A proposta de PASSE LIVRE no transporte público é justa, coerente e viável

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Houve um tempo em que nos permitíamos pensar para além dos interesses do Capital. Primeiro o bem comum, o interesse público, depois a análise da realidade e a busca de soluções. Isso não era utopia, era busca da realização de sonhos, ou melhor, era busca de justiça e compromisso social. Houve um tempo em que era desta maneira que a esquerda definia políticas para o transporte público e não só. Em 1988 o PT ganhou eleições em diversas capitais (entre as quais, São Paulo) e cidades grandes do interior; eu era filiado ao Partido dos Trabalhadores e, além de candidato a vereador, fui um dos coordenadores da vitoriosa campanha de Jacó Bittar, em Campinas. Acreditem, gastamos apenas US$ 35 mil na campanha eleitoral, feita toda ela com participação espontânea e colaborativa (até as camisetas e placas de campanha eram vendidas aos apoiadores). Ao assumir a prefeitura o prefeito me convidou para trabalhar como coordenador de gabinete e depois como secretário de governo, eu era bem jovem. Agora, era transformar sonhos em realidade, idéias em prática. Transformamos. O transporte público na cidade estava arrasado, controlado por seis empresas de ônibus que disponibilizavam apenas seiscentos veículos para uma cidade com 850.000 habitantes. Os ônibus eram velhos, sujos e barulhentos, a tarifa defasada, os empresários truculentos. O Brasil vivia mais um congelamento de preços, o Plano Mailson, e que não logrou êxito, como os tantos outros congelamentos à época do governo Sarney (sim, o mesmo que até a pouco seguia como presidente do Senado, mandando e desmandando na política). Mas não podíamos reajustar a tarifa, pois não seria justo com os trabalhadores, que estavam com salários congelados. Como pressão pelo reajuste os empresários retiravam ônibus das linhas, prestando um serviço a cada dia pior. Decidimos intervir no comando das empresas (conforme permitido em contratos de concessão pública) e escolhemos a que prestava o pior serviço, de propriedade do presidente da associação de empresários de ônibus. Foi uma operação de guerra. Com isso conseguimos melhorar um pouco a qualidade do transporte, além de conhecer melhor a composição de custos. Ao final negociamos a devolução da gestão da empresa e firmamos um pacto para melhora dos serviços. Durou pouco. Os empresários seguiram com a pressão por reajuste e o secretário de transportes, um professor da Unicamp, muito respeitado no PT, concordou com o aumento na tarifa. E o diretório local do partido apoiou a medida, mesmo estando o Brasil sob congelamento de preços. Lembro-me bem da data, pois estava sob licença paternidade, acompanhando o nascimento de minha primeira filha, foi em 31 de julho de 1989. Não concordava em ceder àquela pressão dos empresários e interrompi minha licença. Após conversa com o prefeito, ele revogou o reajuste. O secretário de transportes, em protesto, pede demissão junto com toda sua equipe e publica uma carta contra o desmando do prefeito (voltar atrás no reajuste da tarifa de ônibus). O diretório local do PT sai em apoio ao secretário, protestando contra o abuso do prefeito Jacó Bittar, que revogou o reajuste da tarifa (isso mesmo). Em seguida, a quase totalidade dos secretários, todos indicados pelo PT, pedem demissão do cargo em solidariedade ao secretário de transportes e, junto com eles, todos os demais petistas que ocupavam cargos em comissão, creio que uns 200 (isso mesmo). Apenas eu, o chefe de gabinete do prefeito e mais dois ou três dirigentes de autarquia e sem filiação partidária, permaneceram no governo (isso mesmo). Foi uma crise, como se pode imaginar. Os empresários, aproveitando-se da situação de desgoverno, promoveram um locaute nos transportes. De um dia para o outro, Campinas fica sem transporte coletivo (isso mesmo). E, ao invés de acontecer uma trégua na disputa política entre prefeito e diretório municipal do PT e secretários, o embate se agravou. Nem mais aconteciam reuniões de diretório, mas assembléias partidárias, com centenas de pessoas. Pauta: o prefeito não respeitava comando do diretório municipal do partido (que defendia aumento da tarifa de ônibus, mesmo em situação de congelamento de preços), os secretários de todas as pastas exigiam maior