A esquerda e o unicameralismo

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O senso comum da classe média brasileira aceita indignar-se contra políticos individuais acusados ou culpados de corrupção. Também aceita vociferar contra todo o sistema político, com diferentes versões da cantilena todo político é igual. A última delas é a “Não reeleja ninguém”, vergonhosa campanha pseudopolítica lançada por Daniela Thomas e disseminada por Marcelo Tas. Mas esse senso comum só consegue oscilar entre entender a corrupção como defeito moral individual ou como inevitabilidade de nosso sistema ou raça. Daí que a conversa sobre corrupção no seio da classe média brasileira seja tão enfadonha. Ela passa do moralismo individual ao fatalismo coletivo (humano ou nacional) sem espaço para que uma conversa realmente política se estabeleça. Curiosamente, isso acontece no interior de uma sociedade que, apesar de complexa, enorme e em franca democratização, ainda não construiu canais para a discussão do unicameralismo. Digo “curiosamente” porque seria de se esperar que a estrutura bicameral do Congresso brasileiro e a desproporcionalidade que caracteriza o Senado já teriam entrado em pauta nas discussões políticas sobre corrupção. Mas não é esse o caso. A julgar pela mídia e pelo senso comum da classe média, pareceria que essas duas coisas não estão relacionadas. Sem emplacar um debate real sobre as relações entre a corrupção e as estruturas do sistema político brasileiro, fica mais fácil apresentá-la como uma questão de origem moral. E qualquer pessoa de esquerda sabe que quando um problema político vem embrulhado como se fosse um problema moral, são os defensores do status quo, os poderosos e as forças conservadoras que se beneficiam. No Brasil, o unicameralismo ainda se vincula, na cabeça de muitos, a uma adesão supostamente inconclusa, fingida ou formal à democracia representativa. Existe gente inteligente, como Antonio Cícero, que associa o unicameralismo ao perigo de abolição da democracia representativa no chavismo plebiscitário e na democracia “direta”, como se uma coisa fosse prima da outra. É como se, para que as pessoas acreditassem que você realmente defende a existência de um parlamento, fosse necessário achar natural a existência de dois. É uma lógica bizarra, mas que tem suas raízes históricas. Não se podem tirar conclusões apressadas de uma lista aleatória dos países que adotam o unicameralismo. Um rol não exaustivo inclui: China, Portugal, Suécia, Finlândia, Islândia, Dinamarca, Israel, Estônia, Croácia, Cuba, Venezuela, Peru, Equador, Angola, Líbano, Grécia, Guatemala, Honduras, Turquia, Sérvia, Hungria, Coreia do Sul, Ucrânia, Nova Zelândia, Estônia, Macedônia, Chipre, Bulgária e Bangladesh. Há sistemas políticos de todo tipo nessa lista, evidentemente. É fato que o unicameralismo predomina em países menores, sem as proporções continentais do Brasil. Também é correto que são democracias bicamerais os Estados Unidos, a Rússia, o Canadá e a Índia. Também é certo que o único país unicameral territorialmente comparável ao Brasil é China, não exatamente um modelo de democracia. Mas a discussão está longe de se esgotar aí. Nos EUA, existem alguns motivos sólidos que justificam o Congresso bicameral. Apesar das semelhanças raciais e territoriais entre os dois países, esses motivos não se aplicam ao Brasil. Os EUA foram criados a partir da expansão de um núcleo migratório concentrado em 13 colônias de território bem menor que aquele que o país viria a ocupar no século XIX. Com a compra da Louisiana e o roubo, via guerra, de um enorme pedaço do México, os EUA fundaram um sistema em que se faziam necessárias algumas concessões à paridade entre estados desiguais – tratou-se, literalmente, de avançar rumo ao Oeste. No Brasil, o federalismo serve aos interesses de oligarquias, chefes locais, capangas de vários tipos e, acima de tudo, ao PMDB, expressão mor do clientelismo nacional. Por tudo isso, é dificílimo emplacar uma discussão real sobre o unicameralismo no interior das estruturas políticas brasileiras. A Índia é bicameral, mas sua Câmara Alta, chamada de Conselho dos Estados (Rajya Sabha), elege seus representantes de forma quase proporcional. Estados populosos, como Uttar Pradesh e Maharashtra, têm respectivamente 31 e 19 assentos, contra 1 representante para estados menores como Mizoram ou Sikkim. Na Rússia, o bicameralismo é até mais excludente que no Brasil. O Conselho da Federação (Câmara Alta) concede dois representantes a cada um dos 84 “sujeitos federais” do país, entre repúblicas, províncias ou territórios. Eles não são, no entanto, eleitos diretamente. Um deles é escolhido pelo Legislativo da província e o outro é nomeado pelo governador e referendado por esse mesmo Legislativo regional. A queda de braço com os capangas que tendem a controlar o Conselho da Federação é, aliás, um dos elementos chave para se entender o governo de Vladimir Putin. Já no Canadá, o Senado tem alguma proporcionalidade, ao contrário do Brasil. De seus 105 membros, cada uma das grandes quatro regiões do país recebe 24 assentos, com o restante sendo dividido entre as províncias menores. Em compensação, sua forma de escolha é menos democrática. Os senadores canadenses são nomeados pelo Governador Geral. Sempre acreditei que a democracia brasileira ganharia muito se fossem criados canais onde a discussão sobre o unicameralismo prosperasse. Não é, evidentemente, uma bandeira que um grande partido possa assumir sem um tremendo desgaste. O PT, com sua respeitável bancada de 11 senadores, não a levantaria mesmo que houvesse avançado mais em seu interior o debate sobre o unicameralismo – um modelo de organização do legislativo muito mais próximo da visão de democracia genuinamente representativa que animou boa parte do partido em sua origem. Eis aqui, pois, a trava à reforma política brasileira: ela só pode florescer quando adquirir força suficiente no interior de espaços cuja  existência ela ameaçaria. Vivemos nesse paradoxo, que explica por que a reforma política é bem mais difícil do que foi a reforma da Previdência. Mais uma crise de legitimidade do Senado, no entanto, pode acabar abrindo a fresta para que a reflexão sobre as instituições saia do chato terreno moral e ouse imaginar formas de organização política cujo poder democratizador nós talvez nem possamos ainda vislumbrar. Este artigo é parte integrante da Edição 76 da Revista Fórum