O governo britânico deu um passo inédito para enfrentar os danos da pornografia online, endurecendo as regras para conteúdos violentos, misóginos, ilegais — e cada vez mais produzidos ou manipulados por inteligência artificial.
Em fevereiro deste ano, uma revisão independente, liderada pela baronesa Gabby Bertin, política conservadora e ex-assessora de David Cameron, apresentou 32 recomendações para preencher lacunas graves na regulação do setor no Reino Unido.
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Entre as medidas apresentadas pelo Relatório Bertin já implementadas está a criminalização da pornografia com estrangulamento, em vigor desde março. Essa prática popularizou vídeos que simulam agressões sexuais, normalizando comportamentos violentos que, muitas vezes, extrapolam a tela e se tornam abuso real.
O relatório detalha como a explosão de plataformas gratuitas e de fácil acesso estimulou uma indústria de vídeos cada vez mais extremos — com categorias como “ataque”, “sequestro”, “forçar” e “estrangular”.
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O documento defende equiparar as regras para conteúdo online e offline, ampliando a proteção de mulheres e menores. Também propõe a criação de um ministro específico para pornografia, para evitar que o tema se perca na burocracia de diferentes pastas.
Outro alerta é sobre a falta de controle sobre materiais que seriam proibidos em DVDs ou salas de cinema, mas circulam livremente em celulares, redes sociais e sites de streaming.
Bertin compara a responsabilidade das gigantes de tecnologia à da indústria automotiva, que abriu a patente do cinto de segurança para salvar vidas: para ela, plataformas que lucram com pornografia devem investir em tecnologia e filtros robustos para bloquear crimes virtuais.
Um dado impressionante mostra o tamanho do desafio: 1 em cada 4 britânicos consome pornografia regularmente, e, entre os homens, um terço acessa conteúdo toda semana — iniciando, em média, aos 13 anos, muitas vezes de forma acidental.
E no Brasil?
O Brasil segue como um dos campeões mundiais de consumo de pornografia. Segundo o Pornhub Insights, o país aparece regularmente entre os 3 ou 4 maiores consumidores globais, com São Paulo e Rio de Janeiro no topo dos acessos mundiais.
A faixa etária de entrada também é semelhante: muitos adolescentes começam a acessar conteúdo pornográfico entre 12 e 14 anos, sem qualquer barreira de verificação de idade.
Apesar do volume de consumo, o mercado profissional ainda é relativamente pequeno e informal, com nomes conhecidos como Brasileirinhas e produções independentes. Uma parte significativa circula de forma pirata, hospedada em sites estrangeiros, fóruns ou grupos clandestinos.
Nos últimos anos, plataformas como OnlyFans e Privacy impulsionaram o mercado de pornografia independente no país. Milhares de criadores comercializam vídeos, fotos e interações, muitas vezes sem registro formal, o que abre discussões sobre direitos autorais, tributação, proteção de menores e condições de trabalho.
O Brasil não tem uma lei específica para regular pornografia online. Há apenas um mosaico de normas:
- O Código Penal e o ECA criminalizam a pornografia infantil (arts. 240 e 241 — Planalto).
- O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) estabelece que provedores não precisam monitorar conteúdos, mas devem remover material ilegal mediante ordem judicial.
- A Lei 13.718/18 criminaliza a revenge porn (vingança pornográfica).
Casos de deepfake pornográfico ainda dependem de ações por danos morais ou crimes contra a honra — não há um tipo penal próprio.
Tramitam no Congresso projetos como o PL 246/22, que criminaliza o deepfake pornográfico, além de propostas para obrigar a verificação de maioridade em sites adultos e criar protocolos de remoção imediata de conteúdos íntimos não autorizados.
No entanto, essas iniciativas ainda enfrentam resistência: de um lado, argumentos sobre liberdade de expressão encampadas principalmente pela extrema direita; de outro, o lobby de big techs que hospedam ou distribuem conteúdo sem fiscalização.
Só regular não basta
Mais do que simples entretenimento adulto, a pornografia — da forma como é consumida hoje — reforça comportamentos violentos e ajuda a manter viva a chamada cultura do estupro.
Um levantamento publicado na Revista Debates Insubmissos mostra que vídeos comuns em plataformas como o Xvideos naturalizam agressões, distorcem o conceito de consentimento e legitimam práticas abusivas na vida real.
De acordo com o estudo, 88% dos vídeos mais assistidos contêm violência física ou verbal contra mulheres. É frequente encontrar cenas com tapas, estrangulamentos, humilhações explícitas e simulações de estupro coletivo.
A autora Andrea Dworkin, referência mundial no debate, explica que a pornografia, historicamente, foi criada para o olhar masculino. O corpo feminino aparece como objeto, propriedade a ser usada, reforçando a ideia de que o homem tem poder sobre o prazer e o corpo da mulher. “A posse física da fêmea é um direito natural do homem.”
No Brasil, organizações como o Instituto Sou da Paz, Think Olga e Anis Instituto de Bioética apontam caminhos parecidos. O consumo de pornografia extrema influencia comportamentos abusivos, pressiona adolescentes e normaliza estereótipos de submissão feminina.
Vazamentos de nudes, chantagens e a venda clandestina de pacotes íntimos em grupos de mensagem são cada vez mais comuns — e ainda não existe uma lei específica para coibir pornografia violenta ou garantir punições rápidas.
O caso do estrangulamento é um exemplo de alerta global. No Reino Unido, a popularização de categorias como “choke”, “strangle” e “forced choking” em sites como Pornhub e Xvideos levou o governo a agir.
Segundo levantamentos do BBFC e da Ofcom, o fenômeno ajudou a normalizar vídeos que simulam agressão sexual — prática que, muitas vezes, se traduz em abuso real fora da tela. ONGs como Refuge e Women’s Aid ligam esse conteúdo ao aumento de feminicídios e casos de violência doméstica.
Pesquisas citadas no Relatório Bertin mostram que 1 em cada 3 mulheres jovens britânicas já sofreu estrangulamento durante o sexo, muitas vezes sem consentimento claro.
Mudanças profundas
Especialistas, ONGs e organizações como UNESCO, ONU Mulheres, Promundo, CLADEM, Think Olga e Intervozes defendem que a regulação da pornografia precisa ser acompanhada de mudanças profundas.
É essencial investir em educação sexual de qualidade, debater consentimento, respeito e autonomia corporal desde cedo, questionar modelos de masculinidade tóxica, fortalecer redes de acolhimento, preparar o sistema de justiça para acolher vítimas sem revitimização e responsabilizar as plataformas digitais que lucram com a viralização de conteúdos abusivos.
Regular é só o começo. Desmontar a cultura do estupro exige enfrentar suas raízes — da escola à internet, da família aos tribunais. Só assim é possível quebrar o ciclo que transforma a violência sexual em um problema estrutural, e não apenas em um caso isolado.