“Trump não é uma exceção, mas um retrato do declínio do poder dos EUA”, diz historiador

Com a posse do democrata Joe Biden, nesta quarta-feira (20), Yuri Martins-Fontes avalia qual o legado do republicano e como será a relação dos EUA, ‘sob nova direção’, com o Brasil

Donald Trump e Joe Biden - Foto: Reprodução/CNBC
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A trajetória de Donald Trump na Casa Branca chega ao fim nesta quarta-feira (20), com a posse do democrata Joe Biden e sua vice, Kamala Harris. Em termos de popularidade local, o republicano viveu alternâncias durante o mandato, mas deixa o governo com o índice mais baixo de aprovação da história da pesquisa Gallup: 34%.

Há razões para isso: “Os Estados Unidos são hoje o país mais afetado no mundo pela pandemia do coronavírus, fato que se relaciona, diretamente, com o irracionalismo de Donald Trump: sua atitude irresponsável diante da Covid-19, sua falta de tato político e, sobretudo, sua negligência quanto ao problema social que se agrava nas últimas décadas em seu país”, avalia Yuri Martins-Fontes, filósofo, escritor e doutor em História.

Para ele, esse conjunto de fatores levou os Estados Unidos a uma situação caótica, em que se contabilizam mais de 400 mil mortos e 24 milhões de contagiados pelo coronavírus.

“Com a pandemia, a desigualdade social, que já vinha num crescente, chegou a índices alarmantes: 40 milhões de lares pauperizados; cerca de um sexto da população, ou 50 milhões de pessoas, na miséria; dentre as quais, 17 milhões de crianças”, destaca Martins-Fontes.

O filósofo e historiador constata que o efeito Trump foi o de algumas dezenas de milhões a mais de cidadãos sem acesso a uma alimentação cotidiana adequada, em termos de quantidade e qualidade. “Tais dados são dos institutos e departamentos do próprio governo estadunidense. E isto está ocorrendo no país que é de longe o mais rico do mundo”.

Contudo, ele alerta que o governo Trump não é um “desvio da curva”, ou seja, não se ergueu ao poder do nada, como uma “exceção” antidemocrática. “O trumpismo é o ‘normal’ dentro do panorama ideológico estadunidense. Porém, sob Trump, o cenário apareceu com lentes de aumento”, afirma.

Trump, na opinião de Martins-Fontes, é o saldo de um longo processo de decadência socioeconômica, política e cultural do país. “E é, também, um dos resultados da crise estrutural do capitalismo, cuja diminuição das possibilidades de lucros ameaça o mundo com crescente desemprego em massa e com a devastação do meio ambiente. Trump não é uma exceção: é um retrato da decadência dos EUA”, resume.

Legado

Diante deste cenário, qual o legado que o governo de Donald Trump vai deixar? Martins-Fontes acredita que o republicano pratica uma espécie de neofascismo, o que pode ter sido útil em um primeiro momento ao capital estadunidense em turbulência. Mas no médio prazo deixa sequelas.

“O fascismo, historicamente, foi a forma de governo promovida pelas elites nos momentos de agudização da crise social e econômica, situações nas quais o discurso pseudodemocrático capitalista já não estava funcionando e o capital corria riscos diante da insatisfação popular. No entanto, o fascismo joga com elementos de irracionalidade (populismo violento de direita, negacionismo científico), que ameaçam o próprio capital”, pensa o historiador.

Para ele, era previsto que, sob Trump, a crise dos EUA se agravasse, como de fato ocorreu, em termos socioeconômicos, geopolíticos e também culturais.

“Os EUA, desde sua consolidação nacional, cultivam uma espécie de falácia messiânica, segundo a qual eles seriam o grande ‘exemplo’ da ‘modernidade burguesa’, o modelo que promoveria a [sua] civilização [branca, cristã, patriarcal, capitalista] para todo o mundo”, diz.

“Este ‘excepcionalismo’ já vinha em descrédito desde meados dos anos 1960, quando se dá o fim dos anos de ouro do capitalismo (com seu oportunista reformismo antissoviético), e Reagan passa a impor a violência neoliberal explícita pelo planeta afora”, acrescenta o historiador.

Segundo Martins-Fontes, com Trump, este processo de declínio acentuado do poderio e da economia dos EUA se acelerou. Ele aponta algumas justificativas, como o dólar que dá sinais de queda abrupta; a União Europeia, que começa a buscar certa independência geopolítica da OTAN (organismo em que os europeus sempre foram subservientes).

“E, ainda: a aliança eurasiática entre Rússia e China se fortalece e já começa a enfrentar o até então imbatível poderio militar do Império do Norte; além do fato de a órbita de influência político-econômica chinesa estar se expandindo com surpreendente rapidez (Rota da Seda, exercícios militares conjuntos, soberania sobre Hong Kong etc)”, aponta.

