A história da Nicarágua recomeça

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Líder da revolução sandinista, Daniel Ortega volta à presidência em um país muito diferente daquele de 1979, quando derrubou a ditadura somozista. Mas ele também está mudado

Por Por Marco Piva   Quando os sandinistas entraram ova¬¬cionados pela população em Manágua, em 19 de julho de 1979, o relógio da catedral em ruínas nem se mexeu. Pudera. Seus ponteiros estavam travados desde o terremoto de 1972, que praticamente engoliu a capital nicaragüense deixando um rastro de destruição, sofrimento e morte. As estimativas indicam que pelo menos 50 mil pessoas morreram naquela noite de horror. Sete anos depois e mais 50 mil mortos pela guerra, a impressão que se tinha é que os ponteiros haviam se movido alguns segundos mais, numa espécie de horário de verão da história. Seus autores formavam um grupo não muito numeroso de estudantes e camponeses. Aglutinados na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), eles festejavam um feito digno de um épico do cinema: a derrubada de uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. Durante 45 anos a família Somoza governou o país com mão de ferro e o aval de Washington. Ao menor sinal de rebelião, a repressão agia sem muita preocupação com o que o mundo pudesse achar daquilo. Foi assim que Somoza surrupiou boa parte da ajuda humanitária aos desabrigados do terremoto de 1972. Chegou a negociar até o sangue doado pela comunidade internacional. Sem opção pacífica, os sandinistas foram à luta de armas nas mãos, resgatando uma tradição iniciada na década de 1930 do século passado por Augusto César Sandino, um general nacionalista que se insurgiu contra a presença de tropas norte-americanas no país. Levado a um jantar de reconciliação, não conseguiu terminar a sobremesa. O anfitrião, Somoza pai, criador da dinastia e general formado nos Estados Unidos, tramou o assassinato de Sandino ali mesmo, na sala de jantar. Fisicamente desaparecido, sua figura virou lenda e suas histórias de coragem e luta entusiasmaram os estudantes Carlos Fonseca Amador e Tomás Borge Martinez. Juntos, eles formaram, em 1963, a Frente Sandinista de Libertação Nacional. E foi entre combates heróicos, com revólveres e espingardas enferrujadas, e a solidariedade internacional, esta sim com recursos materiais mais expressivos, que os sandinistas enfrentaram as tropas bem armadas de Somoza. A guerrilha durou 16 anos. A guerra propriamente dita, com combates nas ruas e bombardeios aéreos, durou bem menos, pouco mais de dois anos. É que o ditador já não contava sequer com a simpatia da elite conservadora que o havia acompanhado durante décadas. Um descuido com os aliados foi fatal para Somoza. Um opositor moderado, o jornalista Pedro Joaquín Chamorro, foi assassinado a tiros no centro de Manágua em janeiro de 1978. O fato se converteu na gota d’água para uma solução pacífica pelos de cima e conferiu legitimidade total aos guerrilheiros da FSLN. Daí em diante a tarefa consistiu em ampliar as alianças com setores da burguesia local e obter apoio diplomático. Nas ruas, os combates. Na Costa Rica, sede provisória dos futuros líderes do país, a costura internacional. Em meio a isso, mais um brutal assassinato selou o destino de Somoza. Soldados leais ao ditador mataram a sangue frio um jornalista norte-americano que, de joelhos, implorava clemência. Tudo isso devidamente filmado e veiculado pelo mundo todo. Nem Jimmy Carter resistiu. Passou a apoiar os sandinistas desde que fosse constituída uma Junta de Governo de Reconstrução Nacional com a participação de todos os opositores da ditadura. Com Somoza na lona, não demoraram em aparecer opositores. Para os sandinistas, isto não foi problema. Afinal, a população percebia claramente quem sempre estivera do seu lado. Agora, na cena principal pelas ruas de Manágua, eles eram os protagonistas. Estavam lá, com lágrimas nos olhos, feridos, arranhados, entoando os hinos da Nicarágua e da FSLN. Amontoados em tanques tomados do exército e em caminhonetes transformadas em veículos militares, bradavam as armas vestidos em uniformes sujos e rasgados, resultado de meses de lutas e ziguezagues pelas montanhas. Entre aqueles jovens felizes que saudavam o povo, um se destacava: Daniel Ortega Saavedra. A VIDA NÃO FOI FÁCIL para os irmãos Ortega. Nascidos pobres em uma família camponesa, trabalhavam duro na roça durante o dia. À noite, à luz de velas, Daniel e seus irmãos Camilo e Humberto estudavam por conta própria. Em contato com lideranças