OCEANOS

Precisamos falar dos oceanos

Em entrevista exclusiva, Paulo Horta, biólogo, pós-doutor em ecologia marinha e professor da UFSC, explica o tamanho do estrago que a humanidade já fez nos oceanos, quais as suas consequências e por que não falamos sobre isso

Precisamos falar dos oceanos.Em entrevista exclusiva, Paulo Horta, biólogo, pós-doutor em ecologia marinha e professor da UFSC, explica o tamanho do estrago que a humanidade já fez nos oceanos, quais as suas consequências e por que não falamos sobre issoCréditos: Reprodução/Foto Documentário 'A plastic ocean'
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Oceanos cobrem cerca de 70% da superfície terrestre e, além de interligarem todos os continentes e seus ecossistemas, são os responsáveis por manter o equilíbrio climático do planeta Terra. Para isso, precisam ter seus inúmeros ecossistemas oceânicos saudáveis e dispondo da ampla biodiversidade que existe debaixo d’água. No entanto, não é o que tem acontecido nos últimos tempos. Diversos episódios de derramamentos de petróleo, contaminação por plástico e fertilizantes, e o próprio desmatamento dos ecossistemas terrestres têm causado a perda de diversidade e o desequilíbrio dos sistemas oceânicos em níveis que podem representar até mesmo pontos de não retorno.

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Nesta entrevista, o biólogo Paulo Horta, especialista em ecologia marinha e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica a dimensão da ação oceânica sobre o clima planetário e a importância da sua preservação.

“O primeiro aspecto que tem que ser lembrado é que a vida como nós a conhecemos surge nos oceanos. E os oceanos com sua biodiversidade desempenharam um papel fundamental na história da evolução da vida. Se temos hoje o oxigênio que respiramos e o balanço climático que permitiu a partir de estabilidade o surgimento da espécie humana e o consequente estabelecimento de civilizações, esse processo todo só foi possível graças ao surgimento da vida e sua evolução seguindo os ritmos e ritos naturais. É muito importante que tenhamos a percepção de que se existe uma infraestrutura indispensável pra manutenção da humanidade e entender que essa infraestrutura pode ser representada pelos benefícios que o oceano nos provê”, afirma Horta.

Leia a entrevista na íntegra a seguir.

Paulo Horta é Doutor em ciências biológicas pela USP e pós-doutor em ecologia marinha pela Plymouth University (Reino Unido). Atualmente é professor da UFSC, onde coordena pesquisas relacionadas aos impactos ambientais decorrentes das mudanças climáticas e poluição dos oceanos

Levando em consideração que os oceanos são essenciais para a manutenção do equilíbrio climático, mas acabam negligenciados no debate público, o que comenta sobre a importância de se falar da preservação dos oceanos no jornalismo, nas artes, na academia e na cultura? Como você vê, por exemplo, episódios até agora isolados, como o do último carnaval paulistano em que o samba-enredo vencedor tratou justamente desse tema?

A cultura é instrumento fundamental para a sensibilização da sociedade. À medida que a cultura começa a participar de determinadas pautas ou de determinados movimentos, essas pautas e esses movimentos acabam ganhando aliados indispensáveis, porque nós, seres humanos, somos verdadeiras redes sociais, e a perspectiva da nossa sociedade muitas vezes é compreendida na medida em que ela se faz presente na cultura. Então, se queremos efetivamente transformar a sociedade, precisamos entender que só vamos fazer isso de maneira estruturada se tivermos elementos culturais alinhados com as necessidades dasociedade. Serve para tudo, e também em relação ao meio ambiente. Dessa forma, é com muita alegria que a gente vê o setor da cultura, nesse caso uma escola de samba, se aperceber desse papel que é de fato fundamental.

Essa é uma perspectiva que a filosofia percebe há muito tempo e ela vem sendo manipulada há séculos e, muitas vezes, no pior sentido possível, como para favorecer ditaduras ou movimentos retrógrados da sociedade que fazem ou fizeram um processo de aculturamento das suas pautas e projetos.

