A exclusão no espaço doméstico

Já pensaram que o “social” ser antítese do “serviço”, em prédios e condomínios, significa que aqueles que trabalham não fazem parte da sociedade?

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Já pensaram que o “social” ser antítese do “serviço”, em prédios e condomínios, significa que aqueles que trabalham não fazem parte da sociedade? Por Fernando Luiz Lara.  (Confira o primeiro artigo desta série aqui) Os apartamentos onde vivem uma significativa parcela da população urbana brasileira são espacialmente idênticos. De um lado, o eixo social: sala-corredor-quartos-banheiros; do outro, o eixo de serviços: cozinha-área-quarto de empregada. Cada eixo com sua porta abrindo para o hall dos elevadores e uma porta de conexão entre eles (LARA, 2009). Essa brevíssima descrição acima já contém várias das idiossincrasias do espaço doméstico brasileiro. A começar pela famigerada porta de serviço que discuti rapidamente no texto anterior. Estou absolutamente convencido de que a porta de serviço é um resquício da relação entre casa grande e senzala, que sobreviveu os 125 passados anos desde a abolição da escravatura. Impressionante como algumas coisas mudam rápido e outras mudam tão devagar. O fato é que não faz o menor sentido ter duas portas abrindo para o mesmo hall de elevadores como em milhares de edifícios de apartamentos no Brasil. Quando perguntava aos meus alunos de Arquitetura no Brasil o porquê dessa porta extra, que custa a preços de hoje cerca de R$ 1,5 mil (R$ 300 da porta instalada mais R$ 1,2 mil do metro quadrado que ela ocupa) escutei todo tipo de explicação esdrúxula. Num primeiro momento, diziam que colocaram essa porta porque todo apartamento é assim. Razões mais verdadeiras aparecem quando os mesmos alunos eram pressionados a explicar se isso faz sentido nos dias de hoje. Uma dúzia de vezes escutei que era para levar o lixo pra fora. A leitura literal da palavra “lixo” não faz sentido, já que não há problema algum em passar pela sala de visitas uma vez por dia com um saco plástico fechado. Nos resta a leitura metafórica da palavra lixo, aquela que indica que pessoas desempenhando funções diferentes deveriam usar portas diferentes. [caption id="attachment_23561" align="alignright" width="324"] Ilustração Thiago Balbi[/caption] Explicitado o preconceito materializado na existência das duas portas, cabe uma análise espacial e histórica mais elaborada do fenômeno. A configuração espacial do apartamento brasileiro contemporâneo é resultado de uma evolução relativamente simples de explicar. Até o final do século XIX, predominava nas residências urbanas uma forma de vida que podemos chamar, pedagogicamente, de mini casas-grandes. Na frente, junto à rua, ficavam os espaços nobres da casa: escritório e sala de estar. Mais para dentro, a sala de jantar quase sempre ligada ao banheiro (no singular, mesmo nas residências mais abastadas). Também ligados à sala de jantar se encontravam os quartos. O dos moços com uma porta ligando ao corredor de fundos, para que eles possam entrar e sair sem perturbar o repouso dos outros. O dos pais, quase sempre com janela para a rua e ligado ao quarto das moças, cuja porta abria quase sempre apenas para o quarto dos pais. No fundo da construção, ligado a um alpendre ou separado como um barracão, ficava a cozinha. E, no fundo do lote, outros barracões serviam de quarto para os empregados. Existiam, claro, todo tipo de variação em torno dessa organização espacial, mas via de regra o quarto dos pais e a sala de jantar ocupavam uma posição central na casa. Um lugar a partir do qual se exercia o controle de todos os demais, uma espécie de panóptico doméstico onde reinava o poder paterno. A cozinha era um dos poucos espaços não controlados por este poder paterno. Lugar feminino por natureza, a cozinha ficava sempre mais ao fundo. Havia na casa brasileira do início da república uma clara distinção entre espaços sociais na frente e espaços de serviço no fundo. Na tradição urbanística portuguesa que herdamos, o valor do lote urbano era dado por sua testada, sua largura junto a rua. Quanto mais metros de “rua” você tivesse mais rico era e maior a presença social da sua família. O fundo do