camponesas da região, conheceram a história de Sandino, no fundo um retrato de sua própria história. Aos 15 anos, Daniel já era um dos perros sandinistas. Embora meio tímido, tinha uma vocação natural para a liderança. Em pouco tempo era membro de uma das células revolucionárias e fazia treinamento de guerrilha. Levou os irmãos junto, apesar dos protestos da mãe. Camilo morreria em uma emboscada do exército somozista, em 1977. Humberto se tornaria o primeiro comandante-em-chefe do novo Exército Popular Sandinista. E Daniel seria o principal líder do país ao se transformar no coordenador-geral da Junta de Governo de Reconstrução Nacional, formada por cinco integrantes (dois sandinistas, dois conservadores e um liberal). Naquele 19 de julho de 1979, a euforia se misturava à esperança. Para Daniel, era apenas o começo de um longo e penoso desafio: transformar a realidade de seu país, abrindo as portas para a justiça social e a democracia popular. OS PRIMEIROS TEMPOS da Revolução Popular Sandinista foram de muita dedicação e consenso. Parecia que todos faziam tudo. Até concurso de poesia havia no novo exército. A educação e a reforma agrária nas terras dos latifundiários eram as prioridades. Uma campanha nacional de alfabetização, inspirada em Paulo Freire, levou milhares de jovens da cidade a encontrar uma outra face do país na zona rural. A guerra havia oficialmente terminado, mas os treinamentos continuavam. A paz ainda era precária. Jovens e adolescentes de ambos os sexos dividiam as mesmas unidades em defesa do país. Acuados, militares e civis somozistas tinham se dividido em dois destinos: Miami, para os endinheirados, e Honduras, para quem fugiu às pressas apenas com a roupa do corpo e um fuzil no braço. Os tempos mudavam na Nicarágua, mas também mudavam nos Estados Unidos com o início da era Reagan. Assim que assumiu, o presidente dos Estados Unidos declarou a revolução inimiga da democracia, aproveitando os primeiros atritos entre os sandinistas e representantes da burguesia no governo. E começou a namorar o perigo, dando armas e recursos aos ex-soldados do antigo regime instalados em Honduras. Para completar, mercenários foram contratados para realizar atos de sabotagem no interior do país. Hospitais, escolas, portos, nada escapava da sede de vingança dos derrotados. As vítimas fatais somavam dezenas, depois centenas, até chegar a milhares apenas cinco anos depois da vitória sandinista. A resposta foi o endurecimento dos sandinistas com a convocação obrigatória de jovens para o serviço militar “em defesa da pátria”. As mães entendiam esse objetivo até o momento em que oficiais do exército batiam à sua porta para informar o que nenhuma mãe quer ouvir. Os enterros se multiplicavam em todo o país. Eram cortejos coletivos, carregados de simbolismo heróico. Mas isso já não bastava. A economia nacional, pobre por natureza, estava ainda mais cambaleante. A ajuda internacional, farta no início, dava os primeiros sinais de esgotamento. O modelo de gestão adotado – centralizador e burocrático – dava margem para que praticamente tudo girasse em torno da administração pública. Vieram os grandes projetos de Cuba e da antiga União Soviética, abandonados anos depois pela escassez de recursos. De onde tirar esperanças para seguir adiante em meio a um quadro de guerra permanente? Na primeira eleição, em 1984, Daniel Ortega venceu com facilidade. Observadores internacionais atestaram que as eleições foram limpas, mas o boicote da oposição alinhada com Washington colocou o pleito sob suspeita. O primeiro mandato de Ortega conquistado nas urnas nascia marcado pelo conflito. A Casa Branca, com Reagan em segundo mandato, recrudesceu suas ações contra a Nicarágua, realizando operações clandestinas que somente anos mais tarde chegariam ao conhecimento público. O escândalo Irã-Contras é um exemplo. Chefiado pelo coronel Oliver North, tinha como objetivo o fornecimento de armas aos anti-sandinistas em Honduras. As armas, quem diria!, eram compradas de outro inimigo, o Irã, via mercado negro. Até que Daniel Ortega e a FSLN resistiram a uma série de atentados, bloqueios e caos econômico. Mas isto não foi suficiente para impedir que, em 1990, em nova rodada eleitoral, a oposição conservadora assumisse a presidência e boa parte do congresso. Violeta Chamorro, viúva de Pedro Joaquín Chamorro, foi eleita com a promessa de paz e de uma relação amistosa com Washington. Era tudo o que a maioria dos nicaragüenses queria naquele momento. A OPOSIÇÃO ERA um papel incômodo para quem, afinal de contas, tinha