Tragédia de Cromañón: Há 17 anos a Argentina vivia sua noite mais terrível

Incêndio em casa de shows, semelhante ao da boate Kiss, deixou 194 mortos e impôs mudanças profundas à sociedade do país. Todo ano, em 30 de dezembro, as lágrimas e a luta são retomadas. Fórum foi ao local marcado pela dor e ouviu uma sobrevivente e o pai de uma vítima

José Guzmán, com camiseta e placa de seu filho, Lucas, em frente à entrada principal da boate República Cromañón (Henrique Rodrigues)
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De Buenos Aires

Assim que o relógio marcou 22h50 do dia 30 de dezembro de 2004, numa casa noturna chamada República Cromañon, do bairro de Balvanera, em Buenos Aires, a vida na Argentina mudaria para sempre. Quando a banda de rock Callejeros encerrava sua primeira música, uma chama foi notada numa cobertura plástica que, centímetros abaixo do teto, decorava o ambiente da boate onde deveriam estar no máximo mil espectadores, ainda que as estimativas apontem para um público de aproximadamente 4,5 mil pessoas naquela noite.

O foco de incêndio, pequeno num primeiro momento, teve início com um sinalizador disparado por alguém que até hoje não foi identificado. Em poucos minutos, as chamas do forro plástico atingiram a espuma que isolava o teto da casa noturna e consumiram o material, que então passou a liberar gases altamente mortais, entre eles o cianeto. Caos, desespero, gritos, choro e algumas horas mais tarde 194 corpos. Havia até bebês no local, alguns inclusive não resistiram.

Foto: Henrique Rodrigues

O choque provocado pela Tragédia da República Cromañón impactou fortemente o povo e as instituições nacionais de nossos vizinhos. Centenas de milhares de argentinos tomaram as ruas durante meses, exigindo justiça e uma punição severa aos responsáveis pelo morticínio, especialmente para os agentes públicos envolvidos no funesto episódio. O impacto foi tão grande que hábitos culturais muito enraizados foram aos poucos abandonados, como o uso de sinalizadores e fogos de artifício em toda e qualquer circunstância, as lotações frequentes em espaços destinados ao lazer e as regras de segurança para bares, boates, casas de shows e até estádios de futebol.

Por oito anos o incêndio da República Cromañón foi tido como o mais mortal na América Latina, até que em 2013 uma tragédia muito semelhante ocorreu no Brasil. A boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, bateu o triste recorde de vítimas fatais dos argentinos: foram 242 mortos.

Foto: Henrique Rodrigues

No caso argentino, os músicos da banda Callejeros, ainda que não tenham sido os acionadores do sinalizador, seu empresário, Diego Argañaraz, o proprietário da Cromañón, Omar Chabán, um gerente da casa, responsáveis de segurança do local e cinco policiais federais foram levados a julgamento. Boa parte deles, como os roqueiros e o dono da boate, chegaram a ficar presos por alguns poucos anos. No entanto, o alvo central da fúria dos pais de vítimas e de sobreviventes jamais foi punido: o chefe de governo de Buenos Aires, Aníbal Ibarra.

Ibarra sofreu apenas um juízo político, espécie de impeachment, e foi removido do cargo em 2005. Qualquer outra forma de punição jamais foi imposta a ele, que seguiu trabalhando como funcionário público na capital argentina.

Boxe, luta e justiça

A quadra onde fica o número 3060 da rua Bartolomé Mitre, endereço da boate, há alguns anos é uma passagem apenas para pedestres, com um canteiro arborizado no centro e pinturas e intervenções artísticas em todo o trajeto. Na extremidade da via onde estão as pequenas casinhas com as fotos das 194 vítimas, um ringue de boxe em tamanho natural chama a atenção. O responsável por ele é José Guzmán, 63 anos, pai de Lucas Guzmán, falecido no incêndio aos 18 anos.

Pergunto a José, trajado com uma camiseta com a foto do filho e com três placas pedindo justiça, o porquê daquele ringue bem ali, junto ao memorial de vítimas da Cromañón.

“Esse ringue é primeiro de tudo pela saúde. Dizemos que é a arte pelos punhos, e eu sou boxeador. E isso me serviu como uma terapia, por tudo que se passou aqui dentro (aponta para o peito). Para mim não houve coisa melhor que buscar essa drenagem, essa terapia. Sou diabético e a doença surgiu depois de tudo isso acontecer, produzida pelo desgosto de ter perdido o Lucas. Hoje eu deixo essa mensagem para a juventude, que pratiquem esportes”, explica o pai do jovem que perdeu a vida 17 anos atrás durante o show de rock.

Foto: Henrique Rodrigues

Quando passamos a falar diretamente sobre a tragédia, José fala de sua luta por justiça desde aquela noite. Ele afirma que o julgamento não serviu para coisa alguma, porque foi uma farsa, já que os principais responsáveis pelo ocorrido não foram colocados no banco dos réus, como o ex-chefe de governo de Buenos Aires Aníbal Ibarra.

“Para gente não foi suficiente (o julgamento). Jamais! Esse julgamento foi uma farsa! Uma verdadeira farsa judicial! Os principais responsáveis não foram levados a julgamento. Se vão fazer um julgamento, como podem os principais responsáveis estarem ausentes? Como podem estar livres? Ibarra hoje é um reciclado. É funcionário público, mas é um cadáver político. Como disse minha companheira de luta, mãe de uma outra vítima: ‘meu filho é um cadáver, mas você (Ibarra) é um cadáver político!’. Essa gente está solta e nunca sequer respondeu pelo que aconteceu”, protestou o boxeador.

O pai do jovem Lucas diz que houve toda uma rede constituída para proteger as figuras políticas do alto escalão do governo de Buenos Aires, e que isso só foi possível por ação de todos os grupos políticos, de direita e de esquerda.

“Essa gente contou com a proteção de todos do poder. Dos Kirchner a Macri. Inclusive, quando Macri governou Buenos Aires, em 2007, retirou o subsídio das vítimas da tragédia. Não fez absolutamente nada pelos sobreviventes e por aqueles que perderam seus entes, ainda atrapalhou tudo, nos prejudicando. Agora essas pessoas estão aí... São sobreviventes sem cobertura, sem remédios, sem nada. Todo esse tempo só mostrou que estamos entre personagens sinistros. Não importa se falamos de Ibarra, dos Kirchner, ou de Macri... São todos personagens sinistros”, reclamou indignado.

Menciono o caso brasileiro da boate Kiss e José faz questão de deixar um recado para os pais e sobreviventes da tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul no início de 2013.

“Perder um filho numa circunstância assim, para um pai, para uma mãe, é uma dor inapagável. E vendo o que ocorreu no Brasil, com a Kiss, por mais que tenha sido a quilômetros e quilômetros de distância, a dor renasce. Estivemos todo esse tempo juntos desses corações, porque sentimos o mesmo, sentimos como é perder um filho assim. Estudantes, jovens... Deixo aqui minha solidariedade como pai de uma vítima, a todos os pais e mães daqueles jovens da boate Kiss. Não parem, não abaixem os braços, sigamos na luta. Vamos permanecer exigindo justiça. Estamos na mesma vereda e na mesma dor”, disse, solidarizando-se.

Sobre deixar as ruas e encerrar a luta por justiça e memória, o pai que sofre desde aquela dolorosa noite de 30 de dezembro de 2004 mostra firmeza e sequer cogita abaixar a guarda.

