Ao se apresentar ao mundo como papa Leão XIV, na sacada da Basílica de São Pedro nesta quinta-feira (8), o americano Robert Prevost não citou Pedro, nem Paulo, tampouco Francisco de Assis. Preferiu Agostinho de Hipona.
“Sou um filho de santo Agostinho, agostiniano, que disse: ‘com vocês, sou cristão, e para vocês, bispo’. Neste sentido, podemos todos caminhar juntos em direção àquela pátria que Deus nos preparou”, afirmou diante da multidão reunida na Praça São Pedro.
Sua escolha pelas palavras de Agostinho não é meramente teológica, mas também uma chave simbólica para entender os rumos da Igreja Católica em um momento de desafios internos e externos.
Prevost, que ingressou na ordem agostiniana em 1977, tem uma trajetória que se entrelaça com o pensamento de um dos mais influentes pensadores da Igreja. Fundada no século 13, a ordem agostiniana, tem como base valores como caridade e a conexão com os mais pobres. A organização atualmente está presente em 50 países, voltada para administração de igrejas e escolas, como o colégio Santo Agostinho fundado no Brasil em 1934 por padres agostinianos.
Te podría interesar
História
Poucos nomes são tão fundamentais na cultura ocidental quanto o de Agostinho. Filósofo, teólogo, santo da Igreja Católica, sua influência atravessou gerações de pensadores e devotos, tendo moldado não apenas o pensamento cristão medieval, mas a maneira como o Ocidente pensa sobre temas como pecado, liberdade e conhecimento.
Nascido em 354 em Tagaste, na atual Argélia, Agostinho viveu uma época de transição, quando o cristianismo deixa de ser perseguido e passava a ocupar o centro do poder no Império Romano.
Formado pelos clássicos latinos, só mais tarde se voltou à Bíblia. Mas não a leu como um convertido que renuncia ao passado: dialogou com Sócrates, Cícero e Platão ao interpretar as Escrituras. E é desse embate entre tradição clássica e revelação cristã, escola de pensamento chamada de Patrística, que emerge seu pensamento como um síntese entre cristianismo e filosofia grega.
"Agostinho de Hipona caracteriza-se por ser um pensador de fronteira. Mas o que é ser um pensador de fronteira? É saber refletir frente a estágios em que a crise política e cultural fazem nascer um novo momento da história", pontua Azevedo. "A reflexão fronteiriça agostiniana perpassa da antiguidade clássica e fornece as fontes para poder pensar o período cristão nascente.", afirma Segundo Azevedo, estudioso da obra de Agostinho e professor, à BBC.
Razão, uma aliada da fé
Nas Confissões, sua obra mais famosa, Agostinho inaugura uma nova forma de escrever — íntima, filosófica, poética. Nela ele refletiu sobre sua própria vida não como autobiografia, mas como uma jornada interior em busca de Deus.
Para Agostinho, conhecer a si mesmo é também tentar compreender o divino, o que o faz ser, de certa modo, precursor da psicologia moderna. Mas essa compreensão não se dá apenas pela razão, como queriam os filósofos antigos. Nem apenas pela fé cega, como pregavam certos cristãos de sua época. O caminho, segundo ele, é o de uma fé que deseja compreender — uma fé que pensa.
Essa postura — chamada depois de fides quaerens intellectum, ou "fé em busca de entendimento" — recusa tanto o racionalismo arrogante quanto o fideísmo ingênuo. Agostinho acreditava que fomos criados com razão e que é natural usá-la para entender as verdades que aceitamos pela fé.
Ao mesmo tempo, reconhecia os limites da mente humana e a fragilidade do conhecimento puramente racional. É por isso que, para ele, a fé não é apenas uma questão intelectual, mas também ética e afetiva: é pela fé que nos purificamos para um dia, talvez, ver a verdade “face a face”.
Entre os temas que mais o inquietaram está a própria mente humana. Em seu livro A Trindade, Agostinho faz o exercício de compreender o mistério de Deus — Pai, Filho e Espírito — a partir da estrutura da mente humana.
Assim como Deus é uno e trino, a mente também se manifesta em três dimensões: memória, entendimento e vontade. Para ele, a mente é imagem de Deus não porque pense, mas porque se conhece, se lembra de si e se ama. É nesse espelho interior que vislumbramos, ainda que imperfeitamente, o que significa ser criados “à imagem e semelhança” do divino.
Política
Agostinho também foi um dos primeiros a defender a ideia de que o poder político é necessário porque os seres humanos, por natureza, tendem ao pecado. Essa visão justificou, por séculos, a aliança entre Igreja e Estado. Sua doutrina sobre o “pecado original” criou az base teológica para a hierarquia e a disciplina, ao mesmo tempo em que alimentava o medo da carne, da liberdade, do erro. Ao lado da razão, portanto, reside no seu pensamento o lado obscuro de uma teoria da contenção e do controle.
Embora não tenha sido concebido como um tratado político, o seu livro Cidade de Deus apresenta reflexões relevantes sobre a função da política, que podem esclarecer a visão com que Leão XIV deverá olhar a politica.
Para Agostinho, a Cidade Terrestre — símbolo das estruturas humanas marcada pelo pecado — exercia um papel fundamental na trajetória do ser humano rumo à Cidade de Deus. Nesse percurso, a paz temporária proporcionada pelo Império Romano, a pax romana temporalis, era interpretada por Agostinho como uma espécie de preparação para a paz eterna e espiritual da Cidade Celeste.
Se o pontificado de Leão XIV será marcado por esse mesmo olhar, ainda é cedo para afirmar. Mas os sinais são esses.