"A sociedade naturalizou a violência contra a população LGBT", diz Renan Quinalha

O pesquisador, que acaba de lançar o livro “Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade LGBT”, também explica como o regime militar institucionalizou a LGBTfobia

Para Renan Quinalha, a sociedade naturalizou a violência contra as LGBT/ Foto: Divulgação
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Recém-lançado pela editora Companhia das Letras, o livro “Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade LGBT”, de Renan Quinalha, traz uma dimensão pouco estudada e comentada sobre o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), a saber: a organização estatal da LGBTfobia.

De um lado temos a repressão objetiva do aparelho militar contra todos os grupos de esquerda no Brasil: prisões, torturas e mortes. Em uma outra esfera, e é nesta que o trabalho de Quinalha se debruça, é a perseguição contra o incipiente movimento LGBT e a sua ameaça, aos olhos dos generais, contra a moral e os bons costumes.

Além das prisões e perseguições contra as LGBT, vide as ações policiais comandadas pelo delegado Wilson Richetti, que tinha por objetivo “higienizar” o centro da cidade de São Paulo, leia-se: tirar de circulação as LGBT, o trabalho de Renan Quinalha também traz uma densa análise de que como o regime militar organizou nos meandros do aparelho estatal, mas também em parcela da sociedade, a construção da mentalidade LGBTfóbica no Brasil.

Isso não quer dizer o Estado brasileiro anterior à ditadura fosse pró-LGBT ou que simplesmente ignorasse tal segmento da população enquanto uma ameaça à família brasileira e à nação. Porém, os militares, e isso é revelado pela análise que o autor faz a partir de farta documentação, identificam nos grupos LGBT que estão se organizando como uma ameaça tão nociva quanto o comunismo.

Além disso, Renan Quinalha, que é pesquisador e professor de direito na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), faz um longo e denso estudo sobre a imprensa alternativa e, especificamente, sobre o jornal Lampião da Esquina, um marco do jornalismo LGBT e que foi publicado durante os últimos anos da ditadura militar, mas, nem por isso deixou de sofrer intensa perseguição do regime autoritário.

Na entrevista que você confere a seguir, Quinalha fala sobre o processo de institucionalização da LGBTfobia no Estado brasileiro e como isso se dá atualmente, e também analisa como a “sociedade naturalizou a violência contra a população LGBT" a partir do processo histórico de formação do Brasil, que foi construído a partir do colonialismo, perseguição e violência.

Fórum - Durante o seu livro você analisa uma certa estatização e profissionalização da LGBTfobia, um espalhamento da ideia de bons costumes pelos aparelhos de Estado. Isso permanece?

Renan Quinalha - O objeto principal do livro é mostrar como a ditadura institucionalizou a LGBTfobia. Ela é cultural, ela é social, está diluída em vários espaços da sociedade, em formadores de opinião, nos discursos jornalísticos, médicos, jurídicos, enfim, e a ditadura consegue, ao concentrar o poder político de maneira progressiva cada vez mais no executivo, ela consegue institucionalizar de uma maneira como nunca antes a LGBTfobia no campo do Estado
Isso acaba dando os instrumentos para que esse conservadorismo moral implemente políticas sexuais muito específicas que eu busco analisar no livro, eu acho que essa é uma das principais teses que eu sustento: da existência dessas políticas sexuais que mudam em termos qualitativos no momento da ditadura.

Com o processo de redemocratização ficou mais difícil em termos de concentração do poder político, porque o processo da construção da democracia pós-88 é marcado por uma partilha do poder em vários níveis. Isso garantiu possibilidades de mudanças nesse sentido também, de mais mecanismos de controle. Nesse aspecto é um tanto diferente, por mais que a gente viva um momento bastante regressivo de gênero e sexualidade com ameaças muito presentes, hoje há um movimento LGBT muito mais vigilante, há conquistas importantes no último período de visibilidade, de reconhecimento e até de direitos, isso torna diferente esse momento que a gente vive e o papel do Estado acaba sendo outro.

