Recentemente, uma visita a Chengdu — capital da província de Sichuan, no sudoeste da China — me deu a oportunidade de voar pela primeira vez no COMAC C919, o jato comercial desenvolvido pela potência asiática para competir com a estadunidense Boeing e a francesa Airbus na categoria narrow-body (fuselagem estreita, com apenas um corredor central).
A experiência começa já na compra das passagens: além de representar uma novidade, o jato chinês é uma prova concreta do avanço tecnológico do país e motivo de orgulho nacional. Não por acaso, os aplicativos de venda de bilhetes aéreos costumam destacar os voos que utilizam essa aeronave.
Te podría interesar
Cheguei ao portão de embarque no momento exato em que o avião se aproximava, o que me permitiu acompanhar os procedimentos de desembarque do voo anterior. De repente, fui surpreendido por um garoto que, apontando para a aeronave, exclamou: “Uau, é um C919!”, demonstrando entusiasmo por ver de perto um jato comercial desenvolvido na própria China.
A viagem
A primeira entrega de um C919 aconteceu em dezembro de 2022, sendo a China Eastern a operadora inaugural e principal do modelo. A COMAC, como toda nova fabricante de aeronaves, enfrenta dificuldades para acelerar a produção, tendo entregue poucas unidades até agora. E, como todo mundo quer experimentar o jato nacional, os voos costumam lotar.
Te podría interesar
Antes de entrar no avião, reparei no nariz arredondado com integração suave à fuselagem. Sendo uma empresa nova, a COMAC teve total liberdade para criar um design moderno e funcional, buscando integrar o que existe de melhor no mercado.
Um exemplo é o compartimento de bagagens em formato retangular, semelhante ao utilizado pela Airbus. Esse desenho otimiza o espaço disponível e agiliza os processos de embarque e desembarque — algo especialmente relevante no mercado chinês, onde os passageiros preferem levar a bagagem de mão em vez de despachá-la.
A cabine, de corredor único, com três poltronas de cada lado, me surpreendeu pela beleza, pelo espaço e pelo conforto, oferecendo bom espaço para as pernas. Vale destacar, no entanto, que a configuração interna é definida pelas companhias aéreas, que decidem aspectos como a posição dos banheiros e a distância entre os assentos. Assim, a experiência pode variar de uma aeronave para outra, sem que isso esteja relacionada ao fabricante ou ao modelo em si.
As bandejas instaladas à frente dos assentos chamaram minha atenção pelo design diferente. Gostei da funcionalidade, especialmente do suporte para celular ou tablet. Porém, durante o voo, ao usar meu computador para trabalhar, achei a bandeja um pouco pequena — ainda que suficiente para as necessidades dos passageiros.
O compartimento sob a poltrona da frente, onde coloquei minha mochila, mostrou-se prático e com espaço bem aproveitado. Outro ponto positivo foi a presença de tomadas USB bem posicionadas, permitindo carregar os dispositivos eletrônicos durante o voo. A viagem transcorreu de forma tranquila, e chegamos a Pequim no horário previsto.
Cópia da Embraer?
Alguns brasileiros acreditam que o jato chinês seria uma “cópia” dos E-Jets da Embraer — informação equivocada, já que o C919 pertence a uma categoria diferente, de aeronaves maiores, com seis assentos por fileira, enquanto os E-Jets são jatos regionais, de fuselagem mais estreita.
A ideia de “cópia” se baseia no fato de que a Embraer teve uma joint venture com a chinesa AVIC, mas encerrou sua linha de produção no país asiático em 2016, enquanto o primeiro voo do C919 ocorreu no ano seguinte. Essa linha do tempo alimenta a tese de que os chineses, após aprenderem a fabricar os jatos da empresa brasileira, teriam dispensado a parceira e passado a produzir os seus próprios.
A realidade, no entanto, é bem mais complexa. A joint venture da Embraer na China se limitava à montagem e certificação do ERJ-145, um jato regional com capacidade para 50 passageiros.
Os chineses recebiam a aeronave desmontada e a montavam em solo nacional, tendo recebido da Embraer apenas os conhecimentos necessários para montagem e certificação. Isso certamente foi de grande ajuda para o programa aeronáutico da China, mas não seria suficiente para desenvolver um avião novo. Detalhes técnicos mostram que o C919 tem mais semelhanças com os jatos da Airbus.
Nos anos 2000, o ERJ-145 era o avião ideal para o mercado chinês, em rápido crescimento, mas ainda repleto de rotas com demanda insuficiente para justificar aeronaves maiores.
O acelerado desenvolvimento do país levou a um aumento constante no número de passageiros, impulsionando as companhias aéreas a encomendar o Boeing 737 e o Airbus A320. As vendas do ERJ-145 caíram drasticamente, tornando insustentável sua produção na China.
Ao mesmo tempo, os chineses perceberam o risco geopolítico de depender de aeronaves e peças importadas, decidindo desenvolver uma solução doméstica. Foi nesse contexto que começaram a projetar o C919 para concorrer diretamente com as gigantes Boeing e Airbus, em uma categoria de capacidade superior à dos E-Jets da fabricante brasileira.
A competição com a Embraer é secundária: o maior jato comercial da empresa brasileira, o E-195 E2, tem capacidade para até 146 passageiros, próxima da menor variante do C919, que leva 158.
Assim, pode-se dizer que, no mercado de jatos para cerca de 150 passageiros, chineses e brasileiros podem vir a se tornar concorrentes no futuro. O foco da COMAC, contudo, é desenvolver aeronaves maiores e romper o duopólio Airbus-Boeing em segmentos nos quais a Embraer não atua.
Rumo ao futuro
Apesar do sucesso do C919 no mercado chinês, a COMAC ainda terá grandes desafios até que suas aeronaves possam competir de fato com as duas gigantes do mercado internacional. Um problema é obter certificações das agências reguladoras de países estrangeiros.
Esse desafio é amplificado pela tensão geopolítica internacional, que pode tanto atrasar processos de certificação quanto aumentar o risco de que a empresa, dependente de componentes ocidentais, sofra sanções. Os chineses estão desenvolvendo substitutos nacionais para os atuais componentes importados das aeronaves, mas levará tempo até que esses produtos atinjam a maturidade e qualidade necessárias.
Também há desafios técnicos e comerciais a serem enfrentados, como a falta de uma rede global de suporte pós-venda, a preferência natural de possíveis clientes estrangeiros por produtos já consolidados no mercado e a escassez de dados sobre o desempenho do C919 no longo prazo. Por esse motivo, a COMAC deverá primeiro se consolidar no mercado doméstico antes de buscar voos mais altos.
* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital da China, há nove anos.
* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.