As etiquetas das roupas vendidas nas vitrines de Nova York, Paris ou Londres contam uma história que reforça o quanto a moda é a filha predileta do capitalismo e ajuda a explicar as dinâmicas desse sistema. “Made in Bangladesh”, “Made in Honduras”, “Made in Vietnam” — cada uma delas ajuda a tecer o mapa da desigualdade global, onde o trabalho é feito no Sul e o lucro vai para o Norte.
O economista Paulo Gala explica, em seu artigo “Roupas e tecidos: como os países ricos terceirizaram o trabalho e ficaram com o lucro”, que as nações desenvolvidas continuam a “produzir”, mas não com as próprias mãos.
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O design, o marketing e o controle das marcas permanecem nos países ricos, enquanto a fabricação — costura, tingimento, montagem — é terceirizada para regiões mais pobres, onde o trabalho é barato e as leis trabalhistas são frágeis.
Um colonialismo econômico moderno
Essa divisão global do trabalho, segundo Gala, é uma forma moderna de colonialismo econômico. Os países ricos decidem o que será produzido e capturam a maior parte do valor, enquanto os países periféricos executam as tarefas manuais e absorvem os custos sociais e ambientais.
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A lógica é simples: produzir onde o custo é baixo e vender onde o consumo é alto. Essa estratégia fez com que indústrias inteiras — como a têxtil, a de calçados e a de eletrônicos básicos — migrassem para o Sudeste Asiático e a América Central, deixando os países ricos com a parte mais rentável da cadeia.
“Os países pobres se industrializaram apenas nas pontas menos nobres — montagem, costura e manufatura manual”, observa Gala.
O lucro invisível nas etiquetas
Mesmo quando países como Vietnã ou Camboja exportam bilhões de dólares em roupas, sua fatia no valor final é mínima. De uma camiseta vendida a US$ 50 em Nova York, por exemplo, menos de US$ 2 podem ficar com o país que a produziu. O restante vai para as empresas que controlam o design, o marketing, a logística e as marcas.
Assim, o “Made in Cambodia” impresso nas etiquetas é apenas uma parte do retrato: por trás dele está um sistema que externaliza o esforço produtivo e internaliza o lucro. Os países ricos se “desindustrializaram” apenas na aparência — na prática, continuam comandando as cadeias produtivas por meio da tecnologia, das finanças e do poder de marca.
O círculo vicioso do baixo valor agregado
Ao transferirem as fábricas, as nações desenvolvidas concentraram-se em setores de alta complexidade tecnológica — biotecnologia, software, semicondutores —, enquanto os países pobres ficaram presos nas etapas de baixo valor agregado, onde a competição se dá pelo custo do trabalho, e não pelo conhecimento.
Esse modelo perpetua um círculo vicioso de dependência: os países do Sul Global geram emprego, mas não riqueza; produzem mercadorias, mas não controlam o capital intelectual e financeiro. O resultado é uma globalização que reproduz as hierarquias coloniais sob novas formas.
A etiqueta costurada em uma roupa, portanto, é também um espelho da economia mundial. Cada “Made in…” revela as fronteiras invisíveis que ainda separam quem cria do quem produz.
O que a China ensina sobre romper o ciclo
A análise de Paulo Gala encontra um contraponto poderoso na experiência chinesa. O país que, nas últimas décadas do século 20, se tornou o maior símbolo do trabalho barato globalizado, foi também o primeiro a romper a lógica da dependência descrita pelo economista.
A China seguiu um caminho oposto ao da maioria das economias periféricas: usou a manufatura de baixo custo como ponto de partida, e não como destino. Por meio dos Planos Quinquenais, transformou a costura para o mundo em uma estratégia de aprendizado industrial, tecnológico e cultural.
Ao invés de permanecer nas etapas de baixo valor agregado — como montagem e acabamento — o país internalizou conhecimento, inovação e marca. Em poucas décadas, passou de exportadora de roupas para exportadora de tendências, com Shenzhen e Xangai convertendo-se em polos criativos e tecnológicos.
A virada chinesa mostra que o que Gala chama de “colonialismo econômico moderno” não é uma sentença definitiva, mas um estágio que pode ser superado quando há planejamento estatal, investimento em educação técnica, digitalização e fortalecimento cultural.