Hoje ainda há uma parte do Estado que vive de maneira cúmplice desses crimes de LGBTfobia que ainda dominam a sociedade, mas há menos engajamento do Estado, inclusive outras áreas do Estado, como o campo dos Direitos Humanos possui várias secretarias, que acabam operando de outra maneira no sentido da garantia de direitos.

Fórum - O que diferencia e o que aproxima o Brasil de hoje com o da época da ditadura militar?

Renan Quinalha - Eu acho que tem várias semelhanças e não é à toa que as pessoas tendam a reproduzir ou mesmo achar o momento que a gente vive em relação a ditadura, inclusive porque hoje Bolsonaro e seu governo fazem apologia aberta a ditadura, a tortura, então acabam colocando a todo momento essa semelhança, não pela nossa leitura, mas pelos próprios atores que reivindicam um novo AI-5 e nesse sentido o projeto é muito semelhante.

É um projeto autoritário do ponto de vista político, é um projeto conservador do ponto de vista moral, e é um projeto que flerta com certas perspectivas econômicas mais conservadoras: de concentração de renda que dominou a ditadura e que domina também as atuais políticas do atual governo. Nesse sentido é muito próximo.

Mas eu creio que nesse momento, por mais que a gente viva tempos que são desafiadores, de risco de direitos e à própria democracia, a gente está vendo a fragilidade da democracia, mas do ponto de vista da sociedade a organização é muito diferente, a gente tem muito mais elementos da sociedade para resistir, muito mais anteparos diante das apostas e tentativas autoritárias.

Eu não sou do tipo da filosofia de que as instituições estão funcionando muito bem, porque não estão. A Constituição de 88 colocou um pacto importante, uma cultura política importante, por mais limitada que ela seja hoje e com as suas contradições, nos apresenta um cenário que é bastante diferente. Então, do ponto de vista da repressão é muito semelhante o que a gente tinha lá: os discursos LGBTfóbicos, a moralidade como salvação da nação e redenção, a família tradicional, mas do ponto de vista da resistência… o livro é até aberto com aquele episódio de 1976, com a tentativa de tentar organizar um primeiro grupo, um primeiro congresso homossexual que não dá certo porque as pessoas estão com medo. E acho que hoje a gente vê que o movimento LGBT organiza uma Parada com milhões de pessoas na Avenida Paulista, é um movimento que está em todos os lugares, que está fazendo advocacy, lobby, que está na opinião pública debatendo, escrevendo sobre, ou seja, se tornou um ator relevante e isso não é pouca coisa, isso faz uma diferença importante em relação ao período analisado no meu livro.

Foto: divulgação

Fórum - Você tocou na questão da Constituição de 1988 e ela separou muito bem os poderes. Em outros países, onde a separação dos poderes é mais precária, governos autoritários conseguiram aparelhar todos os poderes. No Brasil o STF tem segurado os intentos golpistas do governo Bolsonaro. O que você acha?

Renan Quinalha - O desenho institucional da Constituição de 88, apesar de eventuais problemas e insuficiências que estão ali, é o que tem nos mantido numa certa trilha, impedido retrocessos que claramente são desejados, que são tentados por parte do governo Jair Bolsonaro. O desenho da Constituição foi um dos processos mais bonitos da história política brasileira e jurídica, o processo constituinte de 88 conseguiu nos colocar um marco de desenvolvimento nacional de busca de justiça social, de políticas públicas, de direito, que é um imaginário importante que foi apropriado por muitos atores da sociedade, evidente que tem crescido o número de pessoas e grupos que desmerecem isso, mas certamente a Constituição é uma das coisas que nos mantém na trilha e impede que esse regime descambe para um autoritarismo ainda maior.

