1979: Histórico movimento operário do ABC é encenado pela Companhia do Latão

Peça remete à grande greve de 1979

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O Pão e a Pedra problematiza o encontro e o jogo de relações entre três grupos: o novo sindicalismo, a Igreja progressista e o movimento estudantil. A junção entre igreja e movimento dos trabalhadores, tensionada pela pressão de setores intelectualizados de esquerda, se tornaria emblemática na luta pela democratização e mudaria as coordenadas políticas da esquerda no país Por Milena Buarque Um grupo de operários de uma montadora discute as possibilidades de uma greve na região do Grande ABC, em São Paulo. Os trajes remetem à década de 1970. Logo sabemos que estamos em 1979, em meio a um dos mais fantásticos movimentos de nossa história recente. Os dias de paralisações no ABC produziram um abalo extremo na ditadura militar em curso no país (1964 - 1985) e fincou as raízes de um novo partido brasileiro. Com direção de Sérgio de Carvalho, O Pão e a Pedra, nova montagem da Companhia do Latão em cartaz no Tusp - Teatro da USP, na simbólica rua Maria Antônia, problematiza o encontro e o jogo de relações entre três grupos: o novo sindicalismo, a Igreja progressista e o movimento estudantil. A junção entre igreja e movimento dos trabalhadores, tensionada pela pressão de setores intelectualizados de esquerda, se tornaria emblemática na luta pela democratização e mudaria as coordenadas políticas da esquerda no país. A peça se passa nos primeiros meses fervilhantes de 1979. Entretanto, o diálogo histórico da alegoria fica claro: um ator de pronto avisa que O Pão e a Pedra foi criada no tumultuado início de 2016. Luiz Inácio Lula da Silva, o líder sindical apresentado ao Brasil durante aquele momento, não é representado, embora seja sentido o tempo todo. É em torno de sua imagem, da dependência de suas ações para que algo mude, que os personagens se mobilizam e aguardam. A montagem não só retrata as dificuldades enfrentadas pelos operários e estudantes - todos fictícios - que participam do movimento, mas traz ao debate a questão da mulher, tão central nos dias de hoje. A história principal é a de Joana Paixão (Helena Albergaria), uma operária que se disfarça de homem, João Batista, para ganhar um salário melhor e questionar a situação feminina no ambiente fabril. O machismo e a opressão, comportamental e financeira, aparecem também nos dramas da brilhante Luísa (Sol Faganello), militante que deixa a faculdade para fazer a revolução na fábrica. Acima do clássico capital versus trabalho, como diz o cético Arantes (Ney Piacentini), O Pão e a Pedra revela como os trabalhadores, até hoje, enfrentam as próprias vidas coisificadas, enquanto encaram a violência policial, carregando utopias e lutando por melhores condições de trabalho. O espetáculo surgiu de uma pesquisa coletiva de elementos documentais, ficcionais e realistas sobre as relações contraditórias entre o imaginário ideológico e a situação produtiva no Brasil. Em meio à campanha salarial daquele ano, a encenação contrasta a prática política de uma greve histórica, cujas assembleias no Estádio da Vila Euclides contavam com mais de 70 mil trabalhadores, com expectativas alimentadas pelo imaginário desses personagens comuns acerca de suas próprias vidas. Em uma tensão crescente, o coração da peça está no momento em que os trabalhadores, atendendo a um pedido de Lula, aceitam o retorno às fábricas. O título, aliás, remete à passagem bíblica qual o pai dentre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra. Conscientes ou não. Messiânico ou não. No ano seguinte, de fato, o movimento retornaria maior e vitorioso, selando a morte da ditadura. Alternando drama e comédia, trechos musicais e densos diálogos, O Pão e a Pedra coloca em cena figuras como a jovem militante, o padre comunista, o cético veterano, o fura-greve e o esquerdista intelectual em ambientes e situações sociais inusitados, como o vestiário da fábrica, a linha de montagem e um cineclube apoiado pelo sacerdote. Aliás, é em um desses momentos, no parque de diversões, que se mostra, mais uma vez, a inventividade das soluções cênicas. O movimento corporal dos atores que simula uma roda-gigante é de um lirismo sem igual. Roda viva que é a história, depois das greves do ABC de 1979, o Brasil não seria mais o mesmo - e as consequências daquele período podem ser sentidas até os dias de hoje. Contraditoriamente, de forma sútil e aos gritos, o futuro estabelece uma ponte com o passado. E o teatro, instrumento político e de entretenimento que é, revela um pouco das engrenagens de nosso mundo. Para citar novamente o incrível Arantes, revela a vida das melhores condições que já tivemos. Serviço Até 3 de julho de 2016 Com: Beatriz Bittencourt, Beto Matos, Érika Rocha, Helena Albergaria, João Filho, Ney Piacentini, Rogério Bandeira, Sol Faganello, Thiago França Quando: quintas, sextas e sábados, às 19h30, e domingos, às 18h Quanto: R$20 (inteira) e R$10 (meia-entrada) Onde: Tusp | Rua Maria Antônia, 294 - Vila Buarque - Centro, São Paulo   Foto de Capa: Divulgação

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