Fusão musical de raças e Brasis

As trajetórias de Paulo Diniz e Luis Vagner são provas vivas de que não só a negritude, mas também a mestiçagem foram cruelmente punidas pela história brasileira

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As trajetórias de Paulo Diniz, autor da bilíngue “Quero voltar pra Bahia”, e Luis Vagner, compositor do standard soul romântico “Como?”, são provas vivas de que não só a negritude, mas também a mestiçagem foram cruelmente punidas pela história brasileira Por Pedro Alexandre Sanches Esta matéria faz parte da edição 129 da revista Fórum. Compre aqui. Semana da Consciência Negra, São Paulo, 2013. Produtores musicais ligados ao hip-hop paulista trazem à cidade um elenco formidável de artistas históricos da chamada black music brasileira para dois shows comemorativos da data, capitaneados pela Banda Black Rio. Na véspera do Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, dois deles estão sentados comigo à mesa de um estúdio na Vila Romana (perceba o nome) paulistana: Paulo Diniz, autor da bilíngue “Quero voltar pra Bahia” (“I don’t want to stay here/ I wanna to go back to Bahia”), e Luis Vagner, compositor do standard soul romântico “Como?” (“Como vou deixar você/ se eu te amo?”). As enormes diferenças que os separam também os unem. Paulo nasceu há 73 anos em Pesqueira, município do agreste pernambucano, a 215 quilômetros de Recife. Luis nasceu há 65 anos em Bagé, na fronteira com o Uruguai, a 374 quilômetros de Porto Alegre. Interioranos de partes bem distintas do Brasil, vieram a se encontrar em 1966 no eixo Rio-São Paulo, onde compuseram a frente que, na virada dos anos 1960 para os 1970, transformou a Jovem Guarda, então decadente, numa primeira leva de black power brasileiro. A coisa tomou vários nomes, alguns deles transitórios: samba-jazz, sambalanço, jovem samba (que seria uma sub-vertente mais abrasileirada do iê-iê-iê), som universal, pilantragem, samba-soul, samba-rock, balanço, suingue... Em 1972, Paulo se tornou o lançador da balada “Como?”, um dos marcos da história de Luis e do samba-rock (ou como queiramos apelidar esse intrincado estilo musical). Ambos os artistas se identificaram e se identificam até hoje como negros – embora sejam evidentemente mestiços. A hibridez que representam engloba ritmos como baião, xote, ciranda, maracatu (no caso de Paulo), reggae, chula, guarânia, candombe (no caso fronteiriço de Luis) e resultam numa salada que é a expressão musical da origem mestiça, tributária da diáspora africana que veio se abrasileirar sob o flagelo da escravidão. Paulo Diniz e Luis Vagner são provas vivas de que não só a negritude, mas também a mestiçagem foram cruelmente punidas pela história brasileira. Em termos de música, a hibridez foi tradicionalmente confundida com impureza, diluição e profanação de raízes. Esses artistas mestiços tiveram sucesso na indústria musical (notadamente Paulo, com hinos pop como “Pingos de amor” e “Um chope pra distrair”), mas jamais gozaram de prestígio entre a comunidade cultural. “Diziam que era música comercial”, explica Paulo, que se lançou com um hit pop em pique de jovem guarda, “O chorão” (1966). “O iê-iê-iê era tido como comercial. Roberto Carlos e seu séquito eram também vistos com olhos esquisitos. O pessoal mais sofisticado, mais elitista, não nos aceitava muito, não. Gente assim como Capinan e o pessoal mais metidinho da imprensa olhava a gente com um pé atrás e outro na frente”, lembra, referindo-se ao poeta baiano que foi um dos principais letristas do movimento tropicalista de 1967-1968. Música comercial, cafona, brega, pasteurizada, populista, popular – são muitos os epítetos para desqualificar a mestiçagem cultural na música brasileira autoclassificada como... popular. Pergunto a Paulo por que um pernambucano de Pesqueira, que cantava uma música dizendo “eu vim de Piripiri” (um