A fome de ir para o mundo

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Há doze anos, o ator, dramaturgo, poeta, diretor, escritor... enfim, o múltiplo artista Gero Camilo foi de Fortaleza para São Paulo vivenciar novas experiências, mas reconhece no seu local de origem a descoberta de sua vocação. Para ele, ?a arte nasceu da experiência da pobreza?

Por Por Glauco Faria e Marilia Melhado   Fórum – Como veio a idéia de ir para São Paulo? Essa mudança está ligada ao início de sua carreira? Gero Camilo – Já conhecia São Paulo porque tinha vindo pra cá quando era criança. Meu pai é caminhoneiro e eu sempre vinha passar férias na casa da minha avó, lá em Osasco. Mas, um dia, minha mãe pediu que meu pai parasse de viajar e ele falou: “olha, para assentar vai ter que todo mundo ir para São Paulo, porque lá eu vou conseguir trabalhar só dentro da cidade e vocês vão ter uma vida melhor”. Minha mãe acreditou nisso e a família toda veio, de caminhão. Eu tinha sete, oito anos de idade. Éramos cinco irmãos, mais meu pai e minha mãe. Mas isso durou só dois anos, porque a vocação do meu pai era a estrada e voltamos para Fortaleza. Minha segunda vinda foi de 16 para 17 anos, já adolescente. Já estava participando do movimento estudantil, ligado à Teologia da Libertação, Pastoral, e já tinha outra cabeça. Vim para São Paulo passar férias, desta vez sozinho, e liguei pra minha mãe dizendo para mandar as minhas coisas que eu ia ficar aqui. Fiquei dois anos de novo, voltei pra Fortaleza com outro pensamento sobre a cidade. Achava – e acho – São Paulo a capital do capitalismo selvagem neste país e ter consciência sobre isso me distanciou dela naquele momento, de um tanto que dizia que jamais voltaria, jamais iria viver aqui. Só que aí comecei a me envolver com a arte e não seria mais o seminário o meu caminho, seria o teatro, seriam as artes de uma maneira geral. Recebi nas mãos um programa da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo e percebi que aquilo era tudo o que queria. Vim, prestei o vestibular, passei e fiquei. Agora estou há 12 anos. Fórum – No Ceará, você tinha contato com que tipo de expressões artísticas? Camilo – Desde criança, sempre tive contato com a arte. Mas pobre não consome cultura porque não pode comprar, então se faz pela necessidade. A arte nasce da própria experiência da pobreza, digamos assim. Acho que a minha realidade foi que me fez nascer para a arte e não o consumo dela. Eu não tinha dinheiro para ir ao cinema, não tinha dinheiro para ir ao teatro, não tinha dinheiro para comprar discos, nada... E hoje tento fazer música, teatro, cinema, ou seja, acabei fazendo pela própria necessidade. Fórum – No campo artístico você é bastante eclético. Com que tipo de arte você mais se identificava quando criança? Camilo – Tinha o carnaval, o maracatu... O repente, por exemplo, é uma coisa com a qual adorava brincar. Tinha um amigo e nós íamos a esses encontros de Pastoral, de comunidades eclesiais de base, e fazíamos paródias de músicas. As pessoas não acreditavam. Era um encontro de agricultores, de trabalhadores rurais e estava eu e mais um molequinho subindo em cima do palco e inventando repentes sobre a situação social brasileira. Fórum – Como era a visão que sua família tinha de São Paulo nessa época? Camilo – Era a visão da grande cidade, um lugar para onde as pessoas vão tentar sobreviver, acham que vão poder trabalhar decentemente, vão ganhar um salário e vencer na vida. Mas esse nunca foi o meu pensamento, graças a Deus. Não vim para São Paulo como um retirante, mas sim quando decidi de fato pelo meu caminho. Vim pela fome de ir para o mundo. Fórum – Quando você faz um filme como Narradores de Javé e conta uma história que tem muito a ver com parte do Nordeste, tem uma coisa de raiz, é diferenciado? Camilo – Tem, e isso é maravilhoso, já está registrado, tem o registro do corpo