autonomia de gestão (pois se o prefeito havia revogado uma decisão do secretário dos transportes, poderia agir da mesma forma com outros) e volta do secretário dos transportes para que o mesmo pudesse reajustar a tarifa e reabrir negociação com os empresários que estavam praticando locaute. Passados mais de vinte anos é até difícil acreditar em tamanha insensatez, mas foi o que aconteceu; eu estava lá e no olho do furacão. Como secretário de governo, cabia a mim representar o prefeito nas assembléias partidárias; lembro-me que um dia, antes de ir a mais uma interminável assembléia, resolvi passar antes no terminal central de ônibus. Um caos; havia poucos ônibus disponíveis na cidade (menos de 20% da frota) e mais de 10.000 pessoas amontoadas, cansadas e furiosas a espera deles. Tive que faltar à reunião para dar conta do transporte destas pessoas, que chegavam em quantidade cada vez maior.  A solução foi substituir trajetos tradicionais por linhas radiais, nas sete principais avenidas da cidade, de modo que a concentração de pessoas no terminal central fosse rapidamente eliminada. Por sorte não houve maiores problemas e as pessoas compreenderam que era melhor seguir para um local mais próximo possível de suas casas, mesmo que tendo que andar um pouco mais, que ficar aguardando ônibus em trajetos normais. Claro que depois tive que enfrentar as críticas por haver desrespeitado o partido, faltando em uma reunião tão importante, mas cumpri o meu dever como gestor público. Nos dias seguintes coube a mim negociar o apoio do governo do estado de São Paulo (novo motivo para crítica política, pois o governador era Orestes Quércia e o PT local não admitia negociação com ele), que cedeu 100 ônibus; com o governo da prefeita Erundina, que também cedeu 100 ônibus da CMTC (à época São Paulo contava com companhia municipal de transportes); e com o exército na cidade, para que cedesse alojamento para os cobradores e motoristas destes ônibus (de repente, eu, que alguns anos antes fazia passeatas contra militares, estava tendo que pedir apoio a eles – e foi uma boa negociação, bastante respeitosa e eficaz, diga-se). Em paralelo o prefeito negociava com o empresariado da cidade e conseguiu construir uma proposta de tarifa diferenciada (em maior valor que a tarifa paga na catraca) para o vale-transporte pago pelos empresários. E a crise no transporte foi sendo debelada, sem que houvesse imposição de aumento para a população. Foi assim que fui apresentado ao tema política pública de transporte. No entanto, todo esse episódio gerou uma fissura na relação entre prefeito e PT, ocasionando na saída do prefeito e parte de sua equipe (entre eles, eu) do partido. Por que relembrei esta história? Porque foi exatamente a partir da vivência de uma crise de graves proporções (como a que pode acontecer em São Paulo, com o provável crescimento do movimento em protesto contra o aumento da tarifa do transporte público), que ousamos pensar além da “caixa” e praticar propostas inovadoras para o transporte público, sempre pensando no bem comum. As dificuldades de relacionamento entre a prefeita Luiza Erundina e o PT em São Paulo também não foram pequenas e, com o tempo, ela também saiu do partido. Mas foi exatamente neste momento de crise e experimentação nos primeiros governos do PT que foram gestadas ideias como o Passe Livre para o Transporte Público. O conceito parte da idéia de que a mobilidade urbana é, ao mesmo tempo, um direito inalienável, garantido pela Constituição a todos os cidadãos (o direito de ir e vir), como também um insumo da produção, que depende da circulação para o transporte de trabalhadores e consumidores (neste aspecto, a lógica do Passe Livre se insere em uma lógica liberal, de fomento à produção e recordo-me que a cidade norteamericana de Saint Paul, no estado de Minnessota, implementava o Passe Livre com bastante sucesso). A combinação destes dois conceitos (transporte público como direito e como insumo) levou à formulação da proposta do Passe Livre. Primeira pergunta que fizemos: quem deve arcar com os custos do transporte público, quem o utiliza ou quem dele se beneficia? No sistema atual o custo é arcado, quase exclusivamente (pois há combinação com subsídio do orçamento municipal, ao menos na cidade de São Paulo), pelo usuário. Nem é correto dizer que há financiamento