Privatização dos Correios: Exemplo argentino terminou em escândalo de corrupção envolvendo a família Macri

Franco e Mauricio Macri (Foto: reprodução)
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A privatização dos Correios é um dos debates do momento no Brasil, por se tratar de um dos projetos prioritários da Secretaria de Desestatização do governo de Jair Bolsonaro e por ser o estopim da greve iniciada na semana passada.

Aqueles que defendem a privatização utilizam o seu argumento de sempre, de que “isso traria mais qualidade ao serviço, e acabaria com a corrupção envolvendo a empresa”. Porém, um exemplo que está bem do lado do Brasil mostra claramente que a chegada do setor privado não garante nem essa suposta eficiência, nem a transparência. E, o mais curioso, envolve o sobrenome Macri, que já foi idolatrado pelos liberais brasileiros – embora hoje eles prefiram esquecê-lo.

Tudo começou em março de 1997, que se concluiu o processo de privatização da empresa Correo Argentino, durante o governo de Carlos Menem, o grande privatizador do país. Segundo informe da Télam (agência pública de notícias da Argentina), a concessão foi entregue à empresa SOCMA (abreviação de “Sociedad Macri”), cujo dono era Franco Macri, pai de Mauricio Macri, que naquele então usava bigode e era presidente do clube Boca Juniors. O contrato tornou a Argentina um dos primeiros países do mundo a entregar o serviço postal inteiramente à iniciativa privada.

Quatro anos depois, em meados de 2001, uma investigação jornalística indicou que a SOCMA havia pagado ao Estado apenas o que estava previsto no primeiro ano da concessão. Eram tempos de crise econômica na Argentina, o Estado estava quase falido e a população vivia sob a regra do chamado “corralito”, o limite para transações bancárias necessário para evitar que o sistema financeiro quebrasse de vez.

Longe de ser vítima dessa situação, o caso SOCMA-Correo era um dos responsáveis: entre 1998 e 2001, Franco Macri acumulou uma dívida de 296 milhões de pesos com o Estado argentino, aprofundando a crise que levaria o então presidente Fernando de la Rúa, sucessor de Menem, a renunciar à presidência.

Dois anos depois, em novembro de 2003, o novo presidente eleito do país inaugurava uma guerra entre famílias que persiste até hoje. O presidente era Néstor Kirchner, que decidiu rescindir a concessão à SOCMA, reestatizar o serviço e iniciar um processo judicial para que a família Macri pagasse os milhões que devia ao Estado.

O talento dos advogados da SOCMA manteve o processo avançando lentamente na Justiça, e 13 anos depois, em junho de 2016, o cenário político era bem diferente: Néstor Kirchner estava morto e sua esposa, Cristina Kirchner, teve dois mandatos presidenciais, mas também já não estava na Casa Rosada. Por sua parte, Franco Macri vivia seus últimos meses de vida, e já havia se afastado do comando da SOCMA, que estava nas mãos de seus filhos – ou, mais precisamente de Gianfranco Macri, já que o mais velho, Mauricio Macri, era o presidente da Argentina.

Em meio a esse contexto, a Câmara Nacional de Recursos Comerciais da Argentina (ligada ao governo, e, portanto, administrada por pessoas nomeadas por Mauricio Macri) convocou uma audiência entre os representantes da empresa Correo Argentino e da SOCMA, para chegar a um acordo e saldar a dívida. Curiosamente, os representantes do Estado acataram a proposta da empresa, que oferecia o pagamento de 100% do capital verificado (296 milhões de pesos) em 15 parcelas anuais e consecutivas, que seriam pagas a partir de 2017.

O acordo foi aprovado pela Justiça Comercial, mas rejeitado pela Procuradoria Geral da Câmara de Recursos Comerciais. Segundo a promotora Gabriela Boquín, a oferta da empresa era “abusiva” e sua aceitação significaria “danificar gravemente o patrimônio do Estado”, já que não considerava a correção dos valores da época, o que levaria o Estado argentino a uma perda de cerca de 70 bilhões de pesos (cerca de 970 milhões de dólares).

“A empresa da família Macri gozou de um estado de falência eterna e conseguiu suspender o pagamento aos seus credores por mais de 15 anos, e esse é um dos elementos que a proposta atual simplesmente omite”, foi um dos argumentos da promotora para considerar a oferta da SOCMA desvantajosa para o Estado.

Em fevereiro do ano seguinte, o deputado kirschnetista Martín Sabbatella e o advogado Daniel Igolnikov denunciaram criminalmente o governo Macri pelo acordo. O caso caiu nas mãos do juiz Ariel Lijo e a investigação encontrou pistas de que o então ministro das Comunicações, Oscar Aguad, teria preparado uma proposta feita sob medida para satisfazer os interesses da família Macri, e assim surgiu a suspeita de que o presidente estaria usando o cargo para ajudar a empresa da família a se livrar de sua dívida mais importante.

Este novo processo judicial avançou de forma menos lenta que aquele no qual Kirchner tentava cobrar a dívida dos Macri com o Estado, ainda assim, com as pressões do governo sobre a Justiça, o ministro Aguad terminou dando seu testemunho somente em março de 2019, quando já não era mais encarregado da pasta de Comunicação – havia sido remanejado ao Ministério da Defesa, meses antes.

Já era ano eleitoral, e Macri lutava por sua reeleição, e por isso era preciso tirar aquela pedra do sapato. Além disso, Franco Macri havia falecido, tornando os filhos Mauricio e Gianfranco herdeiros da dívida da SOCMA.

Em abril de 2019, os advogados da família Macri exigiram o encerramento do processo por “falta de provas”. No entanto, o pedido foi rejeitado em agosto do mesmo ano. Finalmente, em março deste ano, com Alberto Fernández na Casa Rosada e Mauricio já como ex-presidente, a juíza Marta Cirulli, que substituiu Ariel Lijo, ordenou a “intervenção total da empresa Correo Argentino e o deslocamento de seus dirigentes, em cumprimento com as medidas recomendadas em 2016 pela promotora Gabriela Boquín”.

Depois de tudo, a privatização do serviço de correios da Argentina não trouxe nenhuma eficiência no serviço, que nunca havia sido questionado em sua qualidade – situação que se manteve depois que voltou às mãos do Estado, em 2003 –, e no que diz respeito à transparência, foi um desastre total, já que o serviço foi o estopim de um dos maiores casos de corrupção da história do país justamente pela administração errática de uma empresa privada, em um escândalo que só envolveu a política quando os privados que haviam recebido a concessão tomaram conta do setor público para atuar em causa própria e resolver suas dívidas.

Diante de tudo isso, alguém duvida de que o exemplo argentino deveria ser parte fundamental da discussão da privatização dos Correios no Brasil?