Então, usar a cultura como um elemento progressivo, até porque a sociedade precisa de uma grande mudança no seu modo de ser para ganhar sobrevida em função das mudanças climáticas e da crise da biodiversidade, é elemento central para atingir essa mudança.

Pensando naquela famosa frase que diz que “sabemos mais sobre a superfície da lua do que sobre os sistemas oceânicos”, te pergunto: é verdade? Ou seja, o nosso conhecimento público sobre os sistemas oceânicos é tão débil?

Essa é uma frase emblemática. Talvez já tenhamos ido mais vezes à superfície da lua do que para o fundo do oceano, é verdade. Mas agora eu queria voltar e fazer um link com a resposta anterior, porque à medida que esses elementos da questão natural não fazem parte da nossa cultura, ou não estão presentes nos nossos carnavais, vemos que de alguma forma há vetores relacionados aos interesses capitalistas, atrelados aos meios de produção e consumo. E eles não deixam chegar essa

informação, afinal, se pararmos de explorar o meio ambiente de forma predatória, diversos interesses do grande capital estarão sendo automaticamente colocados de lado.

À medida que nós olhamos para o oceano e vemos que ainda não o conhecemos sob a perspectiva de uma ciência básica, vamos encontrar um contraponto interessante.

Digo isso porque se formos olhar para as bases de dados das grandes empresas que exploram petróleo no mundo, veremos muita informação sobre os oceanos, uma quantidade extraordinária de informação que não é deconhecimento público. A razão disso está no fato de que ainda vislumbramos os oceanos como mera fonte de recursos. E a natureza predatória da maneira sob a qual hoje nos organizamos acaba usando as informações que são coletadas como se fossem segredo industrial e não como um conhecimento necessário para a reprodução social humana. E dentro dessa lógica, se tenho o conhecimento sobre um recurso que eu vou precisar explorar um dia, não vou divulgar esse conhecimento.

Se as bases de dados que foram produzidas por todos os interesses relacionados à mineração fossem amplamente divulgadas, o cenário que nós teríamos sobre o conhecimento do fundo do oceano seria muito diferente. E, claro, tem também todas as dificuldades técnicas e os custos elevados pra se trabalhar com o fundo do oceano.

Qual é a importância dos sistemas oceânicos no equilíbrio planetário, já que cobrem mais de 70% da superfície da Terra, sobretudo no que se refere à produção de oxigênio, sequestro de carbono e equilíbrio planetário? De que maneira esses sistemas estão conectados com os sistemas terrestres como a Amazônia, a Mata Atlântica e assim por diante?

O primeiro aspecto que tem que ser lembrado é que a vida como nós a conhecemos surge nos oceanos. E os oceanos, com sua biodiversidade, desempenharam um papel fundamental na história da evolução da vida.

Se temos hoje o oxigênio que respiramos e o balanço climático que permitiu a partir de uma estabilidade o surgimento da espécie humana e o consequente estabelecimento de civilizações, esse processo todo só foi possível graças ao surgimento da vida e sua evolução seguindo os ritmos e ritos naturais. É muito importante que tenhamos a percepção de que existe uma infraestrutura indispensável pra manutenção da humanidade e entender que essa infraestrutura pode ser representada pelos benefícios que o oceano nos provê.

São os benefícios que você citou na pergunta: produção de oxigênio, sequestro do dióxido de carbono, produção de alimento, produção de beleza cênica, enfim, de uma infinidade de benefícios que dependem de um oceano saudável. E por que eu chamo de “um oceano”? Porque a ciência hoje compreende que, apesar dos diferentes embaiamentos, o planeta Terra tem um oceano só e ele guarda todas as interdependências e as vulnerabilidades de seus mares.

Quando nós lançamos um poluente no Brasil, esse poluente não vai se limitar ao Brasil, não vai se limitar ao Atlântico, é questão de tempo pra ele atravessar continentes, e inclusive vislumbrar a possibilidade de chegar em outros embaiamentos, como, por exemplo, transitar do Oceano Atlântico para o Pacífico. Vemos que essas conexões, o balanço de massa, o controle da temperatura do planeta, tudo depende de um oceano saudável.