Fórum - No seu livro vocês traz também a forma como a ideia de moral e bons costumes também era forte no campo da esquerda. Provavelmente, o grupo Convergência Socialista foi um dos poucos, naquela época, a lutar contra a mentalidade LGBTfóbica no campo da esquerda, principalmente contra a ideia de que as pautas da sexualidade eram de segunda ordem, a clássica "primeiro a gente faz a revolução e depois resolve isso". No entanto, isso ainda permanece em alguns grupos da esquerda. Para você, por que qual tal crença ainda permanece na esquerda?

Renan Quinalha - A LGBTfobia no Brasil é muito arraigada socialmente. A gente vê desde os discursos religiosos, a nossa formação no processo colonial, que foi de extrema violência e de perseguição contra outras pessoas, e que foi se naturalizando contra as pessoas LGBT, e a esquerda foi forjada nesse mesmo caldo cultural. A sociedade naturalizou e interiorizou a violência contra a população LGBT. As tendência hegemônicas da esquerda sempre viram a homossexualidade como um desvio, como um divisionismo na luta de classes, como uma retirada do foco da principal questão que deveria ser a luta de classes, como uma questão secundária, e até muitas vezes "vamos trabalhar, mas depois da revolução, luta de classes primeiro" e tem um trecho no livro que eu menciono, em uma reunião na USP, em 1979, que um rapaz fala "Tá legal, e depois da revolução, quem é que vai lavar a louça?", uma pergunta direta e singela, mas que diz muito da dificuldade da esquerda tradicional naquele momento em lidar com isso e como incorporar essas demandas do movimento LGBT.

Sempre teve uma dificuldade do campo da esquerda, mas ao mesmo tempo foi o campo do espectro político que mais se abriu para essas demandas. Tem essa contradição: ao mesmo tempo em que reproduziu por muito tempo essa LGBTfobia e há grupos hoje que ainda reproduzem é importante notar como na esquerda é que saem as primeiras iniciativas de aproximação, de acordo, como a gente vê no caso da própria Convergência Socialista, que foi pioneiro na questão LGBT dentro de um partido de esquerda, isso em 1979, isso é uma coisa que não existia, eu não tenho notícia de nenhum lugar na América Latina em que já existi isso.

Fórum - Sim, e outra coisa é que não tinha o nome, mas eles já faziam o debate da intersecção entre as pautas.

Renan Quinalha - Exato, da interseccionalidade, que ainda não estava no meio acadêmico, mas já havia essa perspectiva, inclusive os primeiros atos, e eu narro isso, é o ato do movimento negro unificado, que o grupo SOMOS vai… você tinha essa interseccionalidade com o movimento feminista. Na prática o movimento o já estava entendendo a necessidade da interseccionalidade, até porque as violências eram compartilhadas, ela atingia esses grupos de modo muito parecido.

Fórum - Nós tivemos os governos do PT (2002-16), pela primeira vez nós tivemos políticas públicas LGBT. Supondo que a esquerda retome o poder em 2022, o que você considera que precisa ser feito diferente do que aconteceu no período petista? Que tipo de disputas que nós não fizemos em termos de mentalidades que poderiam ser feitas?

Renan Quinalha - Essa é uma excelente questão para se pensar. Eu acho a gente tensionou de menos nas pautas em que era pra tensionar mais. Na batalha cultural e moral a gente deu pouca importância. Apesar dos avanços inegáveis, quando apertava, o negócio se arbitrava em favor dos conservadores. Isso aconteceu no episódio do "Kit Gay" (Programa Escola Sem Homofobia) no governo Dilma. Isso acabou fazendo que surgisse uma figura que catalisasse a representação do setor conservador, que é Jair Bolsonaro, que já estava lá, mas é um dos que, junto com Marco Feliciano (PSC-SP) e Eduardo Cunha, são figuras caras desse fundamentalismo religioso e do pensamento conservador.
A gente teria que ter tensionado mais, o governo foi um pouco condescendente, no amplo espectro de governo que foi feito, foi muito condescendente com determinadas perspectivas que depois acabaram se apoderando, tendo cada vez mais espaços, e acabaram virando a mesa contra o próprio governo naquele momento com o golpe de 2016.