O que está acontecendo entre os atletas negros dos EUA e Donald Trump

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Desde o ano passado que dezenas de jogadores negros da liga de futebol americano, e também da liga de basquete, têm protestado durante os jogos contra o racismo e a violência contra a população negra nos Estados Unidos. Trump está revoltado e pede a cabeça dos jogadores, o que só aumentou ainda mais o engajamento dos atletas negros e, indiretamente, a tensão racial histórica que já existe no país Por Ivan Longo "Tirem esses filhas da p* do campo". A frase é do presidente norte-americano Donald Trump e foi proferida no final de setembro em sua conta do Twitter. Ele se referia aos jogadores da liga de futebol americano (NFL) que, desde o ano passado, vêm protagonizando cenas de protesto contra o racismo enraizado na sociedade estadunidense. Ele tem pedido aos donos de clubes que demitam os atletas que protestarem durante os jogos, como tem sido feito em quase todas as partidas. O protesto que mais está sendo praticado é o ato de se ajoelhar durante a execução do hino nacional e se recusar a cantá-lo. Para os mais conservadores, como Trump, essa é uma ofensa grave à bandeira e ao patriotismo norte-americano. [caption id="attachment_116133" align="alignleft" width="456"] Atletas da NFL ajoelhados em protesto contra a violência policial e o racismo. (Reprodução/Twitter)[/caption] O posicionamento mais recente de Trump quanto aos protestos de jogadores negros aconteceu na última terça-feira (10). Pelo Twitter, seu meio de pronunciamento preferido, o bilionário sugeriu retirar as isenções fiscais da liga de futebol americano. "Por que a NFL está recendo enormes isenções fiscais e ao mesmo tempo desrespeitando nosso Hino, Bandeira e país? Mudem a lei tributária!", tuitou. A fala de Trump veio apenas dois dias após o vice-presidente, Mike Pence, deixar uma partida entre Indianapolis Colts e San Francisco 49ers em que ocorreram mais protestos de jogadores negros durante a execução do hino. "O presidente (Donald Trump) e eu não daremos importância a nenhum evento que falte ao respeito com nossos soldados, nossa bandeira ou nosso hino nacional", disse. Aliás, não disse. Tal como Trump, ele tuitou. "Nenhum branco pode dizer a um negro quando protestar" Trump e seus aliados, assim como alguns jornalistas esportivos e empresários do ramo dos esportes têm afirmado, diante desse acirramento da tensão racial no país, que todos têm o direito de protestar e expressar sua opinião, mas que para isso haveria hora e lugar. Uma recusa de cantar o hino nacional incomoda, e muito, àqueles que corroboram para a tensão racial no país. Foi isso o que disse Roger Goodell, “chefão” da NFL, no início de agosto deste ano, quando o protesto de atletas começou a ganhar notoriedade. O jornalista esportivo do canal ESPN, Stephan A. Smith - que é negro - deu uma declaração como resposta à Goodell, ao vivo, em 15 de agosto, que motivou ainda mais atletas a ajoelharem como forma de protesto contra o racismo durante os jogos. "Nenhum branco tem direito de dizer a um negro quando ele deve protestar (…) Protestos são feitos para incomodar mesmo", disse em seu programa. Confira a íntegra de sua fala. Contexto Para entender como e quando os atletas negros norte-americanos começaram a se rebelar contra o racismo durante os jogos, é preciso resgatar alguns episódios recentes que intensificaram a histórica tensão racial que existe no país. A eleição de Trump em 2016, financiada principalmente por defensores da chamada "supremacia branca", naturalmente, deu mais combustível ao preconceito contra a população negra no país e, consequentemente, à revolta dos atletas. Mas alguns outros episódios dão um roteiro muito claro de como se chegou a tal ponto. O primeiro episódio que é possível elencar e que gerou essa onda mais recente de protestos é o caso de um rapaz negro de 18 anos que estava desarmado e que foi assassinado pela polícia no ano de 2014 em Ferguson, no estado do Missouri. As imagens da execução do jovem chocaram o mundo e a decisão judicial que inocentou o policial responsável pelos tiros revoltou a população negra dos Estados Unidos, dando origem ao movimento Black Lives Matter (em português, “As vidas dos negros importam”). Desde então, o movimento vem pautando intensas críticas a ação policial que vitima quase semanalmente pessoas negras no país. [caption id="attachment_86785" align="alignright" width="418"] Protesto do Black Lives Matter contra a violência policial. (Foto: Black Lives Matter/Facebook)[/caption] Depois do fatídico episódio de Fergunson, outro caso que chamou a atenção foi o da morte de Keith Lamont Scott em setembro do ano passado. Negro, o homem foi confundido pela polícia com um suspeito de crime na região de Charlotte, na Carolina do Norte, e foi alvejado com tiros enquanto esperava, de dentro de seu carro, seu filho chegar de ônibus. Os dias seguintes ao assassinato de Scott foram marcados por confrontos entre a polícia e a população negra. O mais recente, por sua vez, foi o levante neo-fascista de