Entre os dias 28 e 30 de julho, visitei a cidade de Ruian, na província de Zhejiang, no leste da China, para uma experiência imersiva do patrimônio cultural local, em companhia de uma delegação de jovens escritores japoneses premiados no evento Panda Cup, que ganharam uma viagem à China para conhecer de perto a cultura milenar do país.
O concurso de ensaios Panda Cup
Coorganizado pelo Centro Ásia-Pacífico do Grupo de Comunicações Internacionais da China (CICG, da sigla em inglês), pela embaixada da China em Tóquio e pela Associação Japonesa de Promoção da Ciência, o concurso de ensaios Panda Cup estimula jovens japoneses a produzirem textos apresentando suas ideias e experiências relacionadas à China.
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Qualquer jovem de nacionalidade japonesa com idade entre 16 e 35 anos pode participar do concurso, e os autores dos textos premiados recebem convite para visitar a China, conhecer melhor sua cultura e participar de intercâmbios culturais com jovens chineses.
O evento acontece anualmente há onze anos, contabilizando mais de seis mil ensaios escritos por jovens de diferentes regiões do Japão, tendo trazido 170 autores premiados para visitar a China.
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A cerimônia de premiação deste ano aconteceu no dia 27 de junho, em Pequim. Em seu discurso, Du Zhanyuan, presidente do CICG, destacou que os ensaios dos jovens japoneses para este concurso expressam sinceramente o entusiasmo e o interesse da juventude japonesa em conhecer e entender a China, além do desejo de que os povos dos dois países aprofundem ainda mais a amizade a cada geração.
Os premiados deste ano visitaram a capital Pequim, depois Ruian e, por fim, foram a Chengdu, na província de Sichuan. Eu os acompanhei somente em Ruian.
Descobrindo laços históricos entre China e Japão
Esta foi minha segunda visita à província de Zhejiang. A primeira ocorreu em 2021, quando fui à região onde fica o monte Tiantai para participar do Fórum de Hehe, no qual descobri uma bela história relacionada à amizade China-Japão.
Hehe é um antigo conceito chinês que evoluiu no monte Tiantai, cuja essência está na ideia de combinar harmonia com diversidade. O monte Tiantai atesta uma longa história de convivência harmônica e pacífica entre budistas e taoistas.
Foi no monte Tiantai que nasceu a escola Tiantai do Budismo, criada pelo monge Zhiyi (538–597 d.C.), um dos mais importantes mestres do budismo na China. Mais tarde, a escola Tiantai influenciou o surgimento do budismo Zen — o mais popular no Brasil — e também deu origem à escola japonesa Tendai, no século IX.
Naquela época, monges japoneses vinham com frequência ao monte Tiantai para aprender e realizar intercâmbios com seus colegas chineses, contribuindo para aprofundar a amizade entre os dois povos.
Em Ruian, descobri, junto com os jovens ganhadores do Panda Cup, outros vestígios dos intercâmbios entre China e Japão durante uma visita a Yuhailou, um famoso complexo arquitetônico construído em 1888, no final da dinastia Qing, sob ordens de Sun Yiyan e seu filho Sun Yirang.
O complexo é dividido em três prédios ao longo de um eixo leste-oeste. Na extremidade oriental está a biblioteca Yuhai, que foi uma das quatro grandes bibliotecas de Zhejiang, com área de aproximadamente cinco mil metros quadrados. No meio está a torre Baijin Tao Zhai. E, na extremidade ocidental, fica a casa de Sun Yirang.
Diante da biblioteca, há uma caligrafia gravada em pedra, registrando a história e a construção do prédio, bem como a origem dos livros, com uma passagem curiosa: “livros trazidos do Oriente pelo mar, muitos deles nunca antes vistos na China”. A frase se refere a uma grande coleção de livros japoneses adquiridos pela família Sun por meio de seus laços comerciais com a cidade de Nagasaki.
Junto ao corredor que liga a biblioteca à casa de Sun Yirang, há uma inscrição da dinastia Ming, feita por Jiang Ligang, um dos grandes mestres da caligrafia chinesa, cujo estilo teve grande influência nas gerações posteriores e tornou-se famoso também no Japão, tanto que seus traços foram eternizados no Portal Nacional da Cidade de Kioto.
Também visitamos algumas lojas, inclusive uma especializada em artesanato e Patrimônio Cultural Imaterial. Além de ver as obras de artesãos locais, os jovens se entusiasmaram com uma máquina que usa inteligência artificial para criar esculturas de açúcar — um patrimônio cultural imaterial da China — conforme o desejo do cliente. É um exemplo de como a tecnologia pode se unir à tradição.
Experimentando o Patrimônio Cultural Imaterial
Após a visita a Yuhailou, fomos à Academia Yishan conhecer duas das quatro grandes invenções da China antiga: o papel e a impressão. Lá, o mestre Lin Tianju, herdeiro da técnica de fabricação de papel de Wenzhou, nos orientou enquanto fazíamos leques redondos de papel de Wenzhou, um patrimônio cultural imaterial local.
Feito de casulos de bicho-da-seda, o papel me pareceu bem primitivo e frágil em comparação aos papéis modernos, mas foi emocionante ter em mãos um papel produzido de acordo com uma técnica tão antiga, semelhante ao primeiro papel do mundo.
O mestre Lin nos ensinou a imprimir sobre esse papel usando a técnica de impressão por tipos móveis de madeira de Ruian, baseada na técnica inventada por Bi Sheng, na dinastia Song do Norte (960–1127).
