A difícil democracia: reinventar as esquerdas, de Boaventura de Sousa Santos

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"Em A difícil democracia (Boitempo, 2016), Boaventura de Sousa Santos desnuda como a democracia é tolerada e tem seu conceito configurado apenas pela representação para a convivência com o sistema capitalista". Leia a resenha sobre o mais novo livro do autor português escrita por Juliana Borges, pesquisadora em Antropologia e  secretária-adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo em 2013 Por Juliana Borges* Nunca foi tão importante retomar e defender o conceito de Democracia, ao mesmo tempo em que é tão importante discuti-lo e ressignificá-lo. Ao tomarmos como premissa os estudos do filósofo russo Mikhail Bakhtin, sobre filosofia da linguagem e marxismo, afirmamos que não há língua e linguagem sem ideologia. A língua é, portanto, a mediadora das relações sociais e, com isso, é o espaço em que melhor percebemos manifestações ideológicas. Neste sentido, língua e linguagem, para além de campos de poder, são campos em disputa. O discurso é, com isso, e pelo seu elemento constitutivo, a língua, poder e política e recheado de escolhas e construções permeadas pelo meio social, cultural e ideológico. Retomando estes princípios norteadores é que podemos afirmar que democracia é um conceito, como toda e qualquer palavra, em constante movimento. O entendimento sobre democracia modificou-se historicamente. Criada pelos atenienses na antiguidade clássica, o conceito designava uma forma de governo de muitos, não de todos, com o poder e a autoridade política, expressa nas assembleias, para administrar e decidir sobre os interesses e o bem estar coletivo. Alguns princípios importantes deste período mantiveram-se: a isonomia e a isegoria, que garantem igualdade perante a lei e direito de expressão; e os ideais de distribuição equânime do poder e o juízo dos cidadãos para tomada de decisões – no caso da democracia representativa, de escolher seus representantes. Depois, e ao contrário do que muitos acreditam, na República romana o conceito de democracia não se perde totalmente. Aspectos democráticos coexistiram na estrutura do sistema político romano pelas assembleias, que elegiam cargos públicos dentre outras decisões e nas quais todos os cidadãos romanos podiam votar. Com o fim do período republicano romano e instaurando-se o império, estes aspectos também se perderam. Foi, finalmente, no século XVIII que a concepção moderna de democracia se configurou. Os princípios de cidadania e do voto para a escolha de representantes foram recuperados. Apesar desta reconfiguração e conceituação mais ampliada, a ideia de cidadania e democracia não se estendeu a todas as sociedades e indivíduos. Hoje, de modo genérico, democracia seria, pela definição de Boaventura, o regime no qual pessoas, como eleitores e eleitoras, tem o direito de exercer a livre escolha de representantes, expressando posições políticas e interesses para exercer representação social. Mas até que ponto estas linhas gerais são respeitadas no sistema capitalista? Democracia e capitalismo convivem em harmonia? Em A difícil democracia (Boitempo, 2016), Boaventura de Sousa Santos desnuda como a democracia é tolerada e tem seu conceito configurado apenas pela representação para a convivência com o sistema capitalista. Popularizou-se apenas no final do século XIX e início do XX, frente a ascensão de regimes autoritários como o Fascismo e o Nazismo. Por terem sido regimes que defendiam um Estado e regulação de mercado fortes, o capitalismo tolerou, então, a democracia em alguns cenários. Após a 2ª Guerra Mundial, a democracia passou a ser utilizada como arma ideológica na guerra fria. No Estado de Bem-Estar Social, considerado pelo sociólogo como uma concertação sistêmica frente os desafios do pós-guerra, a democracia passou a ser vista como asseguradora de direitos fundamentais. No entanto, esta configuração não se aplicou em todos os contextos sociais, posto que pela divisão internacional do trabalho e pelo neocolonialismo essencial ao capitalismo para o desenvolvimento dos países do Norte global, a democracia foi descartada nos países semiperiféricos e periféricos como sistema político, se não apenas como simbólico ideal. E é exatamente nestes países, em que a democracia menos tem espaço no decorrer da história, da América Latina principalmente, que o autor enxerga a potência para alargar o conceito de democracia, democratizando-o. A partir do Brasil e dos países latinoamericanos, com a ascensão dos governos progressistas populares, que surgiram experiências mesclando democracia representativa/liberal e democracia participativa/popular. Atualmente, vivemos em um cenário que, em escala global, o capitalismo refuta a política como moderadora das tensões entre os interesses do capital e a democracia. Agentes do capitalismo tem adentrado à política e se colocado, os próprios, como gestores do Estado para os seus interesses. Este processo, conforme pontua Boaventura, contém práticas restritivas da democracia, desmonte e desorganização do Estado criando sociedades “politicamente democráticas e socialmente fascistas”. No Brasil, por exemplo, as últimas eleições municipais foram