lote valia muito pouco e por isso ali se instalavam os empregados. Na minha pesquisa nos arquivos da prefeitura de Belo Horizonte (cidade que já nasceu pré-moderna em 1897) fica evidente que ao longo dos anos 40 e 50 esta configuração vai mudando (LARA, 2008). A cozinha se move para mais perto da sala de jantar e surge o corredor para aumentar a privacidade dos quartos em relação às salas. Neste momento, a divisão que se fazia entre frente/social e fundos/serviço passa a ser transversal. De um lado da casa a varanda e o jardim ligados ao escritório e às salas, do outro lado do lote o portãozinho de serviço ligado ao tanque, o varal e a porta da cozinha. Essa divisão transversal vai posteriormente gerar os dois eixos do apartamento contemporâneo. Cada um com sua porta, uma almofadada e encerada, outra pintada de bege ou areia. Como duas células funcionais distintas, unidas por uma única porta de ligação entre a cozinha e as salas. A professora Sonia Roncador, minha colega aqui na Universidade do Texas, tem um trabalho interessantíssimo sobre a representação das domésticas na literatura brasileira. No século XIX, relembra Roncador, José Alencar escreveu a peça de teatro “Demônio Familiar”, na qual elabora a ideia de que os escravos “perturbam a paz doméstica” (RONCADOR, 2007:95). Mesmo o discurso abolicionista teria sido articulado em torno do “medo branco”, e decorre daí a ideia da necessária separação. Enquanto nos EUA a separação se deu pela segregação na escala urbana (negros e brancos morando em áreas separadas), a demanda brasileira por serviços domésticos a preços módicos forçou a necessidade de criar áreas marcadamente separadas. Até os anos 1950 essas áreas separadas ocorriam no piso térreo das residências: patrões (brancos) na frente e servidores (negros) no fundo. Mas como resolver a questão dos espaços separados quando o lucro imobiliário forçava a verticalização? As causas verdadeiras ou ficcionais da verticalização tratarei no próximo texto, mas voltemos ao Rio de Janeiro no final dos anos 1940, para ver dois modelos distintos de habitação multifamiliar vertical, conhecida popularmente como edifícios de apartamentos. Entre tantas experiências da época, destaco duas que ocuparam lugar central na história da Arquitetura brasileira: o conjunto Pedregulho, projetado por Affonso Reidy em 1946/47 e o Parque Guinle, projetado por Lucio Costa meses depois. No Pedregulho, Reidy, trabalhando para o poder público municipal, construiu um conjunto de apartamentos onde a célula familiar servia basicamente para dormir e outras funções privativas, com área variando entre 50 e 80 m2. Creche, lavanderia e cozinha coletivas cuidariam das outras necessidades familiares, bem como a escola anexa ao conjunto. Triste perceber que esse modelo seria abandonado na década seguinte, e a ideia estigmatizada como “utopia comunista”. No Parque Guinle, projetado quase ao mesmo tempo por Lucio Costa para a iniciativa privada, apartamentos de 300 m2 reproduzem em cada pavimento a espacialidade tradicional da casa brasileira. De um lado, as salas ligando ao corredor e aos quartos de dormir. Rente à fachada de fundos e completamente separado do resto do apartamento, uma longa faixa de serviços inclui a cozinha, a lavanderia e dois quartos de empregada. A separação entre os que servem e os que são servidos migrara sem dificuldades da casa para o edifício de apartamentos, um modelo que se tornou completamente hegemônico. Mesmo nas suas variações mais econômicas como apartamentos de dois quartos e quatro unidades por andar encontramos a separação marcada entre a área social e a área de serviço. As palavras, mesmo repetidas a exaustão e transformadas em modelos de linguagem mercadológica, ainda guardam muito do sentido original. Já pensaram que o “social” ser antítese do “serviço” significa que aqueles que trabalham não fazem parte da sociedade? Mas mesmo se mudarmos nos nomes, a exclusão continua encravada nos padrões espaciais nos afetando de forma homeopática e distraída e, por isso mesmo, perversa. Fernando Luiz Lara é arquiteto e professor associado da University of Texas at Austin, onde dirige atualmente o Brazil Center no Lozano Long Institute of Latin American Studies