Putin: Entre a paz, a Santa Rússia e a homofobia

Para restaurar a força do país, o presidente russo converteu o cristianismo ortodoxo no novo conceito nacional de coesão, substituto da doutrina unificadora marxista da URSS

O patriarca Kirill e Vladimir Putin: nova Santa Aliança russa (Esquerda.net)
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Para restaurar a força do país, o presidente russo converteu o cristianismo ortodoxo no novo conceito nacional de coesão, substituto da doutrina unificadora marxista da URSS Por Nazanin Armanian, publicado originalmente em Publico.es e traduzido por Esquerda.net
A engenhosa proposta russa para a Síria pôr as suas armas químicas sob o controle internacional e assim desativar o ataque militar dos EUA coloca Vladimir Putin no centro da arena internacional frente a um belicista temerário como Barack Obama, desacreditado pela moral dúplice e pela indecisão. Para além de se pôr do “lado correto da história”, - e apesar de os EUA poderem procurar outro pretexto para agredir a Síria -, Putin depois de anos de esforço está conseguindo que o seu país volte a desempenhar o papel de superpotência, após duas décadas de letargia. Para isso, valeu-se de duas “armas” principais: ser o primeiro produtor mundial de gás e de petróleo e ser o centro da religião ortodoxa cristã. O aumento dos preços do petróleo durante a década passada e a sua incursão no grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, Chinesa e África do Sul) são algumas das causas de um crescimento econômico de 6,8% (em 2011). Hoje, a Rússia capitalista, que apesar da destruição da URSS não se converteu num “Estado falhado” e sobreviveu às “revoluções de cores” fabricadas em Washington, conta com 10% das reservas do ouro mundial e é a terceira reserva monetária maior do mundo após a China e o Japão, bem como tem o segundo lugar no pódio planetário em número de multimilionários... enquanto que 43% da população vive na pobreza. Não serve de consolo que esta cifra seja de 48% nos EUA. A Santa Aliança [caption id="attachment_32075" align="alignleft" width="400"] O patriarca Kirill e Vladimir Putin: nova Santa Aliança russa (Esquerda.net)[/caption] Ainda que Vladimir Putin não tenha chegado a ser como George Bush, que chegou a dar início às reuniões da Casa Branca com uma prece, nem seja a cabeça da Igreja como a rainha Isabel II de Inglaterra, mas pede a bênção do clérigo ortodoxo e protege a fé e Deus como ninguém. Com o fim de restaurar a força da Rússia, o homem de olhar penetrante impulsionou algo parecido como uma segunda cristianização do país, e converteu o cristianismo ortodoxo no novo conceito nacional de coesão, substituto da doutrina unificadora marxista da era soviética e fazendo barreira ao avanço imparável do catolicismo rival, símbolo do capitalismo ocidental. Em 1997, a Lei Ieltsin suprimiu a igualdade de todas as religiões perante a lei, outorgou importantes privilégios à Igreja Ortodoxa, acabando com o sonho do Papa polaco João Paulo II de “catolizar a Rússia”, como prêmio da sua estreita colaboração com a CIA na destruição da União Soviética (ler: O Vaticano contra os EUA). Esta sociedade agnóstica, ainda que respeitosa com a sua poderosa igreja, que necessita de hospitais, escolas ou residências de idosos, não sabe por que é que o número de igrejas e mosteiros ascendeu de 5.318 em 1985 para 31.200 em 2012. Está prevista a instalação em São Petersburgo do monumento a Jesus Cristo mais alto da Europa, com 33 metros de altura, o que supõe a elevação deste fervor ressuscitado das épocas czaristas. O Kremlin, através desta igreja, mantém laços de influência em países como Bielorrúsia, Geórgia, Ucrânia, os países da antiga Jugoslávia, Romênia, Moldávia, Bulgária, Grécia, Chipre e Armênia, mas também no Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Médio Oriente e sobre os 25 milhões de russos que a desintegração da URSS deixou em países hoje independentes. O patriarca Kirill conta com a autoridade sobre os 225 milhões de fiéis em todo mundo. Com uma ativa diplomacia, o chefe desta instituição visitou Ucrânia, Polónia, Grécia, Jerusalém, Líbano e Síria, onde foi fotografado com o presidente Assad, elogiando o seu trato com os cristãos. A religião ortodoxa, por outro lado, resulta muito também para manter o controle e a ordem social, legitimar as políticas conservadoras, e certamente vigiar o Islã professado por 24 milhões de fiéis (ou seja, mais muçulmanos que na própria Arábia Saudita) com um alto índice de natalidade. A acusação de “vandalismo motivado por ódio religioso” e o encarceramento das cantoras do grupo punk Pussy Riot, que denunciavam os laços entre Putin e a hierarquia da Igreja Ortodoxa, foi continuada pela aprovação de uma lei anti-blasfêmia que castiga com penas