até. E fazer esses arquétipos para mim é um grande prazer. Muitas vezes me perguntam, em várias entrevistas, se eu não tenho medo de me tornar estereotipado, por só fazer personagem nordestino. É engraçado porque o outro é que está me colocando nesta situação. Eu só estou fazendo um homem que viveu ali naquele lugar, que tem naquela região como seu pão cultural. E eu sou só um homem, quando eu estou pensando naquele sujeito estou pensando basicamente no coração. O nexus, o plexus e o sexus deste sujeito. É alem do estereótipo que me atribuem. Fórum – E em relação a Fortaleza? Desde que você saiu de lá pela primeira vez, com oito anos, até hoje, o que mudou? O que você reconhece da sua infância, tem alguma coisa ali que você não reconhece mais? Camilo – A cidade mudou muito desde que eu saí. Uma parte dela virou quase um bolo confeitado, uma Miami, e isso eu estranho muitíssimo. Talvez pelo saudosismo, por ter andado por aquelas ruas, com coqueiros, areia e poesia, e agora ver asfalto, prostituição, em boa parte da orla... Fórum – A cidade teria perdido um pouco do seu encanto? Camilo – Nessa área especifica, sim. Eu morava longe do mar, embora vivesse numa cidade de praia. Só que eu sempre atravessava a cidade para ver o pôr-do-sol, ver o mar. Era lá que a boêmia acontecia, a poesia. Hoje não é mais assim, por conta do desenvolvimento. Fórum – Como você sentiu a questão do preconceito quando veio para São Paulo? Camilo – Sim, em muitos momentos, de muitas maneiras. Mas nunca me intimidou. Às vezes eles são velados, estão no olhar, por conta do jeito que você chega no lugar, ou da forma como se veste. Tive essa sorte de entrar em uma universidade, de vir para cá e cair dentro de uma escola de arte onde necessariamente se tem que aceitar a diversidade. Não tem como lutar contra a diversidade em uma universidade pública, têm que conviver o mais rico e o mais pobre dentro do mesmo local, o Sul e o Nordeste no mesmo grau. Tem-se uma aceitação, mas mesmo assim é difícil. Vai-se engolindo goela abaixo, porque tem que se romper com isso. Se eu tivesse caído de cara sem ter o vínculo com uma classe, um clã de alunos que me protegia, sofreria muito mais. A cidade universitária da USP é uma pequena cidade. Saí de Fortaleza e vim para outra pequena fortaleza [risos]. Fórum – Nesse sentido, você acha que a eleição do Lula, por conta de sua trajetória, representa um avanço, pelo menos no campo simbólico? Camilo – Vejo sim, mas pelo conjunto mesmo, por mais que estejamos em uma crise de pensamento político. Mas, de qualquer maneira, a trajetória dele e a nossa, porque eu me reconheço nesta trajetória, foi muito importante para o país, ela muda a nossa história. Tanto que estamos agora sem saber para onde ir, porque se as coisas estiverem do mesmo jeito a gente saberia que continuaríamos indo para o buraco. Só que o olhar se inverteu com a conquista de Lula, um operário nordestino com pensamento de esquerda, de quatro dedos, porque sempre se fala dos quatro dedos como piada. Mas talvez se tenha que assimilar os quatro dedos como mais um elemento. O Lula representa esse novo momento. Fórum – Você consegue se reconhecer nele? Camilo – É, mas não me reconheço no Antonio Carlos Magalhães, pelo contrário, me desconheço. Porque tem que ter sensibilidade para entender política, senão a pessoa vai se tornar um regionalista radical e isso não interessa. O mundo é de todos. Fórum – O que você acha que o Nordeste tem e que não é reconhecido no eixo Sul-Sudeste? Camilo – São muitas coisas, mas principalmente a história. Nas escolas, não se estuda a história do Nordeste. Aqui essas informações são diluídas, sabem apenas que existiu um padre Cícero, um Lampião... Não se compreende a riqueza do nosso passado. Acho que cada estado deveria priorizar o ensino da história do local, para que as pessoas tenham contato com suas raízes. F