A cura gay e um Estado Laico ameaçado

Debate sobre projeto do deputado federal João Campos (PSDB) desnuda ameaça constante à laicidade estatal e traz à tona discussão sobre resgate de ideias eugenistas

Manifestantes protestam contra projeto da cura gay em Juiz de Fora (Wikimedia Commons)
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Debate sobre projeto do deputado federal João Campos (PSDB) desnuda ameaça constante à laicidade estatal e traz à tona discussão sobre resgate de ideias eugenistas Por Marcelo Hailer * Ontem, terça-feira (2/7), o deputado federal João Campos (PSDB-GO), membro da bancada fundamentalista-teocrática de extrema direita, retirou da pauta o PDC 234/2011, que ficou conhecido como projeto da “cura gay”. A proposta tinha como objetivo derrubar a resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe as terapias de conversão de orientação sexual, no caso, da homossexual para heterossexual. Campos, parlamentar obscurantista, alegou que a Casa desejava desgastar a bancada religiosa e “desviar o foco” das críticas das ruas. Quem melhor resumiu o sentimento em torno do projeto foi o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), que desejava que o projeto fosse a votação para que fosse jogado “na lata de lixo, lugar de onde nunca deveria ter saído”. Porém, todo cuidado é pouco, pois, logo depois do recuo de João Campos, o pastor/deputado Marco Feliciano (PSC-SP) e o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, trocaram figurinhas no Twitter e em forma de deboche se consideraram vitoriosos, mesmo que o projeto tenha sido retirado de pauta. Para ambos, a visibilidade proporcionada pelo projeto da “cura gay” tinha sido boa. Nas palavras de Malafaia eles deram “um show”. E ambos lembraram que o projeto pode voltar em 2014 ou em 2015 quando, segundo eles, a bancada religiosa vai “estar mais forte”. Para o pastor Silas Malafaia o “povo acordou”. Só resta saber pra que: iniciar uma perseguição aos LGBTs e a todos os sujeitos dissonantes? [caption id="attachment_26394" align="alignright" width="360"] Manifestantes protestam contra projeto da cura gay em Juiz de Fora (Wikimedia Commons)[/caption] Desde que o projeto da “cura gay” entrou em votação grande parcela dos ativistas LGBTs e da sociedade em geral já contavam com o seu arquivamento, porém, temos de nos deter na questão absurda que é uma das maiores Câmaras de deputados federais do mundo, e a maior da América Latina, estar puxando tal debate. Há anos que o movimento LGBT atenta para o crescimento da bancada fundamentalista de extrema direita e que, desde sempre, estes se pautam contrariamente às questões homossexuais. Esta “guerra santa” se estabelece com força desde 2006, quando o PLC 122/2004, que visa tornar crime a homofobia em todo o território brasileiro, caminhou no Congresso Nacional e que, por conta do lobby fundamentalista, segue paralisado; agora com promessas, até mesmo da presidenta, de sair do papel. Mas, infelizmente, todos os recados dados pelos ativistas LGBTs e inclusive, boa parte deles da base petista, foram ignorados. Comum era escutar de que se tratava de “paranoia” e “radicalidade política”. E assim foi nas ultimas três legislaturas que todos os projetos com a intenção de garantir direitos civis às LGBTs foram barrados por conta do lobby fundamentalista que, além de tudo, também se articulou e fez o governo federal recuar em pautas como “Escola Sem Homofobia”, campanha de prevenção de 2012 aos jovens gays e mais recentemente cartilha de prevenção aos jovens LGBTs, que hoje são um dos principais focos da Aids/HIV. Da mesma maneira que o governo federal se articulou para derrubar a “cura gay”, espera-se agora que ele trabalhe pela aprovação do casamento igualitário e da criminalização da homofobia. E inclusive pela derrubada da PEC 99, que se aprovada vai dar poder as instituições religiosas de propor ações direta de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal. E adivinha de quem é a autoria? Sim, do deputado João Campos (PSDB-GO), o mesmo da “cura gay”. Estado Laico e nova eugenia Outra importante questão, ou melhor, duas questões que a “cura gay” traz ao debate popular é o Estado Laico e a nova eugenia (esta ainda não muito popular). Questiona-se a legitimidade de representantes de instituições religiosas enquanto parlamentares, visto que se observa que estes sujeitos não trabalham pela causa constitucional do Estado Laico, mas sempre com bíblia em punhos vociferam animosidades sempre que a questão são os direitos LGBTs. Absurdos como “necrófilos”, “pedófilos”, “doentes”, “aberrações” e outros absurdos já foram discursados no plenário do Congresso Nacional. E se você acha que é “exagero”, de uma busca na internet com os termos “plc 122” e “magno malta”. Para se ter uma ideia do absurdo a que chegamos, a deputada e pastora Lauriete Rodrigues (PSC-SC), no dia 9 de maio foi a plenário comemorar os 100 anos da Assembleia de Deus e começou a cantar uma música gospel. Não somos contra o professar da fé, mas essa é a importância do Estado Laico, que garante a liberdade religiosa e a casa do povo. A Câmara Federal, deve ser o lugar de maior aplicação da laicidade do Estado. Portanto, entendemos que nenhuma religião deva ser professada ou comemorada dentro da Câmara e Senado. Mas, apenas em seu âmbito privado. A história nos mostra que, quando política, poder e religião se misturam, é a tragédia que nos aguarda. Além do Estado Laico espancado diariamente, outro fator que chama atenção é a o resgate das ideias eugenistas pela bancada fundamentalista de extrema direita. Para quem não sabe, a eugenia é uma ideologia surgida no século XVII e que tem como prisma a ideia finalizante/ totalizante, ou seja, para eles o ser humano é um instrumento que vem para reproduzir a espécie, isso a partir do prisma da heterossexualidade obrigatória. Logo, tudo que está fora desta conta é uma aberração e deve ser estudada, medicada, encarcerada e, na pior das hipóteses, eliminada. E é dentro deste contexto que surge o projeto da “cura gay”, que faz todo o sentido: revela o real objetivo desta bancada que se alimentou e cresceu sob a égide da coalizão governista, ou seja, uma sociedade heterossexual, “saudável” e livre destes corpos “abjetos” que inundam o espaço público. Há uma crise política instalada no Brasil, uma crise para com as casas representativas dos poderes local (estados e municípios) e central (federal). E as crises são os melhores momentos para se plantar soluções e novos caminhos. Existe também a grande oportunidade de se dar uma grande virada e deixar para trás alianças com setores que desejam um Brasil alocado no século XIX, onde não há espaço para mulheres e bichas libertas. Exemplos para isso não faltam. O governo federal sinalizou para um caminhar mais progressista ao receber o Conselho Nacional LGBT; e a coalizão que tanto fortaleceu o setor fundamentalista de extrema direita só será superada com uma profunda reforma política que, entre outras coisas precisa separar de fato o poder político do poder religioso. *Jornalista e Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP