Quando a Ford fechou sua fábrica em Camaçari, na Bahia, em 2021, o impacto foi profundo. Não apenas pelo número de empregos perdidos, mas pelo que o gesto simbolizava: o esgotamento de um modelo industrial baseado na dependência externa e na fragilidade da política industrial brasileira. Era como se o país, diante de um novo ciclo global de transformação tecnológica, estivesse sem rumo e sem projeto.
Mas a história não termina aí.
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Quatro anos depois, no mesmo chão onde uma era se encerrou, algo novo começa a surgir. Em 1º de julho de 2025, a chinesa BYD apresentou as primeiras unidades de veículos elétricos produzidas em sua planta de Camaçari. Mais do que a volta da produção automobilística na região, o fato sinaliza um movimento maior: o Brasil começa, mesmo que timidamente, a se recolocar na cadeia global da eletromobilidade.
O destaque ficou com o Dolphin Mini, o primeiro carro elétrico produzido em série no país, seguido do SUV híbrido Song Pro. Em breve, será a vez do sedã King. A nova planta representa uma tentativa concreta de alinhar produção nacional à transição energética e a uma geopolítica de cooperação.
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O investimento supera 5,5 bilhões de reais e mira 300 mil veículos por ano até 2026, com foco tanto o mercado interno quanto dos nossos vizinhos da América do Sul. O complexo inclui também a montagem de ônibus e caminhões elétricos e uma unidade de insumos para baterias, elemento-chave para a soberania tecnológica. Camaçari se torna, assim, um verdadeiro polo sul-americano da nova indústria automotiva.
Mas essa reindustrialização em curso carrega outro simbolismo. O retorno produtivo em solo baiano, fora do tradicional eixo Sudeste, revela uma geografia do desenvolvimento que precisa ser reimaginada. A chegada da BYD, com capacidade de até 150 mil veículos por ano e potencial de gerar até 20 mil empregos diretos e indiretos, não é apenas um movimento empresarial. É uma aposta estratégica de que o Brasil ainda pode protagonizar um ciclo de crescimento baseado em inovação, transição energética e produção com valor agregado.
O movimento ocorre em meio a um dado eloquente. Desde maio, o Brasil tornou-se o maior importador de veículos chineses, especialmente elétricos e híbridos. As vendas desses modelos cresceram 187% em 2024. Apesar da produção local alcançar 2,5 milhões de unidades, a defasagem tecnológica da indústria nacional ficou evidente. O risco é claro: ou o Brasil se reposiciona com ousadia, ou continuará assistindo à transformação global do banco do passageiro.
A ofensiva da BYD vai além dos muros fabris. A empresa já opera uma rede de mais de 450 estações de recarga e aposta em soluções como o AutoCarga, que dispensa cartões ou aplicativos, além de manter centros de pesquisa em Campinas. Sua atuação em energia solar e armazenamento avança, consolidando-se como fornecedora de soluções integradas para a mobilidade do futuro. Essa estratégia responde a uma das maiores barreiras à adoção de veículos elétricos no país: a infraestrutura de recarga. Uma pesquisa mostra que boa parte dos potenciais compradores brasileiros hesita diante da escassez de pontos de recarga públicos e do alto custo para instalar carregadores residenciais. A insuficiência da rede pública e o custo de instalação doméstica ainda freiam muitos potenciais compradores.
Para além desse freio estrutural, há ainda a reação do próprio setor automotivo. A entrada de um player com escala e eficiência incomodou concorrentes tradicionais. A Anfavea, por exemplo, acusa os chineses de concorrência desleal. Na verdade, trata-se de um modelo produtivo superior, baseado em escala global, integração tecnológica e planejamento industrial. Justamente o que falta ao Brasil há décadas, graças à complacência com políticas neoliberais e ao desmonte da capacidade estatal de indução ao desenvolvimento.
O que está em curso é mais que uma reconfiguração industrial. É a chance de construir uma nova lógica produtiva, com empregos qualificados, transferência tecnológica, estruturação de cadeia local e fortalecimento exportador. É um modelo que une crescimento econômico e responsabilidade ambiental, capaz de recolocar o Brasil no mapa das nações inovadoras.
Para que essa transformação se concretize, no entanto, é fundamental que haja coordenação pública e investimento estratégico. Ainda que de forma parcial, o Estado tem dado passos importantes para estimular a eletrificação e a reindustrialização no país. Medidas como a redução do IPI para veículos elétricos produzidos localmente e os incentivos do programa Rota 2030 abriram caminho para investimentos como o da BYD em Camaçari. Da mesma forma, ações voltadas à valorização do conteúdo local, como isenções de ICMS e créditos presumidos de PIS/Cofins, têm contribuído para o início da formação de uma base produtiva mais robusta.
No entanto, sem uma política pública nacional consistente e articulada, o risco é o de repetir erros históricos. O país pode acabar se limitando ao papel de montador de tecnologias desenvolvidas fora do seu território, com baixa agregação de valor.
O Brasil precisa estabelecer metas concretas, fomentar a pesquisa nacional e conquistar soberania tecnológica sobre baterias e sistemas inteligentes. Essa não é uma preocupação isolada. A União Europeia adotou tarifas extras de até cerca de 38 % sobre veículos elétricos chineses enquanto investe em medidas para atrair indústrias de baterias e matérias-primas críticas, com base no Critical Raw Materials Act.
A Índia, por sua vez, criou programas como o PLI (Production Linked Incentive), que oferecem benefícios fiscais vinculados à fabricação de veículos elétricos e componentes estratégicos em solo indiano. Essas estratégias mostram que não basta consumir tecnologias, é preciso disputá-las com visão de futuro.
No Brasil, o desafio é ainda maior porque não se parte do zero, mas de uma base industrial que foi, por décadas, acomodada e protegida. Agora, diante das transformações em curso, parte do setor reage com defensividade em vez de ousadia. Paradoxalmente, é essa pressão externa que pode ser o catalisador de uma virada. A eletrificação não deve ser vista como ameaça. É uma oportunidade concreta para construir um novo projeto nacional de desenvolvimento, com inovação, trabalho qualificado e inserção soberana nas cadeias globais.
Por isso, ao olhar para Camaçari, vê-se mais do que uma fábrica. Vê-se um símbolo de retomada possível. Uma prova concreta de que o Brasil pode e deve ser protagonista da transição industrial do século XXI. Desde que tenha vontade política e visão estratégica. Não está em jogo apenas o sucesso da BYD. Está em jogo o futuro da indústria nacional e o papel do Brasil em um mundo em transformação. A escolha está diante de nós. Liderar ou assistir. Decidir ou apenas reagir. Produzir o futuro ou consumir o passado.
* Filipe Porto, pesquisador no Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil, o OPEB, da UFABC.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum