A derrota dos EUA no Iraque: o declínio de um modelo

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[caption id="attachment_1046" align="alignleft" width="300" caption="Escultura destruída no Museu do Iraque. Fonte: http://aiamn.blogspot.com"][/caption] Foi uma das derrotas mais acachapantes da era moderna. Quatro mil e quinhentas vidas norte-americanas, centenas de milhares de vidas iraquianas, um pacote de mentiras, um trilhão de dólares e nove anos depois, os EUA recolhem as armas e saem do Iraque vencidos, sem jamais terem verdadeiramente controlado uma única rua iraquiana. Como apontou, em coluna no Guardian, o Deputado escocês George Galloway, um dos mais corajosos opositores da guerra em seu país, uma rua de Bagdá, a Haifa, foi túmulo de pencas, talvez centenas de soldados americanos. Fallujah entrou para a história ao lado de Stalingrado como um símbolo da resistência à invasão estrangeira. O terrorismo islamista de grupos como a Al Qaeda, do qual o secular Iraque não tinha sequer notícia antes da ocupação, encontrou no país terreno fértil. Pelas óbvias afinidades com a maioria xiita agora dominante no Iraque, o Irã multiplicou sua influência na região. Israel, a outra grande razão norte-americana (além do petróleo) para iniciar a guerra, encontra-se mais isolado do que nunca. Os horrores da tortura em Abu Ghraib enterraram de vez qualquer pretensão americana de superioridade moral. O modelo de estabilidade democrática pró-ocidental que se esperava impor ao Iraque está ainda mais longínquo do que em 2003. Nem uma única autoridade iraquiana compareceu à despedida das tropas estadounidenses. Nos EUA, uma multidão de veteranos mutilados, traumatizados, desempregados e violentos zanza pelas ruas, descobrindo finalmente que foram enganados. Como disse Bush em 1o maio de 2003, “missão cumprida”! Depois de completar sua missão no Iraque em 2004, o casal de sargentos William e Erin Edwards retornou separadamente à base do exército no Texas no qual ambos estavam estacionados. Depois da chegada dela, William a espancou brutalmente, estrangulou-a, arrastou-a por cima de uma cerca e bateu com sua cabeça na calçada. Com a ajuda de um general, ela se transferiu para outra base, em Nova York. Conseguiu uma ordem judicial para se proteger, mandou os dois filhos para viverem com a avó e recebeu a garantia dos comandantes do marido de que não lhe seria permitido sair da base sem estar acompanhado por um oficial. Mas na manhã de 22 de julho de 2004, William Edwards saiu de sua base, foi de carro até a casa da mulher, em Killeen, no estado do Texas, esperou que ela saísse e, depois de uma luta corporal, matou-a com um tiro na cabeça e depois suicidou-se. Este breve relato é adaptado da matéria do New York Times, de 15 de fevereiro de 2008. Até janeiro de 2008, o New York Times havia contabilizado 121 assassinatos cometidos por veteranos do Iraque e do Afeganistão. Este número, a estas alturas, já é bem maior. Mais da metade desses crimes envolveram armas de fogo, com o resto sendo por esfaqueamento, espancamento, afogamento em banheira ou estrangulamento. Aproximadamente um terço das vítimas eram cônjuges, namoradas, filhos ou outros parentes, incluída aí Krisiauna Calaira Lewis, de dois anos de idade, esmagada pelo pai com pancadas contra a parede. Segundo estudo da Universidade da Califórnia em San Francisco, um terço dos veteranos já podem considerados doentes mentais, mais frequentemente com estresse pós-traumático ou depressão. E a maior parte dos soldados só começa a voltar agora. Não há garantias de que invasões semelhantes não voltem a ocorrer, mas a Guerra do Iraque demonstrou a decadência definitiva do modelo de ocupação colonial que os EUA tentaram impor várias vezes, a mais ilustremente derrotada delas no Vietnã. Paul Virilio, urbanista francês que é um dos maiores pensadores da guerra no nosso tempo, ajuda a entender o quadro atual. Segundo Virilio, a nossa época é caracterizada pelo fim da guerra de matriz napoleônico-clausewitziana (do General prussiano Clausewitz, autor de Sobre a guerra, o tratado mais influente sobre o tema no século XIX). Naquele modelo, as guerras eram eminentemente territoriais e simétricas. Foi o período das guerras entre as potências europeias, que se estende desde os conflitos religiosos da primeira era moderna até a Segunda Guerra Mundial. Dali em diante, entramos num período em que o próprio campo de batalha tende a desaparecer. Nos conflitos napoleônico-clausewitzianos, luta-se por ocupação de território. Essa dinâmica permitia, inclusive, em alguns casos, que o combatente mudasse de lado, como foi o caso na Revolução Russa, onde muitos soldados czaristas, convencidos da justiça da causa bolchevique, abandonaram as fileiras do exército para se juntar aos revolucionários. Nas guerras pós-modernas, o inimigo não é mais localizável