município piauiense), se tornou conhecido e amado por um funk balançado que clamava o desejo de voltar à... Bahia. “Faz tanto tempo... É um sentimento muito antigo, já passou, eu nem sei mais por que eu queria voltar pra Bahia”, ele despista. “Eu sempre quis voltar pra algum lugar, tô sempre querendo voltar, tenho muitas músicas de voltar. Vivi voltando a vida inteira, a coisa de voltar está na minha origem. Acho que sou meio extraterrestre.” Minha pergunta esconde uma armadilha, tentativa tortuosa de abordar uma treta histórica que nunca se explicou por completo e prejudicou principalmente a parte não baiana da refrega. “Quero voltar pra Bahia” é um hino explícito de protesto contra o exílio então vivido pelos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil – que nunca demonstraram apreço público pela canção. Paulo a compôs quando leu no jornal esquerdista O Pasquim um artigo de Caetano se queixando do exílio em Londres. “Ele, que é um cara altamente narcisista, devia estar sofrendo muito. Aquilo bateu na minha cabeça, veio a ideia”, diz, tocando de raspão numa questão que ainda hoje machuca caetanos versus chicos: Os tropicalistas teriam feito marketing do próprio exílio? Paulo prefere tangenciar a polêmica: “A música podia ter sido feita pro Miguel Arraes, pro Ferreira Gullar, pro Juca Chaves. Depois, isso virou um texto do meu show, eu falava que era uma música pros que foram expulsos do país, que foram convidados a sair do Brasil.” No Rio, em meados dos anos 1960, Paulo e Luis moraram no Solar da Fossa, mítica pensão carioca por onde passaram, entre dezenas de outros, nomes que se tornariam importantes na MPB como Caetano, Paulinho da Viola, Gal Costa, Tim Maia, Gutemberg Guarabyra etc. Além de evocar aquela época em “Velho solar” (1971), Paulo descreveu indiretamente esse ambiente no delicioso soul psicodélico “Ponha um arco-íris na sua moringa” (1970): “Ponha um arco-íris na sua moringa/ fique lelé da cuca num dia de sol/ praia de Ipanema, Simonal sorrindo/ vai na Montenegro, toma um chope e sai/ ponha um arco-íris na sua moringa/ é lúcido, é válido, inserido no contexto/ que eu não tenha nome, muito natural/ caminho caminhando pela moça Gal/ papo com o comitê/ Ben, som universal/ Charles precisa voltar pra ficar.” Wilson Simonal e Jorge Ben (Jor), como se vê, eram referências fundadoras para a voz de trovão, nem sempre bem colocada, do também locutor de rádio Paulo Diniz. O fator racial Também músico de bandas, Luis tocou com Ben e com Simonal, entre outras dezenas, talvez centenas de cantores, entre eles Tim Maia, Erasmo Carlos, Raul Seixas, Wanderléa, Celly Campello, Cauby Peixoto, Miltinho, Toni Tornado, Wando, Reginaldo Rossi, Sergio Reis, Fábio Jr. Em “Luis Vagner guitarreiro” (1981), Jorge Ben homenageou o colega gaúcho num samba-rock dolente, ornamentado por cuícas e pandeiros: “Luis Vagner guitarreiro/ ligue essa guitarra e anime o terreiro/ toca jongo, samba, partido, maracatu e calango/ funk, rock, baião/ toca, Luis Vagner guitarreiro, meu amigo partideiro/ mostra o som de Jimi Hendrix/ que eu acompanho no pandeiro.” Outras lendas e tretas mal explicadas misturam e separam violões, guitarras e baixos, jorges, luíses e paulos. “Jorge não deixou eu tocar guitarra, deixou eu tocar contrabaixo”, indica Luis Vagner Guitarreiro, preservando a lenda. Em 1982, ele lançou um samba-rock-suingueira futebolístico de Jorge, chamado “Crioulo glorificado”: “Esse crioulo tá glorificado/ de tanto torcer desmaiou de emoção/ acorda ele, abana ele, levanta ele e diz pra ele/ que o time dele foi campeão. A canção participou de um festival tardio da Rede Globo, mas não passou das semifinais. A mistureba do Solar da Fossa traduzia, em termos musicais, a mistureba da música no momento em que o iê-iê-iê de Roberto e Erasmo começou a perder terreno para a tropicália de Caetano, Gil e Mutantes. “O