“Venho da província de Santiago del Estero e a vida para mim sempre foi uma luta, desde jovem, quando saí de um lugar pobre, a 1.200 km de Buenos Aires, e segui lutando. Depois ocorreu isso com meu filho... Acha que agora eu pararia de lutar? A esta idade, não... Vou lutar até o final”

“Isso nunca se apagará”

Próximo do ringue montado por José Guzmán está uma mulher também vestida com uma camiseta alusiva à tragédia. Fabiana Puebla, 44 anos, é uma sobrevivente daquela noite de horror. Ela, que tinha 27 anos à época, conseguiu sair com vida do inferno de fumaça e chamas, mas seu marido, Abel José Cantale, de 26 anos, foi uma das vítimas fatais.

“Desde que fui internada, naquele 30 de dezembro de 2004, até 20 de janeiro, quando saí do hospital, essa tem sido a minha luta. Estamos desde então nas ruas”, contou Fabiana, sempre com uma fala tranquila e muito clara.

Sobre o tempo, afinal são 17 anos, ela explica que tudo consiste em aprender a conviver com o sofrimento e dá seu testemunho a respeito de ter a vida mudada da noite para o dia por causa de uma tragédia de dimensões descomunais, que impactou todo o país.

“Isso nunca vai acabar e nunca se apagará. Você aprende a viver com a dor, mas sempre lembrará do que viveu e viu lá dentro, do que viveu e viu aqui fora. Meu companheiro morreu, mas não morreu porque tinha uma doença, por exemplo, e não pôde vencê-la. Morreu aí dentro, de uma hora pra outra, junto com outras 193 pessoas. Esse é um convívio traumático que dura para sempre”, falou.

Fabiana Puebla olha fixamente para a foto do marido, José Cantale, no centro da imagem (Foto: Henrique Rodrigues)

Em relação à morte de Cantale, Fabiana conta que em meio ao caos conseguiu se dirigir o mais próximo possível da saída e que a partir daí foi carregada por outros espectadores do show. Só que seu companheiro não teve a mesma sorte. Só foi achado horas depois, nas câmaras frigoríficas que armazenaram as centenas de corpos de vítimas.

“Até hoje não sabemos em que circunstâncias exatas morreu meu marido. Se saiu morto daqui, morreu no socorro, se ficou muito tempo lá dentro. Só o encontraram depois no IML”, relembra.

Fabiana conviveu com sequelas durante muito tempo, especialmente nos pulmões, afetados pela fumaça inalada. Quando esses problemas de saúde pareciam ter melhorado bastante, descobriu estar sofrendo de uma grave doença que surgiu em decorrência da intoxicação sofrida. Ela conta que não foi a única a passar por esse tipo de consequência.

“Fiquei com sequelas graves nos pulmões. Respirei os gases que foram produzidos com o fogo, principalmente o cianeto. Até me recuperei um pouco, mas alguns anos depois isso me provocou uma leucemia, em 2018, quando estava grávida de meu segundo filho. Me tratei, fiz um transplante de medula em 2019 e o que posso dizer hoje é que está sob controle. Mas os problemas seguem. E isso não se passou apenas comigo. Muitos sobreviventes e familiares desenvolveram câncer, outros resolveram por acabar com sua própria vida, outros morreram por doenças pulmonares”, revela a sobrevivente.

Ao falar do caso da boate Kiss, Fabiana diz que mantém contato com sobreviventes e pais de vítimas fatais, e deixa uma mensagem de perseverança e de insistência para os brasileiros, para que sigam brigando por justiça e memória.

“Eu mantenho contato com o André Polga (produtor editorial que perdeu amigas na boate Kiss e que mantém um site de memória sobre a tragédia). Hoje ele nos deixou uma mensagem, inclusive. Mantemos uma irmandade. O que posso dizer é uma coisa só: não deixem de lutar! Não deixem que se esqueçam da Kiss, da mesma forma que lutamos aqui para que não se esqueçam de Cromañón. Se deixarmos as ruas, as pessoas esquecerão e vai ocorrer outra vez. Nós somos a memória viva da Kiss e da Cromañón. Que nunca se esqueçam disso e que nunca volte a acontecer”, finalizou.