Polêmica na Argentina: Alberto Fernández, Clarín e a "revolução" kirchnerista

"Não acho que Alberto Fernández vai se afastar do peronismo e de Cristina, isso seria seu fim, mas seu projeto está muito mais vinculado à manutenção do status quo", disse o jornalista argentino Ari Lijalad à Fórum ao comentar sobre a controvérsia gerada pelo presidente

Foto: Casa Rosada
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"Há pessoas na Frente de Todos que sonham com uma revolução. Não é essa minha ideia", foi a declaração do presidente argentino Alberto Fernández que saiu registrada no Diário Clarín do último domingo (10). O contexto da frase e do encontro do presidente com o veículo gerou polêmica na base de apoio do mandatário peronista.

Segundo o jornalista Eduardo Van der Kooy, que realizou a entrevista, a declaração sobre a "revolução" foi dada após o presidente ser questionado sobre a Reforma Judicial, uma pauta que tem sido bastante defendida por movimentos sociais no país.

Em julho, o governo nacional apresentou uma proposta de reforma. O texto foi aprovado no Senado Federal - presidido por Cristina Kirchner, vice-presidenta da República - por 40 votos contra 26, mas ainda não chegou à Câmara dos Deputados. Integrantes do Poder Judiciário buscam encurtar o alcance da proposição, que cria mecanismos contra o chamado "lawfare" - uso político do Judiciário.

A demanda, urgente na Argentina e em toda a América Latina, parece não estar mais no topo das prioridades do presidente, pelo menos é o que transparece na entrevista concedida ao Clarín.

A líder das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, está entre as pessoas que criticam o mandatário por conta da demora na reforma. Em entrevista ao Fórum América Latina, ela cobrou Fernández. “Quando encontrei o senhor presidente, o primeiro que lhe disse foi isso, que fosse reformado o Poder Judicial. É como se fosse um câncer essa questão do Poder Judicial", disse.

A mensagem "contrarrevolucionária" também foi criticada por figuras como o sociólogo Atílio Boron e o dirigente sindical Juan Grabois, próximo do Papa Francisco. "NINGUÉM no FxT sonha com uma REVOLUÇÃO liderada por AF. Eles anseiam por uma REFORMISMO RADICAL como a de Roosevelt, mas isso também não é alcançado. O fraco impulso transformador e muitas concessões ao poder estabelecido geralmente terminam em suicídio político", escreveu Bóron no Twitter.

"Nós sonhamos sim com uma revolução e lutamos por ela, mas sabemos que esta coalizão política teve o enorme mérito de derrotar o Macrismo. Mesmo com suas limitações, ainda é a melhor opção para as maiorias populares", afirmou Grabois na mesma rede social.

Além disso, o fato do presidente usar o veículo para passar a mensagem é controverso e gerou muitas críticas. O Clarín se tornou inimigo número 1 do kirchnerismo em meio às discussões sobre a Ley de Medios, que buscou agir contra os monopólios midiáticos. O maior veículos de comunicação do país passou a atacar ferrenhamente a então presidenta Cristina Kirchner, hoje vice de Alberto Fernández.

A Fórum conversou sobre esses temas com o jornalista e cientista político Ari Lijalad, que atua no portal El Destape, referência na mídia independente argentina.

Para ele, a relação próxima do governo com o Clarín não começa nesse encontro, vem de antes. "Para além do encontro, Clarín segue recebendo privilégios de parte do governo. Não foi revisado o perdão de 147 milhões de dólares concedido por Macri, se garantiu ajuda estatal para o pagamento de salários enquanto reparte lucros extraordinários entre seus acionistas e segue sendo o principal beneficiário de publicidade oficial e de outro tipo de contratações diretas", afirma.

Segundo Lijalad, a Reforma Judicial "é um tema complexo" e vai além do que o governo pautou no Congresso. "Ainda que seja aprovado o que o governo enviou ao Congresso, isso não resolve o lawfare. O lawfare tem 4 pilares: o Poder Judicial, os meios hegemônicos, os serviços de inteligência e a Embaixada dos Estados Unidos", sentencia.

"Essa última não temos como mudar, mas as outras três sim. O presidente tomou a decisão de intervir na Agência Federal de Inteligência (AFI) e cortar a relação promiscua dos espiões com os juízes - pelo menos a que se fazia com dinheiro público. Mas não houve nenhuma mudança no Poder Judicial nem no sistema de comunicação", afirma.

Segundo o jornalista, não ná "nenhuma Reforma Judicial que tenha efeito enquanto os meios de comunicação sigam concentrados nas mãos do Grupo Clarín". "Os juízes decidem com o diário Clarin em cima da mesa e com a Constituição em uma gaveta. Nesse sentido, Alberto Fernández já disse que não tem a intenção de avançar em uma nova 'Ley de Medios' antimonopólica", diz. A Ley de Medios de 2009 foi derrubada pelo ex-presidente Maurício Macri em um decreto.

"Qualquer mudança na Justiça será superficial e não poderá avançar a fundo", completa.

O jornalista não acredita em um afastamento de Fernández de Cristina e do peronismo, mas coloca o atual mandatário como possuidor de um projeto político bem distinto.

"Não acredito que Alberto tente se afastar do peronismo e de Cristina, isso seria seu fim. Mas é certo que seu projeto está muito mais vinculado à manutenção do status quo de um país com profundas desigualdades, matizado com algumas medidas como a assistência alimentar ou os medicamentos grátis que são vitais para quem os recebe, mas não modifica o sistema que o produz", analisa.

"Alberto Fernández insiste em buscar consensos com sectores que não tem nenhum interesse em ceder privilégios, espaços de poder ou rendas extraordinárias. Ao buscar um impossível, faz com que nada mude", finaliza.

Em outubro, o presidente argentino deu a seguinte declaração durante o aniversário de 10 anos da morte do ex-presidente Néstor Kirchner: "O meu dever é vir terminar a tarefa que o Néstor começou e que a Cristina seguiu, e é assim que vou fazer". Em janeiro, a declaração já parece antiga.

Foto: Casa Rosada
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https://twitter.com/JuanGrabois/status/1348321314671636481