A “cura gay” e a estratégia retórica conservadora

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Em artigo, professor explica como a direita moralista que cria conceitos como "cura gay" está ganhando cada vez mais espaço nas ruas, nas redes sociais e no parlamento Por Raphael Silva Fagundes* A definição aristotélica de retórica consiste nas estratégias usadas pelo retor para buscar provas capazes de nos levar a persuasão. Para isso, é preciso que o orador utilize, em seus argumentos, valores e saberes compartilhados socialmente de modo que o ouvinte, isto é, quem se deseja convencer, possa se identificar no discurso e, em seguida, reconhecê-lo como verdadeiro. Essa estratégia foi usada pela direita evangélica e conservadora para a aprovação da liminar da “cura gay”. Para Foucault, o saber é o que define o que deve ser dito, e, sem dúvida, ele se altera no tempo e no espaço de acordo com a epistêmè, isto é, o intervalo que existe entre as palavras e as coisas, o que age como nexo entre o signo e o que ele indica, enfim, o que nos faz dar sentido ao mundo que vemos¹. Hoje, é muito comum que um discurso que pretenda dar a impressão de neutralidade fundamente-se em dois argumentos básicos. O primeiro é o jurídico, que se baseia no clichê de que a “justiça é cega”, julgando sem tomar um partido. O segundo é o científico que, por sua vez, nos dá a ideia de que opera para o progresso da humanidade e expansão do conhecimento. O discurso religioso, enfraquecido desde o processo de dessacralização do mundo ocidental a partir do limiar do século XIX, não tem mais vigor para dobrar uma sociedade inteira a defender as causas que sustenta. Por isso, ele irá se valer de outros discursos, que recebe o prestígio de verdade em nossa época para cristalizar sua posição. A maior indignação dos contrários a liminar inspira-se na ideia de que a homossexualidade não é uma doença. O juiz Waldemar Cláudio de Carvalho diz que em nenhum momento “considerou ser a homossexualidade uma doença ou qualquer tipo de transtorno psíquico passível de tratamento”. E depois afirma que qualquer questionamento deve ser feito judicialmente². Como podemos observar, toda a discussão é feita entre duas questões: a científica (o fato da homossexualidade ser doença ou não) e a jurídica, por se tratar de uma resolução da justiça. Todos nós já sabemos que os responsáveis pela ação popular encabeçada pela psicóloga Rosangela Justino e outros, que argumenta que a antiga resolução impedia de desenvolver estudos, atendimentos e pesquisas científicas sobre homossexualidade, isto é, uma justificativa científica, são ligados a partidos de direita e a religiosos da bancada evangélica. A retórica científica, ou como prefere o sociólogo Pierre Bourdieu, a retórica da cientificidade, promove uma mitologia racionalizada por meio da conjunção entre o aparelho “científico” e a rede de significações míticas que lhe asseguram uma coerência de outra ordem³. O homossexualismo já é questionado popularmente por meio de crenças tradicionais fragmentadas na sociedade. O uso do discurso científico resgata estes questionamentos, dando força a mitos – principalmente os respaldados em princípios religiosos – que se apoiam, desta vez, em um ponto de vista assegurado pelo o que produz um efeito de verdade. É por isso que a decisão judicial poderia desencadear em mais preconceito. É também Bourdieu que nos mostra a retórica da neutralidade do campo jurídico. A língua jurídica, como chama, combina “elementos diretamente retirados da língua comum e elementos estranhos ao seu sistema, acusa todos os sinais de uma retórica da impersonalidade e da neutralidade”4. A linguagem jurídica produz um efeito de neutralização e de universalização por meio de construções passivas, frases impessoais, produzindo uma retórica própria na atestação oficial e do auto que permite o seu funcionamento. O sociólogo francês conclui que o poder simbólico no campo jurídico está no fato de juristas e juízes definirem a prática da lei, isto é, promovendo uma interpretação dominante. O Direito, como vai concluir o filósofo Louis Althusser, é tanto um aparelho repressivo do Estado quanto um aparelho ideológico do Estado, que, portanto, está à serviço de uma classe dominante que dele se apodera.5 Sendo assim, os grupos assenhoreados do Estado, aqueles que compram e seduzem políticos, juízes e desembargadores, vão definir as leis e suas práticas de modo a reproduzir as condições de produção que mantém o jogo político que os assegura no poder. A direita moralista que está ganhando cada vez mais espaço nas ruas, nas redes sociais e no parlamento, está variando as formas de reprodução de seu discurso, aproveitando-se dos elementos mais convincentes possíveis, conquistando, assim, paulatinamente os cérebros que habitam os espaços vazios deixados pelos ataques desmoralizantes à esquerda e à social-democracia. 1FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad: SalamaTannus Muchail. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 181. 2http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/09/1920675-juiz-que-autorizou-cura-gay-diz-que-decisao-teve-reacao-equivocada.shtml 3BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: EdUSP, 2008. p. 178. 4BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. p. 215. 5ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. São Paulo: Graal, 2003. p. 68. *Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.