de até três anos de prisão as ofensas contra a religião: começa a caça de bruxas e de bruxos. Os bolcheviques abriram os armários Com pequenas discrepâncias, houve uma abstenção e nenhum voto contra (nem o da esquerda), o parlamento russo aprovou a lei contra a “propaganda gay”, apoiada por uma grande maioria de cidadãos que equipara a homossexualidade com a pedofilia, apesar de grandes e queridos artistas e intelectuais como Tchaikovsky, Pushkin, Gogol, Kuzmin, ou Ivanov terem sido gays. Paradoxo de um país que quando foi dirigido por Lênin se converteu no primeiro Estado do mundo a legalizar a homossexualidade, despenalizando a “sodomia”. Os EUA fizeram o mesmo em 2003! Foi Stálin quem em 1933 voltou a castigá-la com cinco anos de prisão. Aquele georgiano considerava-a um produto da decadência moral dos exploradores, um produto propagado pelos nazis que assim atentavam contra a moral do proletariado. Por sua vez, os fascistas chamavam de “cultura bolchevique” a homossexualidade e a libertação da mulher, ambas símbolos da degeneração moral. Seguindo as diretrizes de Stálin, os partidos comunistas e socialistas de todo o mundo recusaram como militantes aqueles que fossem suspeitos de amar alguém do seu próprio sexo. Os motivos reais por trás da campanha homófoba russa são: 1. Tal como há 3 mil anos, juntamente com a criminalização do aborto, a proibição de relações homossexuais entre homens faz parte das medidas pró natalidade destinadas a aumentar a população do grupo. A Rússia, que em 1991 contava com 149 milhões de habitantes, em 2001 baixou para 146 milhões e prevê-se que em 2030, com este ritmo, se reduza para os 128 milhões. Diminuem os nascimentos, aumenta a mortalidade pela deterioração na qualidade de vida, que deixa a esperança de vida em 69 anos. Precisa-se mão de obra e por isso oferecem-se incentivos econômicos e laborais para quem tenha filhos. As reticências impostas à política de adoções de crianças russas por estrangeiros também procede desta perspectiva. 2. Medo de perder o controle sobre o corpo e a mente dos cidadãos 3. Manter o sistema patriarcal e o poder dos homens numa sociedade machista e preservar a estrutura da família tradicional, apesar da sua disfuncionalidade. 4. Desviar com estas campanhas a atenção pública dos graves problemas sociais da população. A Anaconda não é só um réptil A Anaconda é o nome nepalês da serpente “assassino de elefantes”, que rodeia e estrangula a sua presa lentamente, mas também é a contrassenha da estratégia desenhada pelos EUA de rodear a Eurásia e asfixiar a Rússia através de bases militares, da chamada C4ISR (acrônimo inglês de “Comando, Controle, Comunicações, Informática, Inteligência, Vigilância e Reconhecimento”), e de usar a bandeira da democracia e dos direitos humanos. Dificultar o acesso dos russos aos mares é o centro desta política. Com a guerra contra a Síria, Washington o que pretende é justamente desalojar a Rússia dos portos sírios e pôr todo o levante mediterrânico sob a esfera da NATO. A armadilha que Obama estendeu a Putin no caso da Líbia fez com que o líder russo desse uma viragem radical nas suas relações com os EUA. Pois, o que ia ser uma operação limitada de exclusão aérea, converteu-se num bombardeamento do país, no brutal assassinato de Kadhafi e no saque da sua ingente fortuna em bancos ocidentais, ficando assim com os seus amplos campos de gás e petróleo. Começa agora uma verdadeira Guerra Fria. Na batalha - ainda que discreta -, contra a Otan e os EUA, Putin serve-se dos BRICS (que golpeiam duramente o dólar com o seu cabaz de moedas diferentes), mas também com uma cooperação com a China (sem precedentes desde os tempos de Mao e Stálin), através da Organização de Cooperação de Xangai (OCS). Juntos exigiram a retirada das forças armadas dos EUA da Ásia Central, pelo que a potência ocidental não teve outro remédio senão pôr a data de 2014 para a sua saída forçada do Afeganistão. Depois de pôr a sua marca na crise síria, Putin pensa atalhar o conflito nuclear do Irã, o seu poderoso vizinho do sul. A superpotência energética vai desmontando o “Novo Conceito Estratégico da Otan” traçado em 2010 na cimeira da Aliança em Lisboa, que situava como objetivos domesticar a Rússia, com o fim de conter o Irão e debilitar a China. Tanto os BRICS como a OCS, encabeçadas por Moscou e Pequim, oferecem estruturas alternativas à influência decadente dos Estados Unidos no mundo. Será o fim da hibernação do urso, que unido ao dragão impedirão o voo da águia? Artigo de Nazanin Armanian1, publicado em Publico.es a 15 de setembro de 2013 e disponível também em nazanin.es. Tradução para português de Carlos Santos
1 Nazanin Armanian é uma escritora iraniana, jornalista e professora na Universidade de Barcelona. Residente em Espanha desde 1983