Guardadas as diferenças históricas e políticas, a experiência chinesa oferece pistas concretas ao Sul Global: só é possível sair da periferia produtiva quando um país decide subir na cadeia de valor — produzindo não apenas mercadorias, mas também tecnologia, design e identidade.
Ao fazer isso, a China não apenas reverteu o mapa do lucro na moda, mas também costurou seu próprio destino, convertendo o trabalho em soberania.
Como a China rompeu o modelo de dependência na moda
A trajetória da China na indústria da moda é um retrato do próprio processo de modernização do país — uma caminhada planejada, guiada por metas de longo prazo e amparada pelos Planos Quinquenais, que transformaram um Estado rural e empobrecido em uma potência tecnológica e criativa.
Na década de 1970, a moda chinesa refletia escassez e igualdade: roupas azuis e cinzas simbolizavam a reconstrução socialista após décadas de guerra e isolamento. Mas essa aparente simplicidade escondia um projeto político: a construção de uma economia sólida e autossuficiente.
Com a Reforma e Abertura de 1978, conduzida por Deng Xiaoping, a China adotou uma economia de mercado com planejamento estatal. Os Planos Quinquenais — principal instrumento de direção econômica — passaram a estabelecer metas de industrialização, tecnologia e modernização das cadeias produtivas. A indústria têxtil foi uma das primeiras a se beneficiar: ela fornecia empregos, gerava divisas e abria o país ao comércio global.
Nos anos 1990, a China consolidou-se como “chão de fábrica do mundo”. Ao ingressar na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, o país tornou-se o epicentro das cadeias globais de moda: fabricava roupas para quase todas as grandes marcas ocidentais e dominava mais de 30% da produção mundial de vestuário.
Do fast fashion à soberania tecnológica
A diferença chinesa foi transformar a dependência industrial em base para autonomia tecnológica. Em vez de permanecer na etapa de baixo valor agregado — como costura e montagem — o país investiu em inovação, logística, pesquisa de materiais e digitalização.
A partir dos Planos Quinquenais de 2010 e 2015, a moda foi integrada à estratégia de “subida na cadeia de valor”: o governo incentivou design, branding, automação e sustentabilidade. Cidades como Shenzhen, Guangzhou e Xangai se tornaram polos de tecnologia têxtil e design digital, atraindo marcas e formando talentos locais.
O resultado foi a criação de um ecossistema híbrido, que combina produção de massa e moda de ponta. A China não abandonou o fast fashion — ela o reinventou. Plataformas como Shein, Temu e AliExpress incorporaram big data e inteligência artificial para prever tendências e personalizar consumo, consolidando o país como líder mundial da moda ultrarrápida.
Da fábrica ao protagonismo criativo
O passo seguinte foi simbólico: conquistar o reconhecimento estético e cultural. Na Paris Fashion Week de 2025, marcas chinesas mostraram que o país também dita tendências. Pouco depois, na Shanghai Fashion Week, a colaboração entre a Adidas e criadores chineses confirmou a virada: o eixo criativo da moda global começa a se deslocar do Ocidente para o Oriente.
Esses eventos não são apenas desfiles, mas expressões de soberania cultural. A moda passou a integrar a política de soft power da China, que busca projetar imagem, identidade e influência global — resultado direto do planejamento de longo prazo dos Planos Quinquenais.
Moda, planejamento e identidade nacional
Enquanto o Ocidente se apoia no consumo individual e na lógica de mercado, a China molda sua indústria da moda como parte de um projeto coletivo de prosperidade comum. O Estado estimula inovação, mas regula o excesso e incentiva a moda com características sustentáveis, tecnológica e digital.
O país também tem investido em “cidades criativas” e em formação de talentos, conectando universidades, startups e indústrias. Assim, rompeu o modelo descrito por economistas como Paulo Gala, em que o Sul apenas produz enquanto o Norte lucra.
A moda chinesa mostra que planejamento e estratégia podem reverter hierarquias globais. Ao internalizar o conhecimento e o valor simbólico, a China passou de mera executora a criadora — não só do que o mundo veste, mas do que o mundo deseja.
A China saiu do ciclo da dependência ao aplicar, década após década, uma combinação rara de planejamento estatal, inovação tecnológica e construção cultural. A moda, antes reflexo da escassez, tornou-se vitrine da abundância — e prova de que um país pode costurar seu próprio destino.