PERSEGUIÇÃO E LGBTFOBIA

A guerra das pessoas trans na Ucrânia: a luta pela sobrevivência e contra a transfobia

Cidadãos LGBT relatam o medo de deixar a Ucrânia e migrar para a Polônia ou Hungria, duas nações com governos declaradamente LGBTfóbicos

Prédio no centro de Kiev iluminado com as cores do arco-íris.Créditos: Foto: NASH-MIR
Escrito en LGBTQIAP+ el

Uma reportagem da CBS traz uma outra dimensão da guerra na Ucrânia que até agora foi simplesmente ignorada pela imprensa como um todo: trata-se das pessoas LGBT que vivem no país em conflito e que não querem migrar para a Polônia ou Hungria, pois, são duas nações governadas por regimes declaradamente LGBTfóbicos. 

Mas, para além das pessoas lésbicas, gays e bissexuais, a reportagem da CBS revela como está a vida das pessoas trans na Ucrânia a partir da história de Zi Faámelu. 

Uma das entrevistadas se chama Zi Faámelu, que nasceu e foi criada na Crimeia, região que foi anexada à Rússia em 2014. Hoje, com 31 anos, ela vive em Kiev, capital da Ucrânia. Ela está ficando sem comida e não são de casa há dias, desde a capital ucraniana foi sitiada. 

Além do temor das bombas e tiros, Faámelu teme vivenciar a transfobia que pode ser ainda pior com a tensão atual. Além disso, ela não deseja migrar, pois, os países vizinhos são profundamente transfóbicos. 

"Às vezes pensamos que é tudo um sonho, que estamos presos dentro de algum tipo de videogame. Porque você vive em uma sociedade quieta, e então ouve bombardeios e acorda com o som dos bombardeios. Algumas horas atrás, ouvi bombardeios e minhas janelas estavam tremendo... Estou literalmente com medo pela minha vida", disse Faámelu à CBS. 

Os amigos de Faámelu já deixaram a cidade e ela tem de manter as luzes apagadas por motivos de segurança. Faámelu vive sozinha em um apartamento perto de um prédio que foi atingido por um míssil. 

Além de temer pela violência nas ruas, Faámelu sabe que na fronteira, por ser transexual, também enfrentará problemas. "Não há como as pessoas da fronteira ucraniana me deixarem passar. Não tem jeito", lamenta. 

Caso consiga chegar à fronteira de algum país vizinho, Faámelu também não tem certeza se a aceitarão, pois, a identificação de seu passaporte não corresponde ao seu gênero. Apesar de algum avanço para a comunidade LGBT na Ucrânia, ela explica que para as pessoas trans "é tudo mais complicado". 

"Este não é um lugar muito amigável às pessoas LGBT. A vida das pessoas trans é muito sombria aqui. Se você tem um gênero masculino em seu passaporte, eles não vão deixar você ir para o exterior. Eles não vão deixar você passar", diz Faámelu. 

Legislação trans na Ucrânia 

De acordo com a Human Rihts Watch, o governo da Ucrânia exigiu que as pessoas trans fossem submetidas a um extenso exame psiquiátrico para que pudessem fazer a cirurgia de redesignação e obter os documentos de acordo com os seus respectivos gêneros. 

Em 2017 o governo da Ucrânia apresentou uma nova legislação com o objetivo de diminuir o processo, mas não há relatos de que as novas regras tenham sido aplicadas e, de acordo com Human Rights Watch, as pessoas trans continuaram a ser submetidas a exames psiquiátricos. 

Relatório apresentado em 2021 pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais (ILGA) afirma que o novo protocolo de saúde para pessoas trans foi paralisado e que a comunidade LGBT da Ucrânia enfrenta ataques e intimidações de grupos da extrema direita. 

Uma lista organizada pela ILGA com 49 países europeus, a organização classificou a Ucrânia como o 39º, ou seja, um lugar muito perigoso para as pessoas LGBT. 

"Não quero passar por isso. Isso é humilhante para o mundo. Decidi manter meu passaporte, manter o masculino no meu passaporte, e agora não posso deixar este país. É uma guerra dentro de uma guerra, realmente", lamenta Faámelu.

LGBTfobia presente na mídia e nos partidos políticos 

Outro relatório produzido pela NASH MIR, também dá conta de que, apesar do governo da Ucrânia ter apresentado algumas propostas pró-LGBT, elas não saem do papel, pois o presidente Zelensky cede, constantemente, ao lobby dos setores religiosos e da extrema direita. 

Além da homofobia social, o relatório revela o silêncio da imprensa ucraniana em torno de casos de violência contra as pessoas LGBT. Os grupos extremistas que atacam a comunidade LGBT são conhecidos de todos, mas nem uma única linha é dita sobre. 

Por fim, o estudo aponta para um paradoxo em torno partido governista, Servo do Povo, que não toma medidas contra os parlamentares que realizam declarações homofóbicas. O mesmo se dá com partido Plataforma de Oposição (OPFL), que possui em seus quadros parlamentares e militantes extremamente LGBTfóbicos. 

Como se vê, a comunidade LGBT da Ucrânia vive uma guerra dentro de outra, como salientou Faámelu: não pode se exilar na Polônia ou Hungria e atualmente corre risco de vida se sair de casa, pois, as ruas estão tomadas pelas milícias neonazistas da Ucrânia.