Neonazistas brigam por território em aldeia na Alemanha

Extrema direita utiliza campos para treinar tiros na floresta e realizar ameaças à população

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Neonazistas estão utilizando partes pouco povoadas na Alemanha para fazer campos de treino de tiros, além de locais seguros para se esconderem. Antes identificados facilmente pelos desacatos, vestimentas rasgadas e de uma marca única, hoje os homens deixam a barba crescer, as mulheres não vestem calças, defendem bandeiras ecológicas e um estilo de vida tradicional.

“Pensava que eram pessoas que viam muitos filmes de terror, meio malucas, mas inofensivas. Mudei de ideia”, afirmou o político Heiko Böhringer, da cidade de Ludwigslust, no norte da Alemanha após ver seu nome e sua casa em uma lista de inimigos de um dos grupos.

Eles aproveitam a região com poucas pessoas e com muitos espaços livres para realizarem treinos militares e de sobrevivência para aquilo que denominam como o “Dia X”, um dia mítico no calendário da extrema direita no qual um acontecimento (não se sabe qual) fará desabar o sistema democrático e eles tomarão o poder na Alemanha, segundo as palavras do perito em prevenção Daniel Trepsdorf.

Laboratório da extrema direita alemã

A ocupação das famílias neonazistas em Jamel, outra cidade pequena do interior alemão e também situada no estado federado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, assim como Ludwigslust, fizeram com que percebessem que o estado se tornou um “laboratório” da extrema direita, de acordo com Trepsdorf.

A cidade de Jamel se destacou pelo fato de um casal que decidiu fazer frente ao neonazismo da extrema direita alemã.

Birgit e Horst Lohmeyer, escritora e artista, compraram a casa para sair da cidade em que viviam em Hamburgo, já cientes de que um neonazista morava no local. O que eles não sabiam é que ele não era o único. As casas de sua rua estavam completamente ocupadas pela extrema direita.

Pressionados a sair, se recusaram e iniciaram a resistência com ações locais e um enorme festival anual.

Eles seguem firmes mesmo depois de um incêndio criminoso ocorrido em 2015. Uma pessoa alertou o foco do fogo em seu início e maiores estragos foram evitados. Os dois agora estão sob proteção policial.

O festival deste ano teve seus 300 ingressos (número menor por causa da pandemia do coronavírus) esgotados em dois minutos.

Estavam no show Omas gegen Rechts (avózinhas contra a direita). Os músicos do festival só são revelados quando uma cortina na frente do palco. Lá já tocaram músicos conhecidos como Die Ärtzte, Die Toten Hosen e Herbert Grönemeyer.

O festival tem forte presença policial e entradas controladas para evitar ataques dos neonazistas. Os organizadores também pedem para os visitantes evitarem fazer turismo nas ruas ocupadas pela extrema direita.

Birgit Lohmeyer diz que o festival é uma força importante e defende a divulgação dos mecanismos com que a extrema direita utiliza para se apropriar de lugares e instituições.

Escolas são alvo para doutrinação neonazista de crianças

O perito Daniel Trepsdorf, membro de um centro de prevenção de extremismo situado na cidade de Ludwigslust, afirmou ao jornal Folha de S. Paulo por telefone, que as escolas são o ponto de entrada da extrema direita para cooptar as crianças. Na Alemanha, o ensino em casa não é permitido e elas precisam frequentar as aulas.

Mesmo com as dificuldades óbvias em locais ocupados por várias famílias neonazistas, sua organização já conseguiu ajudar de quatro a cinco mulheres e suas crianças que queriam fugir dessa realidade nos últimos sete anos.

O processo de salvação dessas famílias, às vezes, se assemelha ao de proteção de testemunhas, com mudança total de vida e identidades para garantir sua segurança.

As mulheres que optam por deixar essas estruturas e resguardar seus filhos, são as que se assustam com os métodos de doutrinação utilizando “violência extrema” contra as crianças, informou Trepdorf.

Ele diz que a educação visa “quebrar” as crianças, acabando com quaisquer vestígios de empatia nelas. Eles alcançam esse objetivo ensinando as crianças a dispararem armas, forçando-as a matar pequenos animais e até alguns filhotes maiores como bezerros.

Infelizmente, de acordo com a jornalista e coautora do livro sobre este fenômeno, cujo título em português seria algo como “Ocupação Nacionalista: clãs antigos, jovens colonos, ecologistas de direita”, Andrea Röpke, afirma que essa educação abusiva consegue penetrar nos espíritos das crianças, que se “mantêm fiéis” aos conceitos deste modo de vida.

Aparência de “família tradicional”

Uma família neonazista, ciente de que suas ideologias são combatidas assim que identificadas na Alemanha, aprendem desde cedo a se disfarçarem aos olhos dos outros.

As crianças principalmente, alvo dos professores treinados para identificá-las e tentar ajudar a quebrar as ideias da extrema direita, mantêm a maior parte de seus hábitos reservados para a privacidade de seus lares, evitando as abordagens.

Röpke diz que “a família é considerada a unidade política menor e muito importante para a reconquista nacional”.

A base é a típica “família tradicional”. Com as mulheres sendo donas de casa que cuidam dos filhos e os homens os mantenedores financeiros, tendo profissões como engenheiros de diversas áreas ou que desempenham funções no ramo da agricultura.

O estilo antiquado faz com que alguns os confundam com “Amish”, mas os neonazistas buscam expandir sua visão de mundo centrada na visão de supremacia biológica.

Assim, utilizam de estratégia para dominar pequenas comunidades, fazendo com que suas famílias ganhem poder nas decisões das escolas e instituições locais.

Policiais infiltrados e políticos ameaçados

Em 2015, Heiko Böhringer, recebeu uma ameaça de morte enviada por carta, a qual considerou ser por causa de sua oposição aberta à extrema direita e o partido neonazista NPD, com representação no Parlamento Alemão.

Ao ler a carta, avisou a polícia do ocorrido. Dois agentes foram até sua casa e traçaram uma planta para saberem os detalhes da residência, até os locais onde ele, sua esposa e os três filhos dormiam. Ficaram sob proteção policial e a vida seguiu sem maiores surpresas.

Quatro anos mais tarde, foi chamado como testemunha de um processo relacionado ao grupo extremista Nordkreuz. O motivo de sua convocação é que, em uma das buscas realizadas nas casas dos membros, a planta feita pela polícia foi encontrada e imediatamente reconhecida por Böhringer.

O ocorrido levantou o questionamento de como a planta foi parar lá e quais os vínculos que o grupo podia ter com a polícia.

Mais tarde, Böhringer soube que seu nome estava numa lista de 50 pessoas que deveriam ser procuradas, levadas e colocadas em um “campo” quando o “Dia X” chegasse.

Böhringer não conhece diretamente os nomes das outras pessoas na lista, mas sabe que alguns são membros do partido político Die Linke da extrema esquerda em Rostock.

O perigo da extrema direita ganhou novos holofotes após o assassinato do político local Walter Lübcke, em Kassel, ocorrido em 2019.

Diversos políticos da região são ameaçados e não há forma de oferecer proteção policial efetiva a todos.

Apesar disso, Heiko Böhringer não desiste, e diz apenas que “tem de se viver com isto. Poderia escolher não fazer nada, mas...”.

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