DIREITO AO CORPO

Aborto no Brasil: feministas explicam por que essa discussão não avança

Descriminalização do aborto na Colômbia reacendeu o debate no país, que permite a prática apenas em casos específicos como gravidez fruto de estupro e feto anencéfalo

Escrito en MULHER el

A descriminalização do aborto na Colômbia na última segunda-feira (21) reacendeu o debate no Brasil. De um lado, o movimento de mulheres e feministas que defendem a descriminalização no Brasil e que o assunto seja discutido no âmbito da saúde pública, e do outro os grupos religiosos que são contrários e consideram tal prática um "atentado contra a vida". 

A legislação brasileira permite a realização do aborto em algumas circunstâncias bem específicas: quando não há outra forma de salvar a vida da gestante, gestação decorrente de estupro e anencefalia, quando o bebê não possui cérebro. Fora disso, o aborto é considerado crime no país e está enquadrado nos artigos 124 e 126 do código penal brasileiro, que pune tanto a mulher com quem a ajuda a praticar o aborto. 

Estudo publicado no Cadernos de Saúde, da Escola Nacional da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), revela que o aborto é quarta causa de óbito maternal no Brasil e que atinge, principalmente, mulheres negras e indígenas, com baixa escolaridade e com idade entre 14 e 40 anos. 

Os dados do estudo publicado os Cadernos de Saúde da Fiocruz reforçam as teses favoráveis ao aborto de que, a prática realizada na clandestinidade tem classe, raça e cor, e que também estamos diante de um problema de saúde pública que não deveria ser pautado a partir de teses religiosas sobre concepção e vida. 

Questão de saúde pública 

Mas, se o aborto é quarta causa de morte maternal no Brasil, por que essa discussão não avança no país? Para a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) A ascensão da extrema direita é o principal motivo pelo qual o debate não avança e com perigos de retrocesso. 

“Acredito que com a emergência da extrema-direita no cenário político que se expressou na Câmara dos Deputados, a tentativa deles permanentemente é inclusive retroceder nos casos que a legislação já garante o direito ao aborto: anencefalia, casos de estupro e risco para as mulheres”, diz Melchionna. 

Além de encontrar resistência com os setores religiosos, a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) destaca o fato de que no campo progressista o debate sobre o aborto também encontra dificuldades para avançar. 

“O debate não avança no Brasil porque mesmo nos setores progressistas, e aí é um debate importante a ser feito, se abandona a pauta justamente por ser considerado um tabu e consequentemente se avaliar que se perde voto, de que a sociedade não entenderia, de que setores religiosos seriam contrários e, portanto, não se deve pautá-lo”, analisa Bomfim. 

A antropóloga e autora do livro “Breve História do Feminismo”, Carla Cristina Garcia, segue a linha de raciocínio das parlamentares, mas colocas outras questões que impedem que o debate sobre a descriminalização do aborto avance no Brasil. 

“O motivo pelo qual a discussão sobre o aborto não avança no Brasil suficiente para ter, pelo menos, uma luz no fim do túnel, como a gente tem visto em vários países sul americanos, tem a ver com a maneira pela qual esse debate tem sido colocado pelos movimentos feministas da igualdade, que começaram a se organizar depois da ditadura, que já no início tiveram dificuldade de pautar a questão do aborto no sentido de você conseguir ter mais pessoas favoráveis aos movimentos feministas no momento da redemocratização do Brasil”, explica Garcia. 

Carla Garcia complementa o seu raciocínio e afirma que a ligação dos movimentos de esquerda com setores da igreja católica também impediu o avanço da discussão. 

“Muitos textos que a gente pega, memórias que a gente tem a respeito desse momento dão conta de dizer que a gente tinha dificuldade de colocar a questão do aborto nas pautas de reinvindicação tendo em vista o número muito grande mulheres no final das década de 1970 que estavam ligadas a igreja e que tinham lutado contra a ditadura ao lado dos padres da Teologia da Libertação, então, a pauta do aborto não era considerada por algumas feministas para que fosse colocada na ordem do dia naqueles primeiros momentos. Movimento como o Católicas Pelo Direito de Decidir vieram depois. Isso atrasou a inclusão da pauta do aborto nos movimentos feministas pós-ditadura, assim como outros pontos da pauta que tinham a ver com sexualidades”, pontua Garcia. 

Tabu e religião 

Além das dificuldades de se pautar, inclusive dentro do setor progressista, as entrevistadas falam do tabu construído em torno do aborto. 

“Existe muitos estigmas, muitos preconceitos, existe muita distorção do debate, mas não é por isso que ele deve deixar de ser feito, então, cabe também uma reflexão e um compromisso cada vez maior dos setores progressistas para levar esse debate adiante na chave que ele deve ser tratado: a da saúde pública. É a quinta maior causa de mortalidade materna no Brasil e são mulheres negras, periféricas e pobres que morrem ou que são presas com a lei brasileira da forma como está e ela precisa avançar”, diz Sâmia Bonfim. 

O fato de o Brasil ser um país marcadamente religioso não é suficiente para explicar o fato de a discussão sobre o aborto não avançar no país, pois, os países da América Latina que descriminalizaram o aborto, também o são. Para a pesquisadora Carla Cristina, há outros fatores. 

“Nós temos um país profundamente conservador e isso não tem a ver só com o fato de ser um país religioso, porque os outros países latino-americanos também têm um passado colonial e religioso muito forte e quando você pensa nas leis de aborto da América Latina, por exemplo Nicarágua, Guatemala, que criminalizam o aborto de maneira muito forte. No Brasil, nos últimos 6 anos, essa discussão piorou muito. Nós temos um recrudescimento do pensamento conservador em muitas áreas, que vão desde a questão da "ideologia de gênero", que não é só no Brasil, mas em toda América Latina, e agora nós vamos ter muito mais dificuldade, depois desses anos Damares (Damares Alves, Ministra da Família e militante antiaborto), pra recolocar essa pauta e ela vai ser muito importante para os próximos anos”, diz Carla Cristina. 

Além da Colômbia, o México, Uruguai, Argentina, Cuba e Guiana também descriminalizaram a prática do Aborto. A professora Carla Cristina faz referência a esses países e afirma que “no Brasil nós ainda não tivemos nada parecido em termos de movimentos de mulheres na rua como você viu no Chile, na Argentina, na Colômbia lutando por esse tipo de pauta no meio da rua, um movimento de feminismo de rua levantando um movimento pela descriminalização do aborto”.