Braços cruzados

Muito antes das indústrias: essa foi a primeira greve registrada na história

Hoje em dia as greves trabalhista são comuns mesmo com os direitos trabalhistas garantidos; antigamente, este conceito não era formado

Escrito en História el
Historiadora e professora, formada pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Escreve sobre história, história politica e cultura.
Muito antes das indústrias: essa foi a primeira greve registrada na história
Pintura egípcia em tumba. domínio público

Quando se fala em direitos trabalhistas, é comum associar o tema à Revolução Industrial ou às conquistas sociais do século XX. No entanto, a luta por condições de trabalho dignas começou muito antes — há mais de três milênios, no coração do Egito Antigo.

Foi ali, em uma pequena vila às margens do Nilo, que um grupo de artesãos decidiu cruzar os braços e exigir aquilo que lhes era devido. O episódio ficou registrado como a primeira greve da história da humanidade.

O Egito dos construtores de tumbas

O acontecimento remonta ao reinado do faraó Ramsés III (cerca de 1186 a.C. – 1155 a.C.), um período de poder concentrado, e também de crise econômica e instabilidade administrativa. Na vila de Deir el-Medina, também chamada de Set Maat (“O Lugar da Verdade”), viviam os artesãos e operários responsáveis por erguer as tumbas reais do Vale dos Reis e do Vale das Rainhas.

Esses trabalhadores faziam parte de uma elite técnica do Egito: eram escultores, pintores e pedreiros altamente especializados, cuja função era garantir que os faraós tivessem uma morada digna para a eternidade. Em troca, recebiam pagamento em rações — grãos, cerveja, legumes e peixe seco — que sustentavam suas famílias.

Porém, o sistema começou a falhar. Problemas logísticos, corrupção e desorganização do Estado atrasaram as entregas. O que antes era uma rotina estável tornou-se uma sequência de promessas não cumpridas — até que a paciência acabou.

Quando o pão faltou

O que motivou a greve foi algo básico: a fome.

Os salários começaram a atrasar cada vez mais. Após semanas sem receber suas rações, os trabalhadores se recusaram a continuar o serviço. Guiados por líderes da vila, eles marcharam até os templos da região — entre eles o de Medinet Habu, dedicado ao próprio Ramsés III — e fizeram suas reivindicações de forma organizada e pacífica.

Os eventos foram registrados por um escriba chamado Amenenkaht, em um documento que ficou conhecido como o “Papiro da Greve”. Nele, o escriba relata as palavras dos grevistas:

“Temos fome e sede. Não há roupas, não há unguento. Escreve ao faraó para que ele nos faça justiça.”

Essa foi, em essência, uma greve moderna em forma primitiva: uma paralisação coletiva, com pauta clara e estratégia de pressão.

A resposta do poder

A mobilização deu resultado. Diante da persistência dos artesãos, as autoridades acabaram cedendo e liberando os pagamentos atrasados. O sistema não mudou de forma estrutural, mas o episódio deixou claro que o poder real não era absoluto — e que até no auge de um império teocrático, a voz dos trabalhadores podia ecoar.

Mais do que uma simples revolta por comida, a greve de Deir el-Medina foi um ato de consciência social e política. Os egípcios acreditavam no princípio da ma’at — a ordem e a justiça que sustentavam o mundo. Quando o Faraó falhou em cumprir suas obrigações, os trabalhadores entenderam que lutar por seus direitos era também restaurar o equilíbrio da sociedade.

Ramses III
(foto: domínio público)

A greve dos artesãos de Ramsés III ficou para a história como o primeiro protesto trabalhista documentado. Ela mostrou que a busca por dignidade, reconhecimento e justiça no trabalho é tão antiga quanto a própria civilização.

Mais de três mil anos depois, os ecos daquela paralisação continuam a ressoar. Seja em fábricas, escritórios ou canteiros de obras, cada greve moderna carrega um pouco do espírito de Deir el-Medina — o momento em que simples trabalhadores ousaram desafiar o faraó e, pela primeira vez, descobriram a força da união.

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