a governança colaborativa para garantir que a IA seja usada para o bem.
“Esperamos que haja maior solidariedade, busca conjunta pelo desenvolvimento e ações coordenadas para promover um crescimento saudável e ordenado da IA — assegurando que ela seja uma força para o bem, a segurança e a equidade”, concluiu Guo.
A proposta da China para a governança global da IA
A GAIGI apresenta um modelo alternativo à hegemonia tecnológica ocidental. A proposta defende uma governança multilateral, ancorada na centralidade no ser humano, soberania digital, inclusão global e benefício mútuo. A China propõe que a ONU seja o fórum central para negociação de normas internacionais, com ampla participação do Sul Global e respeito à autonomia regulatória de cada país.
Entre os pilares da GAIGI estão a governança baseada em risco, com regras flexíveis e adaptáveis; a exigência de transparência técnica e de proteção de dados pessoais; e a garantia de que os sistemas de IA permaneçam sob controle humano. A proposta também rejeita a formação de blocos restritivos de tecnologia e promove um sistema mais equitativo de acesso e regulação.
Nesse contexto, a China lançou o Grupo de Amigos pela Capacidade em IA, voltado à capacitação de países em desenvolvimento — especialmente na África — por meio de treinamentos técnicos, intercâmbios e seminários multilaterais. O objetivo é incluir o Sul Global na formulação das regras internacionais da IA, superando a histórica marginalização desses países nos processos decisórios globais.
Internamente, a China já estabeleceu desde 2021 um arcabouço regulatório sólido, com normas sobre algoritmos, privacidade, IA generativa e segurança cibernética. Um comitê técnico formado por universidades, centros de pesquisa e empresas como a Baidu define padrões nacionais que servem de referência para a atuação internacional do país.
No plano estratégico, Pequim busca construir uma reputação de líder confiável na formulação de normas globais, apresentando sua abordagem como mais democrática e transparente. A GAIGI atua ainda como um mecanismo de defesa contra a contenção tecnológica imposta por potências ocidentais, reforçando a narrativa de que todos os países devem ter o direito de desenvolver sua própria IA.
A proposta dos EUA sob Trump
Intitulado “America’s AI Action Plan: Winning the Race”, o plano dos EUA reúne cerca de 90 ações federais, distribuídas em três eixos: inovação acelerada, infraestrutura de IA e liderança global.
O documento prevê o fechamento de brechas nas restrições à exportação, especialmente de equipamentos de fabricação de chips, e o uso de ferramentas de geolocalização para impedir o acesso à tecnologia por “países de interesse”, como a China.
No campo interno, o plano promove desregulação e expansão da infraestrutura, com flexibilização de normas ambientais e construção de data centers e fábricas em terras federais. Também inclui a ampliação da rede elétrica para sustentar o consumo energético da IA.
A estratégia de exportação tecnológica mira países aliados, com pacotes que combinam hardware, software, modelos e padrões técnicos, promovendo uma rede global de influência liderada pelos EUA.
Durante a cúpula de IA em Washington, Trump adotou um tom ideológico, rejeitando o termo “artificial” e prometendo combater a chamada IA “woke”. O plano define critérios de “verdade objetiva” para a contratação de sistemas por órgãos públicos, banindo modelos considerados enviesados.
Empresas como OpenAI, Meta e Microsoft receberam o plano de forma positiva, destacando seu potencial para impulsionar inovação e criar empregos. No entanto, especialistas alertam para riscos éticos, impactos ambientais e concentração de poder tecnológico.
Geopoliticamente, o plano intensifica a rivalidade com a China, e deve levar Pequim a redobrar os esforços de autossuficiência em chips e IA.
Encruzilhada sobre o futuro da IA
As estratégias da China e dos Estados Unidos para a inteligência artificial expõem não apenas uma corrida tecnológica, mas uma disputa por modelos de governança global. Enquanto Pequim propõe uma abordagem cooperativa e inclusiva, centrada no multilateralismo e no desenvolvimento equitativo, Washington aposta no domínio estratégico e na consolidação de alianças sob sua liderança. O confronto entre essas visões moldará o futuro das tecnologias emergentes — e possivelmente da ordem mundial.