Na medida que a gente acompanha a aceleração do aquecimento das calotas polares tanto no Ártico quanto na Antártida vemos que dependemos desses sistemas saudáveis funcionando como funcionaram nos últimos cem mil anos - desde que o homem surgiu como espécie, depende dessa estabilidade climática da qual o oceano tem papel fundamental.

De acordo com o estudo da PUC do Rio Grande do Sul, setores da chamada ‘economia dos oceanos’ respondem por cerca de 19% do PIB brasileiro. Qual o grau de dependência desses setores em relação à saúde oceânica e como desenvolver essas atividades sem que em troca degrademos as águas?

Infelizmente nós temos uma população que foi urbanizada no litoral. Temos 70% da população urbana do país vivendo nessas regiões litorâneas, o que representa um contingente que corresponde a 25% da população total concentrada em impressionantes 4% do nosso território nacional. É muita gente morando numa faixa muito estreita.

Essa densidade acaba sendo trágica porque aliada ao frágil planejamento espacial – por exemplo, aliada à carência no saneamento básico - vai deteriorando a saúde dos diferentes ecossistemas do nosso litoral. Estou falando desde os manguezais e marismas, até os sistemas mais profundos. Todos vão sofrendo com a poluição do ar, do solo e da água que acaba sendo carreada dos ambientes marinhos e costeiros para o oceano propriamente dito, o que logicamente afeta a saúde dos mesmos.

Quando nos vemos diante de momentos de crise climática, os setores que dependem da pesca, da criação de frutos do mar e do turismo se veem extremamente vulneráveis, porque estão diretamente ligados à saúde dos ambientes oceânicos, ou seja, das condições estáveis nesses ambientes. E à medida que temos um problema ambiental, seja resultado do aquecimento do planeta ou do aumento da disponibilidade do dióxido de carbono, em que todas essas fontes de estresse ambiental se relacionam, colhemos a inviabilização dos benefícios que o oceano nos provê.

Se falarmos em turismo, é só olhar para o que está acontecendo no Caribe, onde praias outrora paradisíacas estão tomadas por uma floração alaranjada e amarronzada de algas do tipo sargaço que estão se reproduzindo de monte devido à poluição e aumento da temperatura dos mares.

Isso é resultado da poluição do oceano na qual o Brasil tem papel central. Nós usamos fertilizantes demais aqui, estamos desmatando demais e minerando de maneira errada e demasiada. Ou seja, todos esses usos do nosso continente acabam produzindo alterações no balanço das cadeias alimentares, favorecendo, neste caso, espécies que podem produzir grandes prejuízos em águas longe das nossas.

É assustadora a dimensão que podem atingir as florações de algas no Caribe ou no Atlântico Central, que chegam a ter 8 mil quilômetros de extensão. É algo bíblico, sabe? Algo que de fato nos coloca num cenário de necessidade de discussão urgente e séria, numa perspectiva transnacional, de como devemos tratar os oceanos daqui pra frente.

Quais as principais causas da poluição oceânica?

Podemos dividir essas fontes de problemas em dois grandes tipos. Um dos tipos são aqueles de origem global, ou seja, acontecem em todo o planeta de maneira difusa, dos quais é difícil apontar um contribuinte principal. Por exemplo, o processo de aquecimento das águas. Temos ondas de calor, ou seja, variações climáticas. E essas variações climáticas são de natureza planetária e têm grande responsabilidade na perda de biodiversidade.

A partir daí vamos encontrar os derivados, como a acidificação do oceano. Ou seja, todo esse dióxido de carbono que está sendo emitido por diferentes países e é absorvido pelo oceano, dificultando a vida de muitas espécies, entre as quais aquelas que formam verdadeiras florestas submersas. São como prédios vivos que existem debaixo d’água. E tudo isso sofrendo muito por conta desses problemas de natureza global.

