CHINA EM FOCO

O que está acontecendo com a sucessão do Dalai Lama?

Em meio aos 90 anos, líder tibetano desafia Pequim e vira pivô de disputas que misturam fé, identidade e geopolítica

O que está acontecendo com a sucessão do Dalai Lama?.Em meio aos 90 anos, líder tibetano desafia Pequim e vira pivô de disputas que misturam fé, identidade e geopolíticaCréditos: Wikipedia
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Neste domingo (6), o 14º Dalai Lama, Tenzin Gyatso, completa 90 anos. Em meio às celebrações, o líder espiritual reacendeu uma disputa que vai muito além da fé: quem decidirá seu sucessor. No dia 2 de julho, ele anunciou que a escolha será organizada apenas pelo Gaden Phodrang Trust, instituição criada por ele mesmo para garantir que sua próxima reencarnação ocorra livre da influência de Pequim, mesmo vivendo exilado na Índia desde 1959.

O que diz a China

Para o governo chinês, a reencarnação do Dalai Lama não é apenas uma questão espiritual — é uma questão de soberania, lei e estabilidade nacional. Desde o século XVIII, a tradição tibetana — hoje sob a administração da Região Autônoma de Xizang (nome oficial em chinês para o Tibete) — exige que o processo siga rituais históricos, como o sorteio na urna dourada e a aprovação final do governo central. Essa prática foi reafirmada na legislação moderna, como o Regulamento sobre a Administração da Reencarnação dos Budas Vivos do Budismo Tibetano (2007).

Pequim considera qualquer tentativa de escolher um Dalai Lama fora da China ilegal e uma manobra para “politizar a religião”. No dia 2 de julho, a porta-voz Mao Ning, do Ministério das Relações Exteriores, reiterou que “a reencarnação deve seguir a urna dourada e ter aval do governo central, conforme as tradições históricas e as leis vigentes”.

Em artigo publicado no jornal russo Rossiyskaya Gazeta, em 30 de junho, o embaixador da China em Moscou, Zhang Hanhui, também criticou a possibilidade de o Dalai Lama definir um sucessor fora das normas tradicionais e do controle de Pequim. Para ele, essa ideia é uma “falácia para enganar a comunidade internacional”.

O diplomata destacou que o mecanismo de sucessão existe há mais de 700 anos, sempre supervisionado pelo governo central, e que desde 1793, por lei, a escolha deve seguir o sorteio na urna dourada e receber aprovação oficial.

Zhang ainda lembrou que, desde 2007, mais de 100 Budas Vivos já passaram pelo processo de reencarnação dentro dessas regras, com “amplo reconhecimento da comunidade religiosa”. Para ele, isso mostra que a sucessão é “um assunto interno da China”, assim como outras nações administram suas questões religiosas conforme suas leis.

No mesmo texto, Zhang exaltou o desenvolvimento do Tibete nas últimas décadas, afirmando que a região “erradicou completamente a servidão feudal, superou a pobreza extrema e entrou no caminho da modernização à chinesa”. E concluiu: “Acreditamos que o Tibete continuará a abrir um futuro ainda mais próspero e promissor.”

A disputa geopolítica por trás da polêmica

Na prática, o debate sobre a sucessão vai além do campo religioso. Para Pequim, permitir que o Dalai Lama escolha livremente seu herdeiro abre espaço para narrativas separatistas e enfraquece o controle sobre Xizang. Não à toa, a Rússia, parceira estratégica da China, apoia essa visão e reconhece que Xizang faz parte inegociável do território chinês.

Estados Unidos, União Europeia e grupos parlamentares pró-Tibete defendem que o Dalai Lama tenha liberdade total para decidir se, quando e onde vai reencarnar. Para esses governos, ele é um símbolo de “resistência cultural” — mas, para Pequim, trata-se de um garoto-propaganda explorado pelo Ocidente para inflamar tensões e questionar a soberania chinesa.

Por que isso importa

Para milhões de tibetanos, o Dalai Lama é muito mais do que um líder espiritual: desde que foi reconhecido como 14º Dalai Lama em 1940, transformou-se em símbolo de identidade cultural, autonomia religiosa e resistência frente ao controle chinês. Essa aura se consolidou em 1959, quando, aos 23 anos, ele deixou Lhasa durante a Revolta Tibetana e se exilou na Índia, onde vive até hoje.

Nas décadas seguintes, seu status de ícone global foi reforçado por prêmios como o Nobel da Paz (1989), recebido por sua defesa da “via do meio”, que propõe autonomia cultural para o Tibete sem exigir independência formal. Desde então, tornou-se presença constante em universidades, reuniões com chefes de Estado e eventos internacionais, consolidando sua imagem de “paz e compaixão”.

No entanto, essa imagem não ficou imune a controvérsias. Em abril de 2023, viralizou um vídeo em que o Dalai Lama pede a uma criança que “chupasse sua língua” durante uma cerimônia pública na Índia — episódio que gerou constrangimento global e pedidos de desculpas.

Além disso, suas declarações sobre o lugar das mulheres no budismo também geraram críticas: em 2015 e 2019, o líder afirmou em entrevistas que, se uma mulher fosse Dalai Lama, deveria ser “muito atraente”, senão “não serviria de muito”. As falas foram consideradas machistas e obrigaram seu gabinete a se retratar.

As polêmicas também atingiram temas como imigração. Em 2016, o Dalai Lama declarou que a Europa “não deveria se tornar árabe ou muçulmana”, defendendo que refugiados voltassem para seus países assim que possível. Em 2018, na Suécia, reiterou que “a Europa pertence aos europeus” e que acolher “demasiados” imigrantes muçulmanos alteraria a cultura local — comentários que repercutiram negativamente entre defensores de direitos humanos.

Apesar de tudo, o Dalai Lama segue sendo usado como símbolo em campanhas pró-direitos humanos e citado por líderes ocidentais para pressionar a China em fóruns internacionais. Para Pequim, esse protagonismo midiático é explorado para questionar a soberania chinesa sobre Xizang e sustentar discursos separatistas.

O que esperar agora?

O Dalai Lama promete detalhar em breve como seu sucessor será escolhido por sua fundação — algo que contraria abertamente a lei chinesa. Cada nova declaração reacende o embate entre o controle estatal e o discurso de liberdade espiritual que o Ocidente projeta.

Assim, o Dalai Lama segue como peça central de uma disputa global em que sua imagem, venerada ou criticada, é usada conforme interesses geopolíticos — ora como voz de fé, ora como instrumento de pressão anti-China.

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