Radiografia do sistema sindical chileno: Uma entrevista com Diego Velásquez Orellana

Sociólogo revela em detalhes como funcionam as relações trabalhistas e o sindicalismo do Chile, modelo para a equipe econômica de Jair Bolsonaro

Foto: Fech/Divulgação
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Por Daniel Fabre* O governo de Jair Bolsonaro vem se caracterizando por seu combate aos direitos trabalhistas e ao sindicalismo brasileiro. Em seu programa de governo, uma das poucas propostas para a área é acabar com a unicidade sindical. Nos últimos meses, diversos membros do primeiro escalão declararam que em breve o governo irá propor alterações no modelo sindical do país para promover o que chamam por liberdade sindical. E Paulo Guedes e outros quadros do governo já manifestaram seu interesse pelo modelo sindical estadunidense e chileno. Para falar sobre a questão, o advogado e mestre em Teoria do Direito, Daniel Fabre, se encontrou no escritório de Crivelli Advogados, em São Paulo, com o sociólogo graduado pela Universidad de Chile e mestre e doutorando pela PUC, Diego Velásquez Orellana, que traçou um panorama geral do sindicalismo chileno, abordando a representação sindical dos trabalhadores deste país, o funcionamento das negociações coletivas, bem como os desafios atuais do movimento sindical. Daniel Fabre: Quais são as origens do modelo sindical chileno? Como funciona a representação dos trabalhadores? Diego Velásquez: Este modelo nasce em 1979 com o que se conhece como o Plano Laboral, um conjunto de decretos-lei que foram promulgados na metade da ditadura chilena, em meio a um processo antidemocrático, que se converteram finalmente no que seria o Código do Trabalho chileno. Foi estabelecido sem participação de ninguém, como uma imposição ditatorial. Mesmo quando termina a ditadura e começam os governos da concertação, não foi promovida nenhuma alteração significativa na lei, praticamente não se modificou nada deste modelo. Esses governos promoveram alguns ajustes, mas mantiveram seu espirito. DF: E que espirito é esse?   DV: Eu diria que é gerar fortes restrições às relações coletivas de trabalho, estabelecendo também uma ampla flexibilização das relações individuais. A última reforma trabalhista manteve essa lógica de restrições que existem para a ação sindical. Podemos dizer que o modelo de relações trabalhistas chileno é bicéfalo. Ou seja, possui duas cabeças. De um lado está o Código Trabalhista, que regula as relações trabalhistas no mundo privado, e, por outro, o estatuto administrativo, que as regula no setor público. São dois textos legais totalmente distintos e a forma pela qual os trabalhadores podem se organizar vai depender de qual setor estamos falando. DF: Como se dão as negociações coletivas no Chile? Há acordos de nível nacional? DV: Partindo do mundo privado, do Código do Trabalho, podemos dizer que o sistema sindical chileno é totalmente descentralizado. Isso quer dizer que as negociações coletivas somente podem ser realizadas em nível da empresa. Essa é a restrição, se você quer negociar por categoria, ou em outra escala, não é possível. Somente em nível da empresa. E o que se entende por empresa no Chile? Um RUT2 social. Isso gerou grandes problemas por muitos anos, e que, inclusive, ainda seguem ocorrendo. Pois uma mesma empresa, imaginemos por exemplo um supermercado, pode ter diversos RUTs associados, um para cada estabelecimento, ou então, mais de um RUT dentro de um mesmo estabelecimento ou sucursal, por exemplo, um para a padaria, outro para os caixas, outro para o açougue etc. Então, o que acontece é que esse sistema fragmenta a coordenação das ações sindicais e a reduz a um ponto especifico, fazendo com que seja muito difícil coordenar os sindicatos envolvidos, inclusive os que pertencem a uma mesma empresa. DF: Que figuras podem negociar coletivamente? DV: É permitido pela lei que existam federações, confederações ou centrais sindicais, mas estas não podem negociar coletivamente de maneira regulada. Aqui é preciso explicar uma coisa. É necessário diferenciar as negociações coletivas reguladas das negociações coletivas não reguladas pelo Código do Trabalho. As negociações coletivas reguladas são aquelas em que todos os passos e procedimentos estão detalhadamente definidos na lei, quer dizer, se estabelecem os períodos de negociação, quando o sindicato deve apresentar sua minuta de reivindicações, quantos dias o empregador tem para responder, e assim, passo a passo, inclusive, o próprio exercício do direito de greve nessas condições, também já definido na lei. Então, o que acontece? Como tudo está já regulamentado os empregadores têm a possibilidade de se planejar com muito tempo de antecedência para lidar com os efeitos de uma paralisação ou de uma greve dos trabalhadores, diminuindo o impacto sobre o processo produtivo e, assim, a própria força do sindicato. Ainda sob esta