Assassinatos de pessoas trans cresceram 70% durante a pandemia

O Supremo Tribunal Federal (STF) tipificou LGBTIfobia como um crime, mas como ocorre com o racismo e o feminicídio, a lei não é suficiente para conter a intolerância

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Durante a pandemia, sobretudo com o recrudescimento das regras de isolamento social, muita gente acreditou que menos pessoas nas ruas, bares, trabalho, boates, churrascos, praias e shoppings, significaria uma drástica redução no quadro de violência no Brasil.

Os números, porém, mostram outro cenário. Trancadas em casa com seus parceiros abusadores, a pandemia tem sido um pandemônio para milhares de mulheres. Antes, os registros de ocorrências sobre a violência contra as mulheres mostravam que as agressões eram mais comuns no final da tarde e à noite, ou nos finais de semana. Agora, com todo mundo em casa, não há mais hora pra ocorrer, porque o grande inimigo da mulher está dentro de casa, na figura do pai, do padrasto, do irmão, do tio etc. Segundo o Fórum Brasileiro de segurança Pública (FBSP), os casos de feminicídio cresceram 22,2%, entre março e abril, em 12 estados; nota-se que o estudo abrange apenas o início da pandemia.

Feminicídio é caso de morte, mas as agressões físicas e psicológicas também se agigantam. De acordo com a Lei Maria da penha, a violência doméstica, ou familiar, é "qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial".

Só em São Paulo, de acordo com o Centro de Referência e Apoio á Vítima (Cravi), o número de atendimentos a vítimas de violência cresceu 70% em relação ao ano passado.

Os abusos contra as crianças também ficaram mais evidentes. Muitos pais agressivos e violentos agrediam seus filhos nos finais de semana, agora, estressados com a quantidade de tarefas que uma criança demanda diariamente, tarefas essas que eram delegadas à escola, à igreja, aos cursos etc, usam como escusa a pandemia para tratar os rebentos com violência.

A polícia tampouco passou a matar menos. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) registrou uma alta de 53% nos casos de abuso envolvendo policiais civis e militares para o mês de abril, em comparação ao período em 2019. A maioria das vítimas é formada por jovens pobres, pardos e pretos.

Pessoas trans

A violência contra pessoas trans explodiu. Houve um aumento de 70% dos casos de violência contra mulheres trans e travestis em comparação com o ano passado: foram 129 assassinatos até o dia 31 de agosto deste ano. Os dados são da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

No Ceará, onde aconteceu, em 2017, o caso bárbaro e cruel do assassinato da travesti Dandara dos Santos (42) - crime que chocou o mundo -, ocorreu uma onda de crimes contra pessoas trans este ano. Entre 12 de julho e 10 de agosto, quatro mulheres trans e travestis foram assassinadas em Fortaleza, de acordo com Rede de Observatórios da Segurança do Ceará. No dia 8 de agosto, uma travesti de 15 anos foi morta a tiros na Grande Lisboa. Essa violência de gênero que despreza e depreda os corpos femininos precisa ser refreada. É um tipo de violência de gênero que se mostra como uma patologia social e um quadro grave de violação de direitos e de negligência das autoridades públicas, uma vez que aí também está a restrição do direito à liberdade e de ir e vir.    

Além da violência física, das agressões no meio da rua, à vista de todos, mulheres trans e travestis ainda são vítimas de assédios virtuais, violência psicológica, negação de direitos, recusa de acesso ao trabalho formal, entre outras.

O Supremo Tribunal Federal (STF) tipificou LGBTIfobia como um crime, mas como ocorre com o racismo e o feminicídio, a lei não é suficiente para conter a brutalidade certas pessoas.

É claro que é urgente punir os agressores, mas é recomendável que se evite a agressão. Com a pandemia, muitas travestis, bem como as prostitutas, continuam nas ruas, expondo-se ao risco da contaminação pelo coronavírus, porque estão excluídas das medidas emergenciais de auxílios. Essa exclusão, esse descaso, essa marginalização das pessoas trans é um incentivo aos seus agressores, pois passasse-se a impressão de que são cidadãs de segundas classe, não-pessoas, desamparadas pelo estado, desprotegidas pelas forças de segurança, alvos fáceis, frágeis e que não despertam a comoção de ninguém.

Ainda segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), "a maioria das travestis e transexuais não conseguiu acesso às políticas emergenciais do estado, devido a precarização histórica de suas vidas e não possuem outra opção a não ser continuar o trabalho nas ruas, se expondo ao vírus e consequentemente a violência transfóbica".

Espanca-se pessoas trans em estações de metrô, em praças, em bares, nas ruas. Não é algo que se faça às escondidas, não sempre, porque acredita-se que elas não têm ninguém para protegê-las. No entanto, elas têm o mesmo direito à proteção do estado que qualquer outro cidadão ou cidadã, a Constituição não as exclui.

Os dados apresentados pela ANTRA mostram que "todas as 129 pessoas trans assassinadas em 2020 são travestis e/ou mulheres transexuais, mantendo a tendência já apontada nos Boletins anteriores, assim como a tendência de serem maioria negras (pretas/pardas)".

A associação registrou, no primeiro bimestre (jan/fev) deste ano, 38 casos de assassinatos, o que representa um aumento de 100% em relação aos dois meses anteriores (nov/dez - 2019). No segundo bimestre (mar/abr), em plena pandemia, o número de casos aumentou 68%, indo de 38 para 64 registros.

A ANTRA acredita que os números podem ser ainda maiores. "Os dados não refletem exatamente a realidade da violência transfóbica em nosso país, uma vez que nossa metodologia de trabalho possui limitações de capturar apenas aquilo que de alguma maneira se torna visível. É provável que os números reais sejam bem superiores", diz a associação.