A guerra civil brasileira dos feminicídios

Apenas em 2010, houve um feminicídio a cada hora, 57 minutos e 43 segundos, ou 4,5 homicídios para cada cem mil mulheres. Para 2013, a projeção no Brasil que esse número chegue a 4.717 mortes

Mãe de uma jovem grávida assassinada em Pernambuco participa de protesto pelo direito das brasileiras viverem livres de violência (Foto Emanuela Castro/IPS)
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Apenas em 2010, houve um feminicídio a cada hora, 57 minutos e 43 segundos, ou 4,5 homicídios para cada cem mil mulheres. Para 2013, a projeção no Brasil que esse número chegue a 4.717 mortes Por Fabíola Ortiz, da IPS/Envolverde Os feminicídios no Brasil atingem cifras comparáveis com uma guerra civil. Nos últimos dez anos foram assassinadas no país 40 mil mulheres, “apenas por serem mulheres”, denunciam ativistas que lutam contra a violência de gênero. A cada ano, entre 25 deste mês e 10 de dezembro, a comunidade internacional e as organizações de defesa dos direitos das mulheres realizam 16 dias de Ativismo Contra a Violência Dirigida às Mulheres. As duas semanas de luta são uma iniciativa do Centro para a Liderança Global das Mulheres, que em 1991 pediu que a esse tema fosse dedicado o período entre o Dia Mundial da Luta Contra a Violência Dirigida à Mulher e o Dia Mundial dos Direitos Humanos. Este ano, no Brasil as jornadas ganham maior relevância porque acontecerá, nos dias 3 e 4 de dezembro, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, um encontro para elaborar o Informe Alternativo da Sociedade Civil a ser apresentado ao Comitê da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw), que se reunirá em fevereiro em Genebra, na Suíça. [caption id="attachment_37027" align="alignleft" width="350"] Mãe de uma jovem grávida assassinada em Pernambuco participa de protesto pelo direito das brasileiras viverem livres de violência (Foto Emanuela Castro/IPS)[/caption] O chamado “informe sombra” está destinado a apoiar a análise do Comitê da Cedaw sobre as ações do governo brasileiro para enfrentar o tráfico e melhorar a saúde das mulheres. “Esses dias de ativismo dão maior visibilidade às agendas dos direitos de gênero. A violência contra as mulheres saiu de baixo da mesa, e a sociedade assume que é uma realidade e não uma invenção”, ressaltou à IPS a coordenadora no Brasil do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), Ingrid Leão. Estudo feito pelo Instituto Avante Brasil deu como resultado que, entre 2001 e 2010, foram assassinadas 40 mil mulheres. Apenas em 2010, houve um feminicídio a cada hora, 57 minutos e 43 segundos, o que se traduziu no fato de terem ocorrido 4,5 homicídios para cada cem mil mulheres. Para 2013, a projeção no Brasil é de 4.717 feminicídios. Mas a violência contra a mulher é muito mais, recordou Leão, citando outras expressões como a simbólica, a psicológica, a econômica ou a sexual. Contra todas elas existe, desde 2006, uma lei que tipifica esse tipo de crime e estabelece suas penas. É a Lei Maria da Penha, em reconhecimento a esta farmacêutica maltratada por seu marido, que tentou assassiná-la duas vezes em 1983, a primeira com disparos que a deixaram paraplégica. Com apoio do Cladem, Maria da Penha entrou com denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que funciona na órbita da Organização de Estados Americanos. Foi o primeiro caso de violência de gênero tratado por essa instância, que terminou, em 2001, com o Estado brasileiro responsabilizado por negligência. Além da Cedaw, adotada em 1979 pelos membros da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil também assinou em 1994 a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, por ter sido aprovada na capital paraense. “Como ainda podemos conviver com esse nível de violência contra as mulheres, apesar de quase 40 anos de denúncias?”, perguntou a especialista Télia Negrão, da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. A seu ver, não é possível estabelecer um perfil das mulheres maltratadas, porque o problema envolve todas as classes sociais, raças e idades. “Todas as mulheres, apenas por sua condição de gênero, são vulneráveis e objeto de violência”, opinou à IPS. Negrão, também coordenadora do Coletivo Feminino Plural, destacou que o grau de vulnerabilidade aumenta quando se soma a desigualdade social, a pobreza, a baixa escolaridade, as menores oportunidades de trabalho, renda baixa e residência em áreas com elevada violência. “Essas mulheres têm poucos instrumentos sociais aos quais recorrer. Sem algum grau de autonomia, é mais difícil para a mulher sair de sua situação de violência”, admitiu. Em abril deste ano a presidente Dilma Rousseff sancionou uma lei que penaliza a violência sexual. A lei obriga todos os centros de saúde a atender as vítimas e dar tratamento contra as doenças sexualmente transmissíveis e o vírus HIV, causador da aids. Também deve ser fornecida às vítimas a pílula anticoncepcional de emergência, e, em caso de gravidez, as vítimas têm o direito de realizar um aborto. “A cidadania é a realização dos direitos humanos. Conseguimos muito, mas ainda é pouco”, disse Negrão, que desde 1985 participa do monitoramento do cumprimento das convenções internacionais pelo Brasil. No informe sombra para a Cedaw “incluiremos fatos concretos (de discriminação) que o Estado brasileiro não vai incorporar, porque a nenhum governo interessa se expor no plano internacional”, acrescentou. Em sua reunião de 2012, o Comitê da Cedaw insistiu em dois pontos: tráfico de mulheres, para o qual pediu medidas concretas, e a necessidade de uma legislação unificada quanto à saúde das mulheres. Em um balanço divulgado no começo de outubro, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência, destacou que as denúncias de tráfico aumentaram 1.547% durante o primeiro trimestre do ano, em comparação com igual período de 2012. Entre janeiro e junho a linha telefônica 180 de atenção às vítimas recebeu 263 denúncias, das quais 173 referentes a casos internacionais e as restantes locais. Em 34% deles havia risco de morte para a vítima. “A velocidade das medidas relacionadas com o tráfico são muito lentas e as respostas também. Não temos atualmente capacidade de medir a magnitude do problema”, denunciou Negrão. Estela Scandola, que integra o Comitê Nacional de Luta Contra o Tráfico de Pessoas, como representante da sociedade civil, afirmou à IPS que o país não conseguiu pôr em prática uma política de Estado para enfrentar esse crime. “Contamos com uma política do governo mediante um decreto. Precisamos da pressão externa. O tráfico de pessoas é em si mesmo uma denúncia sobre as falhas do processo de desenvolvimento de um país”, afirmou. Para Scandola, a sociedade civil tem o papel de “denunciar essas fraturas” do Estado brasileiro na instrumentação de políticas apropriadas contra o crime. “A impressão é que há lentidão para que as coisas aconteçam. A burocracia não tem fim”, criticou, ao se referir à demora na implantação do Segundo Plano Nacional de Luta Contra o Tráfico de Pessoas e da própria criação do Comitê Nacional para atender o problema, paralisada por falta de fundos. Scandola adiantou que o informe que a sociedade civil apresentará ao Comitê da Cedaw indicará a ausência de uma política adequada. Para ela, as autoridades têm como se antecipar e prevenir o tráfico onde há maiores possibilidades de o crime se propagar, com nas grandes obras de infraestrutura que são desenvolvidas no país e que atraem grandes contingentes de trabalhadores.