modalidade, são proibidas as negociações por outro tipo de estrutura sindical, como as federações ou confederações. A última reforma trabalhista permitiu que os sindicatos interempresas negociem coletivamente também de maneira regulada, o que antes era proibido. Porém, uma vez mais, o escopo da negociação se manteve limitado ao nível da empresa. Quais são os benefícios dessa negociação coletiva regulada? É que mediante esse procedimento (e somente assim) se garante o direito à estabilidade aos dirigentes e aos trabalhadores que se envolveram no processo de negociação. E se garante também o direito à greve. Por outro lado, existem as negociações coletivas não reguladas, ou seja, um processo de negociação em que não há absolutamente nenhuma regra prevista e em que não se estabelece a obrigatoriedade de negociação para nenhuma das partes. Portanto, é uma negociação mutuamente fechada, por assim dizer, não há periodicidade, ou regras a seguir. Esta se conclui também com uma convenção coletiva, que aos olhos da lei, tem a mesma validade dos resultados das negociações coletivas reguladas. Suas desvantagens, uma vez que a vantagem é haver bastante liberdade para a ação de cada uma das partes, é justamente isso, não há obrigatoriedade de negociação por parte do empregador. Ou seja, o sindicato apresenta sua minuta de reivindicações e o empregador sequer tem responsabilidade de dar uma resposta. Então, é preciso ter certa força sindical para obrigar o empregador a negociar, ou ter uma boa relação com ele. Outra questão é que, sob esse procedimento (não regulado), não está garantida estabilidade aos dirigentes e trabalhadores, assim como não está garantido o direito de greve. DF: Então, há restrições em relação às matérias que podem ser negociadas? DV: Há proibição em matérias como a maneira com que o empregador irá organizar o processo produtivo, por exemplo. A lei diz expressamente: somente são permitidas matérias que tenham relação com o mundo do trabalho, com as relações laborais mais especificamente. Nesse sentido, a lei proíbe que se negociem temas políticos, ou melhor, que as negociações coletivas se politizem. Agora, obviamente, tudo isso depende muito da força que tenha o sindicato em cada caso especifico. DF: E de que maneira isso atrapalha as negociações? DV: Temos casos em que o sindicato é muito forte, como, por exemplo, o dos mineiros, já que é uma empresa estratégica para a economia nacional e que tem mais de cem anos de história de organização sindical. Isso permitiu com que eles pudessem negociar de maneira mais producente, por exemplo, estabelecendo uma negociação por ramo produtivo. O mesmo ocorre com os funcionários públicos. Outro exemplo é o da categoria dos portuários, que também pertence a uma empresa estratégica, e em que os trabalhadores estão organizados e negociam por categoria. Isso tudo por poder de fato, não é que a lei os permita simplesmente. Por fim, os contratos coletivos não representam todos os trabalhadores de sua categoria profissional, mas tão somente aqueles que estão subscritos ao processo de negociação coletiva regulado. Antigamente, os empregadores poderiam estender os benefícios da negociação coletiva aos demais trabalhadores de maneira unilateral. O que significa que no fundo o sindicato gasta seus recursos para negociar coletivamente e uma vez que se chega a um acordo, o empregador poderia estender esses benefícios ao resto dos trabalhadores sem que estes tenham participado diretamente da negociação. Então, esta era considerada uma pratica antissindical, ou seja, se eu, como trabalhador não sindicalizado, recebo os benefícios da negociação coletiva, para que vou me filiar? Não tem nenhum sentido. Assim, na última reforma trabalhista de 2017, se permitiu a extensão dos benefícios, contanto que haja negociação com o sindicato. DF: E como se dão as negociações no caso do funcionalismo público? DV: No caso do estatuto administrativo, que é a lei que rege as relações laborais no setor público, para os funcionários do Estado, estão expressamente proibidas as negociações coletivas, de qualquer tipo, estão também proibidos os sindicatos e, obviamente, proibido também qualquer tipo de greve. Entretanto, os trabalhadores e suas organizações do setor público são tão fortes, têm uma tradição sindical tão grande, que geraram processos em que lograram suprir essas falhas legais. Então, não existem sindicatos no setor público, mas associações de funcionários, que no fundo são o mesmo, só muda o nome. E negociam coletivamente todos os anos, que no setor público ocorre de forma centralizada. E ocorrem todos os anos, pois estão condicionados às leis orçamentárias e suas aprovações. Não existem greves, mas sim paralisações, que no fundo é o mesmo, pois paralisam os trabalhos. Os nomes vão mudando, mas as ações são as mesmas, pois essas associações possuem muito poder. E isso faz com que se produza um conjunto de