Charlottesville, na Virgínia, em agosto deste ano. “Supremacistas brancos” saíram às ruas exalando racismo e preconceito. O episódio foi marcado por confrontos entre antifascistas e os neonazis e a demora de um posicionamento de Trump à respeito. Quando se pronunciou, o presidente criticou a violência “dos dois lados”, gerando ainda mais revolta entre a população negra. [caption id="attachment_111705" align="aligncenter" width="457"] Manifestação neo-fascista em Charlottesville, que reacendeu a tensão racial no país. (Foto: Reprodução/BBC)[/caption] Os três casos foram determinantes para que o movimento contra a violência policial à população negra se fortalecesse com o apoio de artistas, músicos, atletas e outras “celebridades”. Foi um mês após os confrontos em Charlottesville, em setembro, que o campeão de basquete Stephen Curry se recusou a visitar Trump na Casa Branca. Curry havia acabado de ganhar, com os Golden State Warriors, o torneio nacional da NBA. Tradicionalmente os presidentes norte-americanos recebem os campeões. [caption id="attachment_116134" align="alignright" width="372"] Atleta da NBA se recusa, em coletiva, a visitar a Casa Branca. (Foto: Reprodução/NBA)[/caption] “Eu não quero ir. É, tipo, o núcleo das minhas crenças. Não é só ir à Casa Branca. Mesmo se fosse, seria uma conversa bastante curta. Nós não defendemos, basicamente, o que o nosso presidente defende, as coisas que ele disse e as coisas que ele não disse nos momentos certos”, disse o atleta, que foi apoiado por jogadores negros, inclusive rivais, e por quase todos os seus companheiros de equipe. Trump, então, retirou o convite de todo o time e aproveitou a ocasião para atacar os atletas negros de outro esporte, o futebol americano. Foi aí que o bilionário chamou os jogadores que protestam de “filhas da p*”. “Não seria ótimo se quando alguém desrespeita a nossa bandeira um desses donos da NFL dissesse: Tire esse filha da p* do campo agora. Ele está demitido. Fora! Algum dono vai fazer isso. Eles não sabem ainda, mas esse dono vai ser a pessoa mais popular nos Estados Unidos”, disse o bilionário, em referência às até então esporádicas ocasiões em que alguns jogadores negros se ajoelhavam, repetindo o gesto do primeiro a fazer isso: Colin Kaepernick, do San Francisco 49ers. Até esta última fala de Trump, o que era um protesto restrito a alguns jogadores negros passou a ser quase uma unanimidade, até entre atletas brancos, das equipes que compõem a NFL. A primeira ajoelhada Conforme citado no último intertítulo, foi o contexto de acirramento da tensão racial que estimulou os primeiros protestos dessa onda que já conta até com ameaças do presidente. O primeiro a se ajoelhar e se recusar a cantar o hino foi Colin Kaepernick, do San Francisco 49ers, em setembro de 2016 – bem em meio à repercussão do assassinato de Keith Lamont Scott, o que foi confundido com um suspeito pela polícia na Carolina do Norte. “Eu não vou ficar de pé e mostrar orgulho em uma bandeira de um país que oprime a população negra. Isso é maior do que futebol americano. Há corpos nas ruas e pessoas sendo pagas e saindo impunes com assassinatos” – disse, à época, o jogador. Desde então, muitos dos jogos da NFL são marcados por esse tipo de protesto, sendo protagonizado principalmente por atletas como Jeremy Lane (Seahawks), Marcus Peters (Chiefs), Megan Rapinoe (futebol feminino) e Martellus Bennett (Patriots). As declarações recentes de Trump, no entanto, fizeram com que o gesto anti-racista se massificasse e, na rodada de domingo retrasado, por exemplo, dezenas de jogadores, de diferentes equipes, incluindo atletas brancos, donos de clubes e técnicos, repetiram o mesmo gesto de Kaepernick durante a execução do hino nacional. [caption id="attachment_116135" align="aligncenter" width="429"] Declarações de Trump fizeram com que protestos se massificassem. (Foto: Reprodução/Twitter)[/caption] Na semana passada, atletas voltaram a protestar em campo, o que fez com que o vice-presidente Pence se retirasse do estádio. Kaepernick, por sua vez, depois da pressão por conta de seus protestos, acabou saindo de sua equipe e desde 2016 está sem clube. Jogadores com o nível de Kaepernick, estatisticamente, nunca passaram tanto tempo desempregados. 70% dos atletas da NFL são negros. Repercussão nas redes [caption id="attachment_116136" align="alignleft" width="400"] Charge ironiza pressão contra os protestos em detrimento da violência policial. (Repdoução/Twitter)[/caption] Os últimos protestos de jogadores da NFL contra Trump e o racismo nos Estados Unidos foram amplificados, principalmente, pelo engajamento do público nas redes. A hashtag #TakeAKnee, em solidariedade aos jogadores, serviu para registrar as manifestações e declarar apoio aos atletas, mas foi usada também por pessoas que são contra esse tipo de protesto. Jornalistas, artistas, analistas, fãs e internautas como um todo fizeram com que a tag chegasse aos Trending Topics do Twitter nos dias de jogo e abriram um intenso debate nas redes sociais. Confira, abaixo, um pouco da repercussão. Foto de capa: CaraotaDigital