EMERGÊNCIA DO CLIMA

Não adianta mais reduzir a pegada de carbono para aliviar a crise climática, alertam cientistas

Artigo da revista Nature avisa que remoção de dióxido de carbono da atmosfera não é suficiente para evitar as catastróficas consequências das mudanças do clima

Créditos: Reprodução IPCC
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Cientistas climáticos avisam que reduzir a pegada de carbono não adianta mais para aliviar a emergência climática, pois as temperaturas globais estão prestes a ultrapassar o limite crítico de 1,5ºC.

Fenômenos como o catastrófico furação Milton, que causou grandes estragos ao passar pela Flórida nesta semana e resultou na morte de, pelo menos, 10 pessoas. Além das vítimas, o furacão, que chegou à categoria 5, deixou um rastro de destruição, com mais de três milhões de residências sem energia elétrica, graves inundações, ventos de até 285 km/h, e a formação de tornados.

A força do furacão gerou danos significativos em infraestrutura e propriedades, enquanto as autoridades locais e internacionais seguem lidando com os impactos e os esforços de recuperação.

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Momento crítico para a crise climática

O alerta foi feito em um artigo publicado na revista Nature desta quarta-feira (9) e informa que a remoção de dióxido de carbono da atmosfera não será suficiente para evitar as graves consequências da crise climática.

O texto, intitulado "Overconfidence in climate overshoot" ("Excesso de confiança na ultrapassagem climática", em tradução para o português), aborda uma confiança excessiva em estratégias que permitem que a temperatura global ultrapasse temporariamente os limites de aquecimento estabelecidos (como o limite de 1,5°C do Acordo de Paris), com a expectativa de reduzir as temperaturas posteriormente.

O artigo, assinado por 30 especialistas em clima que atuam no IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), afirma que a remoção de dióxido de carbono até pode contribuir para desacelerar o aquecimento ao reduzir o gás de efeito estufa já acumulado na atmosfera e até mesmo as temperaturas, especialmente se o limite de 1,5°C for ultrapassado.

Embora a remoção de dióxido de carbono possa ser eficaz na redução de gases de efeito estufa, os cientistas avisam que ela não é capaz de conter outros impactos das mudanças climáticas, como o aumento do nível do mar e as alterações na circulação oceânica.

"Os esforços globais de redução de emissões continuam insuficientes para atingir a meta de temperatura do Acordo de Paris. Isso torna a exploração sistemática dos chamados cenários de 'overshoot', nos quais o limite de aquecimento global é temporariamente excedido antes de as temperaturas serem reduzidas para níveis mais seguros, uma prioridade para a ciência e para as políticas públicas", diz a introdução do artigo.

O perigo do 'overshoot'

O estudo mostra que as mudanças climáticas globais e regionais e os riscos associados após um overshoot são diferentes de um mundo que o evita. Ficou constado que a redução das temperaturas globais pode limitar os riscos climáticos de longo prazo em comparação com uma mera estabilização do aquecimento global, incluindo a elevação do nível do mar e as mudanças na criosfera.

Criosfera é a parte da superfície da Terra onde a água se encontra no estado sólido, ou seja, em forma de gelo ou neve, o que inclui as calotas polares, geleiras, mantos de gelo, áreas com neve sazonal, lagoas e rios congelados, e o permafrost (solo permanentemente congelado). Desempenha um papel crucial no sistema climático da Terra, refletindo a luz solar (o que ajuda a regular a temperatura do planeta) e armazenando grandes quantidades de água doce.

As mudanças na criosfera, como o derretimento de geleiras e calotas polares devido ao aquecimento global, podem ter impactos significativos no nível do mar e no clima global, além de afetar ecossistemas e populações que dependem de fontes de água provenientes do derretimento sazonal de neve e gelo.

A reversão do aquecimento global, prevista para ocorrer em décadas futuras, pode ter pouca relevância para os atuais esforços de adaptação, alertam especialistas. Isso porque os efeitos de feedback do sistema terrestre podem intensificar o aquecimento no curto prazo e prolongá-lo no longo prazo.