negociações espontâneas em diversos níveis do Estado, nos serviços, nas municipalidades etc. Assim, isso seria a “outra cara da moeda”, por assim dizer, do sistema laboral chileno. Mas, no fundo, o que imagino ser o que queriam exportar para o caso brasileiro, seria o modelo de relações laborais do setor privado, que, de fato, Macri também tentou fazer na Argentina. Mas houve uma forte mobilização dos trabalhadores e sindicatos lá que impediu a medida. Então, o que vou seguir falando nesta entrevista será sobretudo em relação ao mundo privado, que é o que acredito ser de maior interesse para vocês. DF: O sistema sindical chileno é baseado na pluralidade ou na unicidade sindical? DV: Em relação à representação sindical, se existe pluralidade ou unicidade sindical, digo que não apenas existe pluralidade ao nível das categorias ou das atividades, mas a situação é ainda mais radical. Em que sentido? Dentro de uma mesma empresa pode existir mais de um sindicato. Por exemplo, na empresa X, há o sindicato número um e o número dois e eles podem inclusive negociar coletivamente de maneira separada. Então, sim, existe uma fragmentação absoluta nesse sistema de relações trabalhistas. Se bem que esses sindicatos podem se agrupar em estruturas sindicais superiores, como confederações, federações ou centrais, ainda que nesses outros níveis não possam negociar coletivamente de maneira regulada. Inclusive, essa fragmentação estrutural que tem o sindicalismo chileno pode ser vista até mesmo no nível das centrais sindicais, dentre as quais, por exemplo, a CUT (Central Unitaria de Trabajadores) chilena, que havia sido a organização de maior representatividade entre os trabalhadores no Chile. Mas, devido a problemas internos, perdeu muita legitimidade junto aos trabalhadores, o que gerou a criação de novas centrais sindicais. Então, hoje em dia, encontramos quatro ou cinco centrais distintas, para que se tenha ideia de quão fragmentado está o sindicalismo chileno. DF: Como se dá o financiamento das entidades sindicais no Chile? DV: Basicamente são autofinanciadas. Quer dizer, se financiam principalmente através das contribuições dos sócios. E cada entidade estabelece que porcentagem do salário será descontado. Isso em conjunto a outras atividades, como rifas, um campeonato de futebol etc. Então, não há dinheiro público destinado aos sindicatos no Chile. Mas isso dependerá de cada organização. Há sindicatos que se financiam somente através das contribuições dos sócios, ou mesmo outros, como grandes sindicatos, que possuem suas próprias empresas, como por exemplo, há um que possui um centro odontológico que os ajuda a se financiar. Importante mencionar que os dirigentes sindicais podem receber salários custeados pelas entidades e, desde que adotem negociações reguladas, os dirigentes possuem estabilidade de emprego, algo que já mencionei acima. DF: Como você avalia o poder de pressão dos sindicatos em face desse modelo sindical? DV: A verdade é que é muito, muito baixo. Praticamente nulo. Como ia comentando, existem diversos mecanismos que inibem a capacidade de pressão dos sindicatos, sobretudo através de sua ferramenta fundamental que é a greve. DF: E o direito de greve, como é regulado? DV: O Chile subscreveu a convenção nº 151 da OIT, que é sobre o direito à representatividade, negociações coletivas e direito de greve. Entretanto, os mecanismos nacionais estabelecidos fizeram com que não se garanta na prática a consecução desses direitos. Nesse sentido, existem greves que são legais, greves a-legais e greves ilegais. As greves que se produzem por meio do processo de negociação coletiva regulado são as greves legais. Por outro lado, as que se produzem por fora desses processos de negociação coletiva reguladas no setor privado, são consideradas greves a-legais, pois não estão proibidas expressamente, por isso são a-legais. Mas também existem as greves ilegais, que estão expressamente proibidas. DF: E quais são elas? DV: São aquelas que se realizam em empresas consideradas estratégicas. Todo ano o Estado estabelece uma lista de empresas que não podem negociar coletivamente de maneira regulada, que são, por exemplo, empresas que provêm serviços básicos, como água, luz e gás, transporte metropolitano etc. E isso terminou em um tipo de lobby em que as empresas pressionam o governo para pertencer a essa lista. Como eu havia dito, existem cada vez mais mecanismos que condicionam a realização das greves, por um lado. E, por outro lado, uma vez que se realize a greve, há mecanismos para que esta não impacte o processo produtivo. Então, por exemplo, dentro do processo regulado de negociação coletiva, quando as partes não chegam a um acordo, os trabalhadores têm que votar sobre a realização de greve. Mas isso não significa necessariamente que essa greve será efetuada. Quando se vota à greve se abre a possibilidade, acredito que em mais de 80% dos