trevo” (1967), do primeiro LP de Paulo, é nitidamente tropicalista, e anterior ao batismo da tropicália. Luis tocava com a dupla jovem-guardista Deny & Dino, da qual Caetano apanhou a introdução de “O ciúme” (de junho de 1967) para abrir sua “Alegria, alegria” (lançada em outubro daquele ano, no festival da Record). A tropicália provavelmente hoje seria conhecida como pilantragem ou som universal, caso Simonal e Jorge Ben tivessem tido mais gana e espírito de liderança que Caetano e Gil. Evidentemente, os artistas que não se mantiveram em primeiro plano de lá para cá são aqueles que tropeçaram nas próprias pernas pelo caminho. “Nós éramos simples, sem cara de pau. Não atinei para a psicologia para me dar um equilíbrio”, avalia Paulo. “Eu era muito inseguro, de uma cultura muito fragmentada, de menino pobre do interior de Pernambuco. Nunca tive muita segurança, até hoje. Fiz bastante sucesso, mas ao mesmo tempo não soube administrar nada. Nunca tive uma banda. Nunca tive um empresário. Eu também não tinha temperamento pra aguentar os caras.” Luis ratifica: “Nós nunca tivemos empresário.” Mas havia, sim, um fator externo, um dos mais escamoteados por nossa sociedade, historicamente: o racial. “O que a gente fazia tinha um cheiro de black music norte-americana, mas o que não queríamos era ser cópia”, sintetiza Paulo. O grupo tropicalista chegou primeiro tratando de forma frontal dos aspectos comportamentais de sexualidade, gênero, identidade racial – alguns foram exilados inclusive por isso. Entre os que ficaram, como Toni Tornado, Simonal, Jorge Ben, Tim Maia etc., a questão racial explodiu com força a partir de 1970, ano do disco mais importante de Paulo, Quero voltar pra Bahia, um manifesto de orgulho negro sob vários aspectos. Já na primeira faixa, “Piri, piri”, Paulo cravava o local idílico (ou Piripiri?): “Lá não há distinção de cor”. A segunda faixa, “Ganga Zumba”, falava do “primeiro grito de liberdade no Brasil” e se autoexplicava pelo título. “Malandro é São Benedito” tentava driblar a pressão que formava nuvens pesadas no horizonte: “Malandro é São Benedito, que é crioulo, mas é santo/ melhor é bico calado, não entra mosca.” “Ganga Zumba” e “Malandro é São Benedito” foram censuradas (alguém seria capaz de adivinhar por quê?) e suprimidas da segunda tiragem do disco – e, até hoje, de sucessivas reedições em CD. Outros expoentes do nascente black Brasil, como Toni Tornado, Erlon Chaves e o controverso Simonal, estavam sendo brutalmente reprimidos pela ditadura, no contexto radical do Festival Internacional da Canção, na Globo. O black Brasil era colhido no voo no exato instante em que a Rede “não somos racistas” Globo iniciava sua fulminante ascensão. O componente racial já havia aparecido suavemente no LP de 1967 de Paulo, em “Só que a minha pele é negra”, um tema de desencontro amoroso cujo autor era Luis Vagner. Após a mutilação de 1970, a temática desapareceu dos textos de seus discos – mas não do som. Por sua vez, Luis, que havia lançado um LP de iê-iê-iê em 1968 com o grupo gaúcho Os Brasas, só foi estrear em carreira solo em 1974, quando a bandeira black power estava inviabilizada. A primeira faixa do primeiro LP é “Chula louca”, pós-racial e fundada em pitadas de tímido orgulho gaúcho. A coragem de se referir ao tabu racial apareceria, na obra de Luis Vagner, em 1979, na faixa-título do LP Fusão das Raças, que levava o subtítulo “Pro planeta melhorar”. “Yo compriendo su luta por su pueblo, señor/ por isso bah, tchê!”, cantava o conterrâneo de Getúlio Vargas, em cornucópia musical castelhano-gaúcha. Vitaminado pelo sucesso obtido no ano anterior com a inclusão do samba-soul “Guria” na trilha sonora da novela global Dancin’ Days, Luis ousou discurso direto, declamado no início da faixa: “Fusão das raças, eis uma coisa que eu acredito. Um só povo, unido, livre, para o nosso planeta melhorar.” Do