Para mitigar os riscos de alta magnitude, é necessária uma capacidade preventiva de remoção de dióxido de carbono em larga escala o que envolve centenas de gigatoneladas. No entanto, desafios técnicos, econômicos e de sustentabilidade podem dificultar a implementação dessa estratégia em uma escala tão vasta.

Por isso, não há garantias de que a redução da temperatura após o overshoot seja alcançável nos prazos desejados. A única solução eficaz para reduzir os riscos climáticos permanece nas rápidas reduções de emissões no curto prazo.

Overshoot, no contexto das mudanças climáticas, refere-se a uma situação em que os níveis de aquecimento global ultrapassam temporariamente os limites estabelecidos como seguros — como o limite de 1,5°C ou 2°C de aumento em relação aos níveis pré-industriais.

Esse conceito sugere que, após essa "ultrapassagem" temporária, as temperaturas globais seriam posteriormente reduzidas, geralmente por meio de estratégias como a remoção de dióxido de carbono da atmosfera (CDR) ou outras intervenções.

No entanto, o overshoot é visto com preocupação porque os impactos dessa ultrapassagem — como derretimento de geleiras, elevação do nível do mar, e mudanças irreversíveis nos ecossistemas — podem ser difíceis ou impossíveis de reverter, mesmo que as temperaturas sejam eventualmente estabilizadas ou reduzidas.

Por que o limite de 1,5°C

O limite de 1,5°C foi estabelecido como um ponto crítico nas negociações internacionais sobre o clima porque os cientistas acreditam que superar essa marca pode desencadear efeitos irreversíveis e perigosos no sistema climático global.

Segundo o artigo da Nature, caso a temperatura global ultrapasse temporariamente essa barreira, haverá consequências significativas e duradouras, como o aumento contínuo do nível do mar, perda de biodiversidade, e danos a ecossistemas importantes, além de impactos socioeconômicos mais severos para as populações mais vulneráveis.

Essa meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais é fundamental para evitar uma série de "elementos de inflexão" no sistema terrestre, como o derretimento irreversível das calotas polares e o aquecimento descontrolado de regiões como o Ártico.

Uma vez ultrapassado esse limite, será muito difícil reverter esses impactos com soluções como a remoção de dióxido de carbono, que pode não ser suficiente para evitar os danos a longo prazo causados pela inércia do sistema climático e pelo acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera.

Mercado de carbono

O artigo dos cientistas do IPCC também explora a importância do mercado de carbono como uma ferramenta essencial para mitigar as mudanças climáticas e enfatiza a necessidade de implementar uma remoção contínua de dióxido de carbono para evitar o aquecimento acima das metas estabelecidas pelo Acordo de Paris.

O mercado de carbono é visto como um mecanismo crítico para financiar e incentivar projetos de captura e armazenamento de carbono, o que permitiria estabilizar ou até reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

Os pesquisadores destacam que, embora a captura de carbono seja uma estratégia promissora, existem desafios substanciais associados à escalabilidade e sustentabilidade dessas soluções, especialmente em relação às incertezas sobre a capacidade dos sistemas terrestres e marinhos de absorver o carbono a longo prazo.

Além disso, o mercado de carbono precisa evoluir para incorporar mecanismos mais rigorosos de verificação e contabilização de emissões e compensações.

A análise também ressalta que os atuais esforços globais de redução de emissões são insuficientes, o que exige uma ação rápida para reduzir os riscos climáticos. Nesse contexto, o mercado de carbono pode ser uma ferramenta importante, mas precisa ser acompanhado por políticas robustas e comprometimento real para que os objetivos de mitigação climática sejam atingidos.

A viabilidade dessas estratégias está fortemente ligada à cooperação internacional e à criação de mercados transparentes e eficazes, onde o carbono é corretamente precificado e removido da atmosfera em volumes suficientes para estabilizar as temperaturas globais dentro das metas acordadas.

O que é o IPCC

O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) é uma organização internacional criada em 1988 pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da Organização Meteorológica Mundial (OMM) e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

O IPCC desempenha um papel vital na conscientização global sobre as mudanças climáticas e é amplamente respeitado por seu rigor científico. Seus relatórios têm sido fundamentais para acordos internacionais, como o Protocolo de Kyoto (1997) e o Acordo de Paris (2015).