casos, de que se realize um processo que se chama “bons ofícios”, que pode ser requerido pelos empregadores ou pelos trabalhadores, e no qual se convida um mediador do Estado, sem capacidade resolutiva, para interceder na negociação durante alguns dias mais. Então, finalmente, o que acontece? Se vota a greve e como ambas as partes sempre pedem o procedimento de “bons ofícios”, se estendem as negociações por cerca de mais dez dias, minando a realização das greves. DF: Então, essa negociação coletiva regulada carece de um tipo de “fator surpresa”? DV: Sim. As greves que são realizadas por fora dessas negociações reguladas são aquelas que possuem esse “fator surpresa”. Essa é a grande diferença entre um tipo de greve e outra. As legais não têm fator surpresa, mas geram estabilidade e têm direito à greve garantido, já as a-legais ou ilegais têm esse fator surpresa, que lhes dá maior poder de negociação nesse caso, mas, claro, carecem de estabilidade aos dirigentes e trabalhadores e de um direito consagrado enquanto seus mecanismos. Também existem outros mecanismos que inibem os impactos que a greve poderia ter no processo produtivo, que é o que se chama contingência ou substituição de trabalhadores. Anteriormente, os empregadores tinham a faculdade de substituir os trabalhadores no meio da negociação coletiva. Ou seja, se havia negociação e iniciava-se uma greve, passados 15 dias, eles tinham a possibilidade de contratar outros trabalhadores de fora da empresa para desempenhar as funções, e dessa forma, claro, o impacto da greve era nulo. Com a nova reforma isso foi proibido, mas o que ocorre é que ainda é possível a substituição, mas desde que por trabalhadores internos da empresa, podendo estes ainda reclamarem das novas tarefas. DF: E aparentemente há um acordo sobre o que pode e o que não pode em uma greve, que foge do que é recomendado pela OIT... DV: O que foi estabelecido na última reforma foi um procedimento de acordo pelos serviços mínimos e que não são os mesmos serviços mínimos sugeridos pela OIT. Nesse caso, antes da negociação coletiva, se produz uma negociação prévia e nesta se estabelecem quais são os postos de trabalho que o sindicato deve disponibilizar para que não sejam interrompidas essas funções específicas, que, supostamente, são aquelas mais graves, que põem em risco a saúde e a vida das pessoas, a segurança ou algo assim. Obviamente, sempre que se chega a essa negociação prévia, os empregadores exigem que mais e mais postos de trabalho sejam supridos. Isso é ridículo, pois no fundo, o sindicato tem que dispor dos trabalhadores em greve para que trabalhem. Caso as partes não cheguem a um acordo, esse processo de negociação prévia tem de ser resolvido pela Direção do Trabalho. Dessa forma, o número de trabalhadores disponíveis vai depender muito da Direção e do Governo. E se não houver um acordo, este processo pode ser judicializado, para que a Justiça do Trabalho decida quantos trabalhadores devem ser disponibilizados. Como se pode ver, é uma negociação muito enredada e desgastante para os sindicatos, pois antes mesmo de começarem a negociação é possível que as questões sejam judicializadas e o processo negocial travado. DF: No final os sindicatos acabam tendo pouco poder de decisão? DV: Sim. Como dizia, os agentes estatais não têm a faculdade de determinar o resultado da negociação coletiva, estão aí somente para mediar e com muito pouco poder resolutivo. E, se finalmente as partes não chegam a um acordo, ocorre que se invoca o art. 3423, que estabelece que o contrato coletivo anterior se estende por mais 18 meses. A última reforma, que foi promulgada há dois anos, estabeleceu pela primeira vez um piso de negociação, que é justamente o contrato coletivo anterior. Então, para os sindicatos era muito difícil melhorar os patamares de seus contratos, pois tinham de negociar a manutenção dos benefícios que tinham anteriormente, juntamente com os benefícios a mais que se poderia ter. Então, o que ocorria? As negociações coletivas estabeleciam reajustes muito baixos, em média de 1%. Era muito difícil que os sindicatos lograssem alcançar a inflação básica. DF: Na sua opinião, quais são os desafios do sindicalismo chileno na atualidade? DV: Eu diria que o maior desafio talvez seja a escala das negociações. É necessário que as negociações coletivas se livrem de sua âncora ao nível da empresa, ou seja, que possam negociar em níveis mais altos, oxalá ao nível da categoria ou, porque não, ao nível nacional no futuro. Esse é o principal desafio do sindicalismo chileno, em torno do que eles têm de se juntar. Alguns atores já pensam assim, mas ainda não com tanta força. De fato, a reforma que foi negociada há uns dois ou três anos excluiu dos debates a negociação por categoria. Mas esse é um processo um pouco longo, me parece, pela própria ideia do sindicalismo chileno. *Daniel Fabre é advogado e mestre em Teoria do Direito