Para imprimir, é preciso primeiro besuntar com tinta os tipos móveis, sobre os quais estão os negativos dos ideogramas esculpidos em relevo. A técnica consiste em transferir a tinta para o papel, pressionando-o levemente com uma almofada, tomando cuidado para que o papel não se mova, o que resultaria em uma impressão borrada.
Pressionei cada tipo móvel várias vezes, certificando-me de que cada detalhe fosse reproduzido no papel. Como o papel é fino, pude ver a tinta sendo absorvida e aparecendo do outro lado. Depois de imprimir o texto, adicionei dois ideogramas com um carimbo, conforme a tradição chinesa.
Em seguida, cada um colou seu papel com texto impresso e carimbo sobre um leque, para depois recortá-lo e obter um item exclusivo que reúne duas heranças culturais de Ruian: o papel e a impressão.
De lá, fomos a um teatro assistir a uma apresentação da Ópera do Sul (ou Nanxi), um estilo de ópera chinesa criado por Gao Ming (c. 1305–1370), também conhecido como Gao Zecheng, dramaturgo e poeta da dinastia Yuan, nascido em Ruian.
A Ópera do Sul é um patrimônio cultural nacional da China, que mais tarde serviu de referência para a Ópera Kunqu, que, por sua vez, deu origem à Ópera de Pequim.
À tarde, visitamos a vila Dongyuan, o único lugar no mundo onde a técnica de impressão por tipos móveis de madeira ainda hoje é transmitida de geração em geração.
Em 2011, a técnica foi inscrita na lista da Unesco de Patrimônio Cultural Imaterial que Requer Medidas Urgentes de Salvaguarda, reunindo tradições, conhecimentos e práticas ameaçados de desaparecer caso não recebam algum tipo de proteção.
Na vila, há um museu sobre essa técnica de impressão, que reúne sua história e evolução, apresenta obras impressas com essa técnica e antigos equipamentos, entre outros itens que permitem ao visitante compreender o contexto histórico em que essa técnica surgiu e seu impacto no mundo.
De lá, fomos ao ateliê dos atuais herdeiros deste patrimônio cultural imaterial para conversar com eles e vê-los trabalhando. Além de demonstrar a técnica, os artesãos presentearam cada visitante com uma mensagem personalizada impressa através dessa técnica.
Meu convívio com os jovens japoneses
No Brasil, sempre tive a impressão de que os japoneses são mais introvertidos e atados a formalidades do que os chineses. Quando vim morar na China, essa impressão se acentuou ainda mais por conta da hospitalidade e simpatia que sempre marcaram minha relação com os chineses.
Mas essa viagem mudou minha impressão sobre os japoneses em geral: quando viajo com pessoas que não conheço, sejam chineses ou de outras nacionalidades, geralmente levamos vários dias para nos enturmar. Dessa vez, passei somente um dia com os japoneses, mas bastaram algumas horas para eu me sentir extremamente confortável, como se fôssemos amigos de longa data.
A pessoa com quem mais conversei foi uma jovem que se sentou ao meu lado no café da manhã. Ela é filha de mãe chinesa e pai japonês, nasceu e cresceu em Tóquio, mas, por conta da origem de sua mãe, se interessou pela cultura chinesa e decidiu aprender a língua. Essa foi sua segunda visita à China, mas a primeira a Zhejiang.
Dois rapazes japoneses, um de Tóquio e outro de Kioto, mostraram-se interessados em saber por que decidi vir para a China e como é viver aqui. Conversamos muito durante o almoço, e eles me convidaram a conhecer o Japão, deram conselhos sobre lugares para visitar e também afirmaram ter interesse em visitar o Brasil.
Nenhum deles sabia que japoneses são isentos de visto de turismo para o Brasil, algo que facilita e estimula intercâmbios entre os dois povos. Eles também me perguntaram a respeito da comida: não gostam de alimentos picantes e tinham receio de que a comida brasileira fosse muito apimentada. Durante essa conversa, entenderam que muitos pratos brasileiros são adequados ao seu paladar.
Os japoneses preferem alimentos frescos e gostam de sentir o gosto da comida sem temperos fortes, ao contrário dos chineses, em sua maioria acostumados a sabores mais picantes.
A culinária de Zhejiang, uma das Oito Cozinhas da China, mostrou-se adequada ao paladar deles, por ser uma tradição culinária que destaca o sabor natural dos alimentos, valorizando não os temperos, mas o frescor dos ingredientes e o equilíbrio entre diferentes sabores.
Também conversei com uma jovem japonesa que mora em Hong Kong, onde trabalha para uma empresa japonesa, e com outra que vive em Tóquio e é autora de mangás. Ela sabe da popularidade do mangá no Brasil e gostaria de visitar o país algum dia.
À noite, fomos a um evento cultural em um belo parque com uma lagoa, onde assistimos a apresentações culturais e visitamos uma feira de Patrimônio Cultural Imaterial. Na ocasião, pude perceber mais nitidamente o interesse dos jovens japoneses pela cultura chinesa e seu desejo de ajudar a fortalecer os laços entre os dois países.
Essa experiência me fez perceber a importância da promoção dos intercâmbios culturais para a construção de uma cultura de paz entre os povos do mundo, sendo a Panda Cup um exemplo interessante de como isso pode ser fomentado por meio de iniciativas simples.
* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum