Com vidas marcadas por Pinochet, chilenas falam sobre Boric e esperança

Morando há décadas no Brasil, Marta Muñoz Contreras e Gilda Segovia Lo Presti são testemunhas da história e do horror do diabólico ditador que fez do Chile um inferno por 17 anos. A eleição do jovem esquerdista trouxe paz e emoção às duas

Foto: Augusto Pinochet (Arquivo Nacional do Chile) e Gabriel Boric (Campanha eleitoral/Redes sociais)
Escrito en GLOBAL el

Na tarde de 11 de setembro de 1973, caças da Força Aérea do Chile, a FACH, levavam a cabo finalmente os planos e ameaças encabeçados pelos militares do país andino contra o presidente constitucional Salvador Allende Gossens. As imagens históricas mostram o Palácio de La Moneda, sede da Presidência da República, em escombros e sob uma densa fumaça. Era o resultado de um animalesco bombardeio.

Dentro do edifício que simboliza o poder político chileno, Allende resistia, e em seu discurso de despedida pela rádio Magallanes, como numa profecia, o médico chileno que hoje vive nos corações dos democratas de toda a América Latina disse:

"Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre para construir una sociedad mejor."

Nem os 48 anos desde sua morte foram capaz de apagar tamanha previsão.

Veio Augusto Pinochet e com ele 17 anos de tirania, mortes, torturas e todo tipo de terror. Mais de 40 mil cidadãos sofreram as piores sevícias e 3.065 deles perderam a vida nos porões imundos da psicopatia política.

Veio a democracia e com ela as sucessivas alternâncias de poder entre os blocos de direita e de esquerda. Mas nem os 30 anos de retorno da liberdade foram capazes de apagar as marcas deixadas na sociedade chilena. Um país com seus velhos à míngua, sem aposentadoria digna, os sistemas educacional e de saúde caríssimos, o desempregado e a vida apertada, herança das leis e da Constituição que resistiram ao desaparecimento do verdugo que traumatizou todo o povo.

Depois de fogo nas ruas, de estátuas derrubadas e de pressões intensas, sobretudo emanadas das camadas mais jovens da sociedade, chegou a hora da profecia de Allende se materializar.

Gabriel Boric Font, 35 anos, do partido Convergência Social, venceu o sabujo pinochetista José Antonio Kast e está eleito como o novo presidente do Chile.

Para Marta Muñoz Contreras e Gilda Segovia Lo Presti, duas chilenas que deixaram sua terra natal em meio aos horrores da repressão do diabólico general que rendeu a nação, a vitória do jovem idealista de esquerda é mais do que um triunfo eleitoral. Traduz-se como um renascer da esperança e um rompante de alegria.

A reportagem da Fórum conversou com as duas senhoras chilenas, uma muito emocionada e a outra com palavras muito firmes, e ouviu delas um pouco sobre suas dramáticas histórias do Chile de 1973, da chegada ao Brasil e da alegria e expectativa para ver Boric com a faixa no peito sentado na cadeira principal do Palácio de La Moneda.

Marta Muñoz Contreras, natural de Talcahuano:

“Eu cheguei aqui em 1977. Em 1973 eu havia entrado na faculdade e depois, em 74, eu saí e não aguentei mais. Uma depressão, uma angústia... Até o psiquiatra dizia isso. E eu não sabia o que era, né? Eu era uma menina, tinha 20 anos. E ele me receitou viajar e então eu fui pra Argentina. Fiquei na Argentina por um ano, voltei ao Chile e acabei vindo para cá em 77. Eu me recordo que sai de lá sem ter nada claro, sem compreender absolutamente nada do que acontecia comigo. E eu só fui entender o que acontecia comigo muito tempo depois, bem mais velha. Com o passar do tempo, eu via um filme, assistia a algo que me tocava sobre o Chile, e aquilo me fazia chorar muito. Por exemplo, eles mataram um professor meu da universidade que era o mais querido, mataram uma parte da família inteira minha. Os que não morreram, precisaram ir para a Alemanha. Foi muita coisa que vivi e eu era uma menina de tudo, muito jovem. Comigo, diretamente, nada aconteceu, embora eu fosse do Núcleo Universitário Socialista. Nós nos reuníamos muito para conversar, trocar ideias, enfim, éramos jovens cheios de ideais. Tudo isso é muito complexo, eu não conseguia perceber o que causava tudo aquilo em mim, só notei mesmo depois de muitos anos. Eu perdi minha identidade. Parei a faculdade, nunca consegui voltar. Tudo relacionado a estudar me lembrava os momentos terríveis que nós vivemos lá. É estranho, hoje não me sinto mais chilena, não tenho aquela coisa que a maioria dos chilenos têm, de serem patriotas. Eu criei uma espécie de proteção para mim mesma, não queria saber de política, de ativismo. Isso faz parte de toda essa psicose causada por todo esse terror que a gente viveu lá.”

“Lembro que na saída de Pinochet do poder eu queria soltar até rojões. Esse governo gerou tantas desgraças em tantos aspectos para o povo chileno. Hoje se sabe que essa gente era envolvida até com o tráfico. Quando essa notícia chegou (da eleição de Boric), eu chorei até 3 horas da manhã. Depois de tantos anos, um homem de esquerda mesmo no Chile. Tá vendo (chora)... Eu não me curo nunca mais disso... Ver as pessoas morrerem e... Por quê? Porque pensavam diferente... Quando soube, uns poucos dias atrás da morte daquela mulher dele (Lucía Pinochet Hiriart, esposa de Augusto Pinochet, falecida na última semana), aquele monstro... A primeira coisa que pensei foi: o inferno deve estar em festa. E ela se foi sem pagar pelos delitos dela. Da justiça divina ela não escapa, imagine como estava esperando essa mulher e aquele monstro do marido dela quando eles chegaram do outro lado. Tanta gente assassinada por eles, por aquele governo maldito que tivemos lá. Passou um filme na cabeça da gente. Tanta morte, tanto sofrimento... E agora essa maravilhosa mudança. A gente espera que melhore muito.”

“Eu preferi não assistir à televisão no domingo, aí a minha nora me disse que ele (Boric) tinha vencido no Chile... Eu chorei de emoção (se emociona novamente)... Só que esse é um choro de esperança, de dias melhores para o Chile, que seja também um exemplo para o Brasil, que enxote esse ser abjeto que temos aqui pra bem longe, acabe com esse desgoverno... Eu sei é que peço muita luz pra esse jovem (Boric), porque essa idade é a mais maravilhosa de todas, uma idade cheia de ideais, e que nunca se percam os ideais... Eu mesmo já havia perdido os meus, voltei ao Chile e só via as pessoas com uma espécie de síndrome de ódio, com muita raiva... E aquilo não era mais o meu país. Nós precisamos de paz... E que isso sirva de prenúncio para uma mudança no Brasil também.”

“A única coisa que ficou em mim foi a alma de esquerda. É uma raiz. Eu sou parte do proletariado, pobre. Ainda que não tenha acontecido nada mais grave diretamente comigo, exceto os traumas, a alma de esquerda permanece, ela fica com a gente. É uma questão de caráter, de consciência e principalmente de consciência social. Eu fiquei muito feliz com a vitória desse moço bonito. Tem horas que eu chego a me perguntar: “será que ele não é a encarnação do meu maravilhoso presidente Allende? Eu fico nessa esperança, porque Allende foi uma pessoa muito educada, culta e sobretudo humana”.

Gilda Segovia Lo Presti, de Santiago:

“Eu fui exilada política, era uma jovem estudante universitária. Na época, eu já era casada com um brasileiro e os brasileiros a essa altura também já eram perseguidas pela Ditadura Militar. Eu era da Universidade de Santiago, uma universidade pública onde muitas pessoas, como o Victor Jara, o famoso cantor e compositor chileno assassinado pelo regime de Pinochet, foram perseguidas. Nós saímos ao final de 1973, o golpe foi em setembro e na sequência nós já saímos. Nós saímos através da Embaixada da Colômbia, fomos diretamente para Bogotá, num avião Hércules das Forças Aéreas Colombianas, que naquela época estava num processo de eleições presidenciais e isso serviu para que nós fôssemos recebidos lá como uma demonstração de solidariedade. Só que chegando à Colômbia as coisas já começaram a ficar diferentes, tivemos problemas com a polícia política, tínhamos que nos apresentar constantemente nos órgãos de segurança, já que a situação lá era muito parecida com a do resto de toda a América Latina, eram muitas ditaduras. Foi então que buscamos sair de lá e chegamos à República Democrática Alemã (Alemanha Oriental). No total foram quatro meses em Bogotá, um tempo na RDA (Alemanha Oriental) e quando ocorreu o 25 de Abril em Portugal (Revolução dos Cravos, fim oficial da Ditadura Salazarista) fomos para lá, até pela proximidade da língua, proximidade cultural. Aí viemos ao Brasil na anistia, em 1979.”

“O fim da ditadura Pinochet não ocorreu assim, de uma hora pra outra. Essas coisas não acontecem da noite para o dia. Elas começam muito tempo antes e nós, daqui, éramos informados pelos movimentos, pela oposição, lá de dentro (do Chile). Nós já sabíamos que haviam diminuído as táticas de repressão da ditadura. Enfim, isso foi acontecendo de forma paulatina, em todos os sentidos, e você sente essa sensação de ter conseguido sair dessa infâmia, desse pesadelo, que nos tocou as vidas para sempre, mas isso você vive durante muito tempo. Era sempre aquela espera pelos escritos que eram clandestinos, os filmes, aquela maravilhosa campanha feita pelos publicitários (o plebiscito de 1988, no qual a população votou pelo fim da Ditadura de Pinochet). É viver uma sensação, como eu senti, não sendo brasileira, quando caiu a Ditadura Militar aqui, ou no fim da ditadura em Lisboa, ou quando os americanos saíram de helicóptero do Vietnã, enfim... São momentos que você guarda como uma profunda sensação de justiça.”

“Nós estamos como adormecidos, principalmente com a situação que gente vive no Brasil, do que aconteceu aqui, da escolha do povo brasileiro através do voto democrático... A mim fez muito bem ver a chegada de Boric ao governo, porque agora terminam todas essas fantasias do Chile fantástico, neoliberal, que no fundo foi um grande fracasso, tempos obscuros para os aposentados, para os jovens, para as universidades, que foram privatizadas, o sistema de saúde pública, que também mudou... Vemos que o Boric é muito claro, não usa chavões, e você deve ter visto o discurso, né... Eu fiquei muito mais feliz do que quando ganhou a Michelle Bachelet, e eu fui colega de turma no colégio da Michelle Bachelet, respeito ela profundamente pela sua história, mas esse momento vivido agora é outro. Eu acredito que essa vitória do Gabriel Boric vai ser fundamental não só para o Chile, mas também para a América Latina e para o mundo, para frear essa ameaça que pairava no ar, do crescimento dessas forças de ultradireita... Vai se retomar o espírito público e os valores republicanos. Eu estou muito, muito contente.”