O segundo tipo de problemas é o local. Localmente, para nós, sobrepesa especialmente a pesca predatória. Com o arrasto de porta, como chamam a técnica, pegam de tudo quanto é tamanho e tipo de peixes e organismos que estão em reprodução. Há também a contaminação por plástico e microplástico que precisa ser considerada entre as principais fontes de contaminação que vêm para o nosso sistema continental. Outra causa é a mineração, que leva metais pesados e outros poluentes para os oceanos. Mas quando falamos na mineração, temos que lembrar que o petróleo também é minerado. E aí entram os hidrocarbonetos como uma outra fonte de poluição.

Em resumo, as causas da perda da diversidade dos oceanos são as mesmas da aceleração das mudanças climáticas. Se temos perda da biodiversidade do oceano, automaticamente temos a perda dos benefícios que o oceano nos provê. Entre esses benefícios está o controle do clima. Se nós perdemos o oceano e a vida nele contida, nós vamos perder um aliado importante no controle do clima.

O que tem sido discutido como possíveis políticas públicas para conter os pontos que você listou acima?

Infelizmente não demos sequência na Política Nacional para o Oceano que já está em discussão há muito tempo e deveria ter sido implementada agora que estamos vivendo a chamada Década do Oceano. Temos um plano nacional de implementação da década da ciência oceânica para o desenvolvimento sustentável, mas não sai do papel. Mesmo depois da divulgação dos últimos três relatórios do IPCC. Ao contrário, o Brasil só tem olhos para o petróleo.

No último dia 13 de abril, houve o leilão de cerca de mais de cinquenta blocos de exploração de petróleo. Muitos deles em ambiente marinho, ignorando todos os prejuízos que a exploração de petróleo pode causar por um impacto direto de contaminação. Basta lembrarmos que aconteceu o grande vazamento do ano passado, afetando quase todo o litoral do Nordeste. Tudo isso então reforça a necessidade de uma revisão da política energética brasileira, entre outras coisas, para uma transição que de fato coloque o petróleo como uma fonte importante de energia, mas do século passado, ou seja, que está de fato sendo substituída.

Vivemos a iminência de avançar a exploração de petróleo no Brasil em áreas que podem impactar importantes unidades de conservação, como a Reserva Biológica Marinha do Arvoredo, no Sul do Brasil, e também reservas que estão lá no Norte e Nordeste relacionadas, por exemplo, a áreas tropicais e recifagens. Tudo isso está sob ameaça.

Outro problema são as algas calcárias, que no começo da guerra da Rússia contra a Ucrânia foi cogitado serem usadas como fertilizantes aqui no Brasil. Essas algas formam no Brasil bancos que podem estar ocupando algo em torno de 230 mil quilômetros quadrados de extensão, uma área equivalente ao Reino Unido, e têm funções fundamentais pra manutenção do clima e do equilíbrio ecológico no nosso litoral.

Ao invés de avançarmos durante a chamada ‘década do oceano’ em alternativas que sejam efetivamente sustentáveis, estamos vendo avançar uma política ecocida sobre os ambientes que estão submersos, consolidando preocupações que as tendências das últimas três décadas já mostravam.

Se nós estamos tão preocupados com aperda de floresta amazônica ou de Mata Atlântica ou de Cerrado, que é muito divulgado no Brasil, devemos estar muito mais preocupados em relação ao desmatamento que efetivamente está acontecendo com as florestas que nós temos debaixo d’água. Em alguns ambientes, nós já perdemos 70% das florestas submersas. Carecemos de restauração porque já passamos do tipping point, ou ponto de não retorno.

De fato, o que se observa é uma substituição. Assim como a gente vê na Amazônia uma substituição da Amazônia por uma espécie de savana que tem uma capacidade muito menor de reter carbono, nos ambientes e florestas submersas ocorre a mesma coisa. A gente vê a perda daqueles ambientes que, de fato, imobilizam carbono em grandes quantidades para sistemas que têm capacidade limitada de absorver e de sequestrar esse gás estufa. Então é muito importante que as discussões relacionadas ao oceano, especialmente no Brasil, saiam do papel.

Precisamos permitir o desenvolvimento de alternativas de adaptação e de mitigação das mudanças climáticas, usando a vida no oceano como um importante aliado. Sem a vida no oceano vamos viver a barbárie no planeta Terra.