Em 2007, o IPCC foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz, compartilhado com o ex-vice-presidente dos EUA, Al Gore, por seus esforços em aumentar a conscientização sobre a crise climática.

A função principal do IPCC é fornecer avaliações científicas sobre as mudanças climáticas, seus impactos, riscos futuros e opções para adaptação e mitigação. Confira as atribuições do IPCC:

  • Compila e avalia os conhecimentos científicos, técnicos e socioeconômicos disponíveis sobre as mudanças climáticas. Ele não realiza pesquisas próprias, mas reúne especialistas do mundo todo para revisar e sintetizar estudos existentes.
     
  • Fornece uma base científica sólida para que governos e formuladores de políticas tomem decisões informadas sobre como lidar com as mudanças climáticas. Embora o painel ofereça informações técnicas e projeções, ele não faz recomendações diretas de políticas.
     
  • Elabora extensos relatórios de avaliação, publicados em intervalos de alguns anos. Esses relatórios são referência global para cientistas, formuladores de políticas e ativistas. O primeiro relatório foi publicado em 1990, e o mais recente (sexto) foi divulgado em 2021.

O IPCC é dividido em três grupos de trabalho:

  • Grupo de Trabalho I: Foca nos aspectos científicos das mudanças climáticas, incluindo o aquecimento global e suas causas.
     
  • Grupo de Trabalho II: Avalia os impactos das mudanças climáticas, a vulnerabilidade dos sistemas naturais e humanos e as opções de adaptação.
     
  • Grupo de Trabalho III: Analisa as opções de mitigação das mudanças climáticas, ou seja, formas de reduzir ou impedir as emissões de gases de efeito estufa.

Histórico de alertas para a crise climática

Os cientistas têm alertado para a crise climática por mais de um século, com os alertas se tornando cada vez mais urgentes desde os anos 1970. O reconhecimento oficial global do problema foi consolidado com a criação do IPCC em 1988 e o Acordo de Paris em 2015.

A ciência climática continua a evoluir, mas a mensagem central permanece: ações rápidas e profundas são necessárias para mitigar os impactos das mudanças climáticas.

1896 - Primeiras pesquisas sobre o efeito estufa

O cientista sueco Svante Arrhenius foi um dos primeiros a propor, em 1896, que o aumento das concentrações de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera poderia aquecer a Terra, no que hoje conhecemos como efeito estufa.

1950s - Primeiros estudos mais modernos

Na década de 1950, Charles David Keeling começou a medir com precisão os níveis de CO2 na atmosfera, estabelecendo o famoso gráfico "Curva de Keeling", que demonstrou claramente que os níveis de CO2 estavam aumentando de forma constante.

1970s - Aumento da conscientização

A partir dos anos 1970, os cientistas começaram a conectar o aumento das emissões de CO2 com mudanças no clima global. Em 1979, foi realizada a Primeira Conferência Mundial sobre o Clima em Genebra, onde cientistas alertaram sobre as potenciais consequências das emissões de gases de efeito estufa.

1980s - Emergência da ciência climática moderna

Nos anos 1980, a preocupação com o aquecimento global ganhou destaque. Em 1988, o IPCC foi estabelecido pela ONU para avaliar a ciência do clima e fornecer relatórios periódicos sobre o estado das mudanças climáticas.

1990s - Primeiros relatórios e acordos internacionais

O primeiro relatório do IPCC foi publicado em 1990, confirmando que as emissões de gases de efeito estufa poderiam ter um impacto significativo no clima global. O relatório contribuiu para a Conferência do Rio de 1992 e o estabelecimento da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), que abriu caminho para o Protocolo de Kyoto em 1997.

2000s em diante - Acordos e crescente urgência

Com a intensificação dos efeitos visíveis das mudanças climáticas, como aumento de temperaturas, derretimento de geleiras e eventos climáticos extremos, o alerta sobre a crise climática tornou-se mais urgente. O Acordo de Paris, assinado em 2015, representou um marco global, com a maioria dos países se comprometendo a limitar o aquecimento global a bem abaixo de 2°C, com esforços para limitar a 1,5°C.

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