ídolo caído Simonal ao funk carioca contemporâneo, passando por Raça Negra e Negritude Júnior, a crítica musical sempre interpretou a “fusão das raças” como diluição, falta de qualidade, “pobreza” musical. Ser popular, nesse sentido, era o erro da música popular. O assunto costuma ser indefinidamente postergado, e mesmo nossos dois personagens se esgueiram do tema “racismo” toda vez que tento abordá-lo. Mas e se, atrás da recusa pela “pobreza musical”, estivesse (estiver) escondido o demônio do preconceito racial contra brasileiros não brancos? Por racismo e/ou por outras questões, os mais “soul music” entre os nossos mestiços passaram a expressar uma orfandade musical e mais-que-musical, talvez a mesma que faça Paulo Diniz se sentir “meio extraterrestre”. Seu soul tropicalista e psicodélico é nômade, estradeiro, desterrado. Um ressentimento dirigido aos exilados respinga aqui e ali, talvez porque artistas como ele se sintam exilados dentro da própria casa. No álbum instrumentalmente mais black power que criou, Paulo Diniz (1974), há uma faixa lamentosa, curiosamente chamada “Chica Bethânia”, que retoma a anterior “Ponha um arco-íris na sua moringa”: “Cadê aquela moringa que eu te dei, Chica Bethânia?/ aonde estão as cores que eu pintei teu arco-íris?” Bordada em referências à música caipira e à moda de viola, “As estradas” (1975) fotografa um retrato cortante de solidão e (auto)abandono: “Vou caminhando sozinho/ não encontro nem chegada/ [...] nas estradas que o mundo tem/ vou andando sem ninguém/ sem parente, sem amigo/ sem amor e sem viola/ sem telhado, sem abrigo.” “As estradas” é mais uma composição de Luis Vagner lançada por Paulo Diniz. À sua própria maneira, Luis vive a desterritorialização desde o caso de ser um “negão” nascido num dos estados mais europeizados e supostamente brancos do Brasil. Seu pai, negro, era violinista e tocava em orquestra – e nomeou o filho em homenagem ao alemão Richard Wagner. Teve uma banda de surf rock chamada The Jetsons, ainda no início dos anos 1960, em Porto Alegre. “São fortes em mim as influências eurocisplatinas, do Uruguai, da Argentina, do candombe”, narra. Ali a coisa fica meio tropical, que é o que vejo também na música pernambucana do Paulo Diniz: a transa tropical. Depois, os baianos começaram a dizer que tudo era de lá, até a influência africana, das Guianas. A armação está boa, eles estão conseguindo fazer valer, mas não é verdade. A fusão das raças é problemática. Uns se queixam dos baianos, outros dos paulistas, outros dos cariocas, outros dos gaúchos. Ainda há quem, mesmo sendo brasileiro, não suporte a música brasileira. Paulo Diniz voltou para Pernambuco, onde vive limitado por uma polineurite, que o colocou numa cadeira de rodas. Luis vive em Guarujá, no litoral paulista, onde se recupera de um AVC. A exemplo do que acontece com os corpos, a música da maioria dos nossos ícones black é precariamente preservada. A fase de maturidade, no caso deles, não é acompanhada pelos habituais tributos, reedições de discos e outras homenagens. Apesar da devoção dos rappers atuais (Mano Brown e Racionais MC’s à frente), os shows da Consciência Negra na Praça das Artes do centro de São Paulo são pouco divulgados e pouco frequentados (mas o são por uma plateia essencialmente jovem, de orgulho negro expressado em roupas e cabelos). Os louros (“louros”, perceba) da glória tardam escandalosamente a chegar, embora Luis comemore efusivamente a recente edição do livro Suingue, samba-rock e balanço – músicos, desafios e cenários (Medianiz, 2013), do músico e etnomusicólogo gaúcho Mateus Berger Kuschick. Após 513 anos de propalada “democracia racial” e meros 125 anos de pós-escravidão (ao menos em termos oficiais), o Brasil ainda não aprendeu a ser generoso com seus mestiços, se tomarmos como parâmetros esses dois expoentes da fusão musical das raças e dos Brasis. F