Biden

O que o mundo deve esperar de Joe Biden? O historiador lembra que, recentemente, o presidente eleito publicou um artigo na revista de temas militares Foreign Affairs, com o título: “Por que os Estados Unidos devem liderar novamente”.

“No texto, ele afirma sua intenção de retomar investimentos na OTAN, reiterando a condição de superaliança bélica desta que é a mais poderosa força de guerra do mundo. Como costuma acontecer com governos dos ‘democratas’, Biden acena, ainda, à retomada mais ostensiva da influência ianque sobre as nações da América, e a novas hostilidades contra países que possuem modelos autônomos de desenvolvimento, ditos ‘não alinhados’, casos de Venezuela, Cuba, Bielorrússia, Síria etc”, projeta.

Martins-Fontes pensa que, diferentemente de Trump, que em certa medida se “fechou” geopoliticamente, Biden deverá retomar a iniciativa de seus partidários anteriores (como Obama), “incentivando golpes de estado, guerras híbridas (que envolvem vertentes midiáticas, jurídicas etc) e até mesmo novas guerras, como fizeram no Afeganistão, Iraque, Síria”.

No entanto, segundo ele, dada a situação enfraquecida dos EUA no tabuleiro internacional, o mais provável é que, em um primeiro momento, Biden privilegie as intervenções políticas através de mecanismos como o “lawfare” (perseguição judicial com fins políticos, como fez Sérgio Moro contra o ex-presidente Lula no Brasil), antes de se arriscar em golpes tradicionais, com o uso da força: mais explícitos e custosos econômica e politicamente.

“Por outro lado, Trump, desde o início, buscou distensionar as relações com a Rússia, dirigindo seus ataques à China. Já os ‘democratas’, que sempre bateram na tecla de ver nos russos a ‘ameaça maior’, tudo indica que agora aderiram ao trumpismo: a China é a grande ‘inimiga’ de hoje, ou melhor, a parceria sino-russa”, conta.

“E tal situação, parece agora mais grave, pois, pela primeira vez desde o pós-Segunda Guerra, os EUA veem ameaçada sua hegemonia econômica sobre o mundo”, acredita.

Para Martins-Fontes, Biden deve, portanto, intensificar a Nova Guerra Fria contra a China, mas sem descuidar de atacar a Rússia.

“Também deve manter o estado de alerta para que as duas grandes potências não consigam obter uma nova união com medianas potências emergentes, como foi o caso do dilacerado grupo dos Brics (quando Brasil, Índia e África do Sul chegaram a trilhar juntos um caminho progressista mais autônomo)”, analisa.

Brasil

No que e refere às relações norte-americanas com o Brasil, com a troca no comando dos EUA, ele acha importante partir do princípio de que não existe um ‘Brasil’: existem ‘Brasis’.

“O ‘Brasil’ que comanda agora é o pior Brasil, aquele da ignorância, da intolerância, do racismo e machismo descarado, do agronegócio que devasta, do privilégio dos magistrados e militares. O Brasil, enfim, das elites internas, que nunca foram realmente ‘nacionalistas’, e que diante de qualquer menção a um projeto reformista, por mais brando que seja, arregaça as mangas e apela até mesmo ao fascismo”, destaca.

“Este Brasil desonesto e violento parecia morto, mas estava somente na gaveta, desde o fim do golpe militar de 1964. E tem apoios ‘ilustres’. Não à toa a imprensa corporativa brasileira (Estadão, Folha, Globo), com seus sensatos e inteligentes colunistas, teve e continua tendo a pachorra de comparar o PT com o fascista Bolsonaro, como se fossem ‘dois extremismos’. Aí o resultado desta mesquinha negligência”, acrescenta o historiador.

Com Biden, espera Martins-Fontes, Bolsonaro perderá o apoio de seu principal par, em termos de discurso e política de disparates. “Porém, o Brasil continua sendo capitalista e selvagem. O partido golpista da aliança mídia-tribunais-indústria-milicos continua apostando em passar a ‘boiada’ das contrarreformas neoliberais, ‘apesar’ da estupidez do bolsonarismo”.

Para ele, é nítido que, sem Trump, Bolsonaro fica mais fraco. “Mas para que ele seja retirado do poder, seria preciso invocar, por parte das elites dominantes, forças armadas subservientes, magistrados vendidos e maioria de congressistas reacionários, uma inteligência e visão estadista de que não se tem vestígios na história de nossa inconclusa ‘seminação’”.

Outra alternativa, na opinião do historiador, seria ver o povo tomar as ruas.

“Porém, sem uma liderança que aglutine as vozes populares, e com as restrições da pandemia, o panorama não parece animador. Assim, Bolsonaro vai se sustentando: entre acenos à ganância neoliberal, a ignorância política nacional promovida pela grande mídia e projetos antieducação, e o estado de emergência da pandemia, que ele não quer resolver, pelo contrário”, completa.