as que mais tiveram milionários e empresários eleitos prefeitos. No plano federal, um golpe jurídico-civil-parlamentar instaurou-se apostando e aprofundando tanto a “crise de representação” quanto a “crise de participação” para estabelecer uma democracia de baixa intensidade, para utilizar os conceitos do autor, e aplicando, com isso, as reformas neoliberais. O sociólogo entende nos movimentos sociais e ativistas do campo da esquerda os atores e atrizes capazes de repensar e refundar uma democracia mais participativa e popular. Porém, pontua que este desafio de reposicionamento programático ocorre em um momento de profunda crise sistêmica tanto no plano econômico, como também nos campos cultural e comportamental. É nos países do Sul Global que o sociólogo percebe a potência para esta refundação democrática, respeitando, no entanto, a pluralidade e propondo radicalidade nos instrumentos de participação. Estes, contudo, não se encerram na multiplicidade de espaços institucionais, mas ampliando-se para canais de decisão em todas as esferas e instituições sociais, nos comportamentos e relações humanas e personalidades sociais. “Radicalizar a democracia significa intensificar sua tensão com o capitalismo”. Sob este ponto de partida que Boaventura retoma e aprofunda uma série de conceitos, construções e processos políticos que perpassam toda a sua obra para dialogar com o todo das esquerdas frente ao atual cenário político. Num conjunto de 13 cartas, presente no livro, o sociólogo trata de diversos temas colocados como questões centrais e desafiadoras para as esquerdas. Tratando desde a diversidade das esquerdas e a necessidade de trabalhar consensos e unidade respeitando a multiplicidade existente; a ainda atual emergência da luta contra o neoliberalismo, que tem se modificado para intensificar a desorganização do Estado, em que o autor aponta como uma tarefa uma proposta de refundação do Estado democrático; a necessária atualização e oxigenação dos partidos de Esquerda, abrindo-se aos militantes não filiados sem cooptação; a atenção ao debate ecológico e à desmercantilização da vida; a importância da luta hegemônica; além de outros aspectos, dos quais destaco: A centralidade da luta contra o colonialismo, o patriarcado e o capitalismo realizada de modo indissociado. Neste ponto, Boaventura de Sousa Santos dialoga com uma série de movimentos e ativismos de valorização dos conhecimentos produzidos pelos atores sociais compondo novas sínteses que contemplam olhares e visões múltiplas. Ou seja, é preciso entender e absorver as identidades emergentes não como perda “de vocação histórica dos trabalhadores” como potencial transformador, mas como fator múltiplo frente “as transformações profundas na produção capitalista, quer no domínio das forças produtivas, quer no domínio das relações de produção” (p. 146-147). E segue, “com todas essas transformações, o capitalismo foi muito além da produção econômica no sentido convencional – passa a ser um modo de vida, um universo simbólico-cultural suficientemente hegemônico para impregnar as subjetividades e a mentalidade das vítimas de suas classificações e suas hierarquias” (p. 148); A cada vez mais difícil convivência entre democracia e capitalismo. Para Boaventura, “Socialismo é democracia sem fim”. E, neste sentido, as contradições no convívio de uma profunda democratização em todas as esferas sociais vão de encontro às necessidades do sistema capitalista. “O capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com suas ‘necessidades’, enquanto a democracia é idealmente o governo das maiorias que não tem capital nem razões para se identificar com as ‘necessidades’ do capitalismo” (p. 191). É, portanto, na busca da democratização da democracia e na sua manifestação de alta intensidade que as esquerdas, segundo o sociólogo, devem focar a construção programática e das lutas atuais. Temos, portanto, um livro fundamental e acertado para o atual momento político tanto em escala global quanto na organização das lutas locais, principalmente em aspectos da conjuntura brasileira. Boaventura retoma e aprofunda conceitos, dialoga com movimentos, ativistas e propõe não apenas respostas, mas, principalmente, perguntas para que se construam respostas e saídas coletivas. O livro encerra-se com um epílogo “Para ler em 2050”. Se as perspectivas podem parecer pouco positivas, pelo conteúdo e desafios apontados no livro, fica a compreensão de que ainda há tempo para uma reinvenção das esquerdas capaz de sinalizar transformações profundas. Como em uma possível alusão ao clássico do escritor José Saramago, “Ensaio sobre a cegueira”, Boaventura discorre sobre a cegueira divisora e conflituosa. Talvez, uma possível divisora de águas. Se correlacionarmos a cegueira em Saramago como um processo divisor, mas necessário, de reencontrar caminhos e reinvenção das esquerdas, já em diálogo com a obra de Boaventura, talvez estejamos na emergência do momento próximo de construir uma visão mais agregadora, múltipla e potente, ou seja, as condições para o horizonte de uma democracia sem fim. *Juliana Borges é formada em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia. Foi secretária-adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013)