posto abaixo uma ditadura com o sacrifício de muitas vidas militantes. A FSLN precisava se reorganizar internamente e redefinir suas linhas de atuação pública. A transição no comando do exército foi a que mais cortou na carne. Como abandonar a direção de um exército popular depois de anos de luta? O acordo foi manter Humberto Ortega na chefia da instituição por todo o mandato de Violeta Chamorro, trocar o nome de Exército Popular Sandinista para Exército Nacional e promover a substituição paulatina de comandantes sandinistas por militares leais aos conservadores. Na economia, a diminuição do papel do Estado, a devolução progressiva de bens confiscados na revolução e maior aproximação com os EUA. Em palavras da década de 1990, embarcar na onda neoliberal. E assim foi nas duas eleições presidenciais seguintes, também vencidas por conservadores. Com três derrotas consecutivas nas costas, também foi um tempo – um longo tempo de 16 anos – para um ajuste de contas interno. A FSLN sempre havia funcionado na base de uma direção colegiada. Desde a revolta armada, três tendências predominavam: os terceiristas, de Daniel Ortega; a Guerra Popular Prolongada, de Tomás Borge; e a Insurrecional, de Luis Carrión. Nove comandantes, três para cada tendência. Com decisões tomadas sempre por consenso. As dificuldades para se retomar o poder foram reacendendo antigas divergências. A maior delas colocou em pauta uma questão sensível para a esquerda: a falta de ética. Numa palavra mais clara nos dias de hoje: corrupção. Alguns dirigentes foram acusados por outros de apropriação de recursos da FSLN e de manter como propriedade particular as antigas mansões tomadas de somozistas. Viagens desnecessárias ao exterior, amantes e até um caso de assédio contra a filha adotiva pesaram especialmente contra Daniel Ortega. O que isso tem ou não de verdade talvez nunca se saiba. Afinal, as acusações foram amplificadas pela imprensa conservadora, interessada em dividir para governar, mais uma vez. Na quarta disputa, Ortega se apresentou diferente da antiga imagem de guerrilheiro. O que mudou? Dependendo do ângulo que se queira ver, quem sabe nem mudança foi. Ortega, ele mesmo, prefere a palavra “evolução”. Não nega Sandino, mas admite outros companheiros na história. Um deles, o vice-presidente eleito, Jaime Morales, foi chefe dos contras. Argumento: a unidade nacional para que a guerra nunca mais volte à Nicarágua. Não nega o socialismo, mas prefere falar em democracia e parceria com a iniciativa privada. Argumento: o Estado sozinho não é capaz de promover o desenvolvimento e o mundo globalizado exige a ampliação de mercados. Mantém a amizade com Fidel Castro e recebe bem Hugo Chávez, mas cita Lula nos discursos. Argumento: convencimento pelo diálogo e pela paciência. Ao vermelho e negro, as cores do sandinismo, se juntaram o azul e o branco, as cores da bandeira nacional. Argumento: é preciso reconstruir um país que depois de 16 anos de neoliberalismo voltou a ser o segundo mais pobre do continente. Essa posição, com certeza, nunca esteve na pauta de esperança e de alegria daqueles primeiros tempos da Revolução Sandinista. Os cabelos escasseiam e esbranquiçaram. O uniforme desapareceu. Os gestos são mais lentos. Mas, a determinação de Daniel Ortega prevaleceu. De volta ao governo, a FSLN tem o desafio de colocar a Nicarágua novamente no tabuleiro internacional. F Teste da democracia A vitória de Daniel Ortega será um grande teste para a democracia representativa na Nicarágua. Eleito com 38,07% dos votos, o novo presidente terá que negociar a aprovação de suas propostas com a direita, que se apresentou dividida. O banqueiro Eduardo Montealegre, da Aliança Liberal Nicaragüense (ALN), foi o candidato abertamente apoiado por Washington. Obteve 29% dos votos e ficou em segundo lugar. José Rizzo, do Partido Liberal Constitucionalista (PLC), alcançou 26,21%. Somados, conquistaram mais de 55% do eleitorado. Pela esquerda, o Movimento de Renovação Sandinista (MRS), em seu primeiro teste eleitoral, abocanhou 6,44% dos votos com seu candidato a presidente Edmundo Jarquín. Dissidência da Frente Sandinista que aglutinou na campanha eleitoral outros pequenos grupos políticos como o Partido Verde e o Movimento de Resgate do Sandinismo, ele pautou seu discurso numa espécie de “volta às origens da revolução” e na defesa da ética. Éden Pastora, que ficou mundialmente conhecido em 1978 ao liderar a ocupação do Palácio Nacional somozista, assumindo o codinome de “Comandante Zero”, teve uma votação insignificante: 