como Estado-Nação. É, com frequência, uma entidade amorfa, que pode ser, inclusive, um signo vazio – como “Al Qaeda”, que é muito menos uma organização (no sentido em que os partidos ou guerrilhas modernas são/eram organizações) que um referente ao qual aludem uma série de atos descentralizados de vários movimentos islamistas não necessariamente coordenados entre si. Neste contexto, desaparece o próprio terreno de batalha. A guerra pode acontecer em qualquer canto e deslocar-se para qualquer outro. A intervenção da OTAN em Kosovo já anunciava essa curiosa realidade: “os dois adversários oficialmente declarados não deviam se encontrar em lugar nenhum, marcando-se assim a desaparição do campo de batalha real” (Ce qui arrive. Paris: Galilée, 2002, p.63). Para Virilio, os três grandes traços das guerras pós-modernas são a instantaneidade, a velocidade e a virtualidade. Estaríamos nos aproximando do momento em que as guerras podem ser teleguiadas por uma secretária eletrônica, escondendo a realidade das mutilações e das mortes. A instalação desse modelo ocorreu com a primeira Guerra do Golfo, que imortalizou as imagens de videogame da CNN, das quais todo o horror da violência homicida havia sido purgado. Nos novos conflitos, também tende a desaparecer a fronteira que separa a guerra do policiamento. Os estados mais fortes passam a realizar atos de guerra e apresentá-los como trabalho de policiamento. O oponente já não é um inimigo em termos clássicos; ele é apresentado como um “fora-da-lei”. Os EUA e Israel são os representantes tradicionais desse paradigma: todas as agressões de Israel a seus vizinhos, a partir da Guerra de Yom Kippur, de 1973, foram formuladas em termos de policiamento de um bandido, e não em termos napoleônico-clausewitzianos. O resultado disso é que os estados respondem ao terrorismo desenvolvendo seus próprios métodos terroristas. Virilio propõe o ataque de paraquedistas israelenses ao aeroporto de Beirute em 1969 como o início desse modelo em que, ao mesmo tempo em que faz guerra com argumentos e práticas policiais, o estado desenvolve os seus próprios métodos de delinquência. A Guerra do Iraque exemplificou várias dessas características dos conflitos pós-napoleônicos: não havia um inimigo identificável e ele estava por toda parte; os argumentos e as práticas da ocupação eram policiais, não bélicos no sentido clássico; a potência ocupante lutava contra o terrorismo utilizando-se abundantemente de métodos terroristas; não havia campo de batalha pré-estabelecido, pois a luta ocorria aonde a insurgência a levava a cada momento; a instantaneidade, a virtualidade e a velocidade foram as grandes armas na derrubada do regime de Saddam Hussein, mas de pouco serviram no conflito de longa duração. A combinação entre essas características e o fato de que o conflito foi concebido ainda de acordo com uma lógica moderna, colonial de ocupação do território alheio fez com que o único resultado possível fosse este, que deixou comentaristas de mídia perplexos e confusos: quando poderemos dizer que “ganhamos” essa guerra? Quando realizarmos uma eleição de araque? Quando cessarem as explosões e ataques suicidas (ou seja, nunca)? Quando o país estiver mais pacificado do que estava antes (ou seja, nunca)? A mídia dos EUA, tão dócil e tão obediente em 2003, incapaz de se perguntar se as mentiras usadas para justificar a guerra tinham algum fundamento, foi descobrindo, pouco a pouco, o que sabia qualquer observador menos entorpecido em 2003: a Guerra do Iraque era, por definição, já de antemão, uma guerra na qual não havia vitória possível. Fazer previsões em política é sempre um jogo arriscado e nada garante que um ataque semelhante ao Irã não será lançado nos próximos anos, inclusive como peça do jogo eleitoral dos EUA, cuja população parece dotada de uma capacidade amnésica ainda maior que a brasileira. Mas ficou claro que a Guerra do Iraque representa a falência definitiva do modelo que tenta combinar a guerra instantânea-virtual descrita por Virilio com o paradigma moderno, colonial da ocupação. É impossível prever se ele será tentado de novo, mas é indiscutível que, se o for, fracassará novamente. A previsibilidade do fracasso não é garantia suficiente de que outra tentativa não ocorrerá. Os impérios em decadência funcionam com uma dinâmica toda particular, em que se tende a insistir nos desastres responsáveis pela própria decadência. É o que os freudianos chamamos de repetição: a reiteração cega do sintoma como forma de impedir o confronto com sua raiz mais profunda. Enquanto isso, as ruas americanas vão se enchendo de maltrapilhos e alcoólatras traumatizados com as explosões e mortes de Bagdá e Fallujah, juntando-se agora aos maltrapilhos e alcoólatras traumatizados há 40 anos com as explosões e mortes de Saigon. . Este artigo é parte da Edição 106 da Revista Fórum.