0,27%. Pela lei eleitoral nicaragüense, ganha a eleição o candidato que obtiver mais de 40% dos votos ou 35% destes, com uma vantagem de 5% sobre o segundo colocado. Na prática, uma lei sob medida para Ortega e negociada com o ex-presidente liberal, Arnoldo Alemán, já no último ano de seu mandato (1995-2000). Enrique Bolaños, do Partido Liberal Constitucionalista, que sucedeu Alemán, foi contra a fórmula, mas nada fez para mudá-la. Dividiu com a Frente Sandinista a ação legislativa no período 2001-2006 e manteve um bipartidarismo de conveniência. Este, aliás, foi o motivo que levou à divisão da direita, com o lançamento de Eduardo Montealegre. E será ali, na Assembléia Nacional, que Daniel Ortega viverá o primeiro grande desafio para colocar em prática suas propostas de campanha, especialmente as medidas necessárias para combater a pobreza que afeta boa parte dos mais de cinco milhões de nicaragüenses. A Frente Sandinista elegeu 38 deputados; a ALN, 25; o PLC, 22; e o MRS, 5. Curiosamente, a lei eleitoral também confere uma vaga de deputado ao segundo colocado da disputa presidencial (no caso, Eduardo Montealegre) e ao presidente que deixa o cargo, somando 92 cadeiras. A pergunta é: com quem Ortega vai se aliar para governar? Seu discurso já não lembra os primeiros tempos da Revolução Sandinista, quando o mundo vivia o ocaso da Guerra Fria. Ortega se mostra como um líder que quer governar para todos, respeitando as regras da economia de mercado e o jogo político institucional. No entanto, a crise com os Estados Unidos na década de 1980, que fortaleceu os vínculos dos sandinistas com Cuba e a ex-União Soviética, ainda é um fantasma a rondar a Casa Branca, que destacou seu embaixador em Manágua para atuar em favor de Eduardo Montealegre. Até mesmo o coronel reformado Oliver North, um dos operadores da conexão “Irã-Contras” esteve por lá, reavivando o famoso escândalo da compra de armas na era Reagan e atiçando o temor de um passado de conflito. O que não há dúvida é de que este segundo mandato de Ortega na Nicarágua será significativamente diferente do primeiro. O período entre 1985 e 1990 foi marcado pelo acirramento das tensões com o governo norte-americano, o que colocou os sandinistas num beco sem saída com o desmoronamento do campo socialista. Para Jaime Wheelock Román, ex-comandante da Frente Sandinista e atualmente um economista independente, “(a vitória de Ortega) não é a oportunidade de completar uma obra revolucionária inconclusa, mas sim a continuidade de uma administração civil que traz, junto com a faixa presidencial, um marco institucional e legal e uma dinâmica econômica com limites e compromissos fixados”. Sergio Ramirez Mercado, um ex-aliado de Ortega que foi vice-presidente no primeiro mandato, não vê perigo algum na volta dos sandinistas ao governo, porque a Nicarágua já não tem a mesma importância geopolítica da década de 80. Ele alerta, porém, que “escolher entre o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, que já está em andamento, e a Alternativa Bolivariana das Américas, de Hugo Chávez, que é apenas um desejo em torno do petróleo, pode ser uma grande fonte de conflito”. Ramírez descreve Ortega como um “personagem polarizante” que deve cuidar para dissipar os temores em relação ao seu futuro governo. A comunidade nicaragüense no exterior que o diga. Confirmada a vitória do líder sandinista, muitos “nicas” já manifestam preocupação com o futuro. Falam em expropriações, invasões de terras, perseguição e a volta da guerra, numa retórica típica de quem acompanha a vida nacional de longe e com a mesma motivação que levou milhares de somozistas a deixarem o país depois da revolução. O articulista Josué Rodríguez Jaenss, do diário conservador La Prensa, é objetivo: a vitória de Ortega foi um balde de água fria. Fazendo coro à comunidade nicaragüense no exterior (cerca de 1 milhão de pessoas), o secretário de Estado para Assuntos Hemisféricos dos Estados Unidos, Thomas Shannon, deu uma declaração ambígua ao reconhecer a vitória de Ortega: “Nosso país mantém um compromisso com a democracia e respeitará a decisão e a vontade do povo nicaragüense. Vamos fazer o possível para ter uma relação positiva com o novo governo”. Dezesseis anos na oposição e problemas de divisão interna são dois motivos suficientes para se ter um novo olhar sobre a realidade. Objetivamente, será a primeira vez que a Frente Sandinista governará o país com base nos princípios da democracia representativa que, afinal, com erros e acertos, ajudou a construir com a revolução de 1979.