privado do transporte público, pois na composição de custos da tarifa está embutida a amortização de todas as despesas (custos operacionais, amortização de capital e lucro, além de impostos). Ou seja, quanto menos renda e quanto mais a pessoa depende do transporte público, mais responsabilidade ela tem sobre ele. Não é justo e esta lógica é altamente regressiva. Foi o que consideramos (prefeituras de São Paulo e Campinas) naquela época. Em São Paulo não houve força política para implantar a proposta (Passe Livre custeado com Taxa e Fundo de Transporte Público), mas em Campinas conseguimos avançar em algumas medidas: Passe Passeio: Em meio à negociação com os empresários de ônibus percebemos que eles sempre encontravam uma maneira de não pagar o ISS (imposto municipal sobre serviços) que, no entanto, estava embutido no valor da tarifa (5%). Como solução, retiramos o imposto e em contrapartida as empresas deveriam fornecer dois dias de Passe Livre, aos domingos, fomentando o lazer na cidade. Foi um sucesso! Passe Vacina: A mesma lógica do Passe Passeio, aplicada aos dias de vacinação; Bola Azul: Linha Circular contornando o centro da cidade, como em um anel, pelas avenidas principais, igualmente com Passe Livre, permitindo que as pessoas deixassem seus veículos estacionados no entorno do centro da cidade e descongestionando a área central. Esta linha era operada pela empresa municipal de transportes, que foi criada depois do locaute dos empresários; VLT Gratuito: Metrô de superfície que aproveitava o leito ferroviário inativo; chegamos a 8 km em operação conjunta com o governo do estado. Lamentavelmente os governos seguintes abandonaram o VLT e sucatearam todo o investimento realizado. A viabilidade do Passe Livre nos tempos atuais Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo (8/6/13) o prefeito Fernando Haddad declara que a adoção do Passe Livre é inviável porque o custo do sistema de transporte de ônibus na cidade é de R$ 6 bilhões por ano. Pouco antes ele aponta que o subsídio municipal para o transporte será de R$ 1,25 bilhão para 2014, dobrando o valor atual do subsídio. Como alternativa para redução do custo com a passagem é apontado o Bilhete Único Mensal, a exemplo de diversas cidades do mundo. Vamos às contas. A introdução do Passe Livre traz um ganho de escala na redução do custo do transporte, uma vez que otimiza e racionaliza linhas e trajetos, permitindo várias conexões. Por exemplo: nos corredores de ônibus deveria circular apenas uma única linha, em que o ônibus vai e volta pelo mesmo corredor (como com o sistema “Ligeirinho” em Curitiba, ou Transmilênio em Bogotá, Lima ou Cidade do México), permitindo que os passageiros desçam no meio ou final do trajeto para tomar veículos menores; esta medida eliminaria a esdrúxula situação de congestionamentos de ônibus em corredores exclusivos, como acontece em São Paulo, além de permitir maior fluidez na circulação de passageiros, diminuindo a ociosidade no uso dos veículos, principalmente fora do “horário de pico”. O Passe Livre também provoca a redução dos custos de cobrança de tarifas e fiscalização. Lembro-me que à época, este ganho de escala e redução de custos representaria algo em torno de 30%. Se aplicarmos esta porcentagem ao custo atual do sistema de ônibus em São Paulo, a economia será de R$ 1,8 bilhão. Somando ganho de escala e redução de custos com o subsídio previsto, o custo total do sistema cairá para R$ 3 bilhões o que, em uma cidade com orçamento de mais de R$ 40 bilhões, representa menos de 8%. Ainda assim, resta decidir onde encontrar este dinheiro. Para reduzir o custo do transporte público, o prefeito Haddad propõe a municipalização da Cide, imposto federal que incide sobre combustíveis, aumentando o subsídio às operadoras privadas. Este pode ser um caminho, mas talvez não seja totalmente viável, pois a Cide tem a função de equilibrar variações no preço dos combustíveis e o governo não poderia prescindir totalmente deste mecanismo, além de representar mais uma aplicação de recursos públicos em empresas privadas. Mais realista seria uma municipalização parcial da Cide, exatamente para a finalidade de subsídio no transporte público, mas isso não cobria os gastos totais. A vantagem nesta fonte é que ela não implica em novo ônus ao contribuinte, pois já é cobrada. Como complementação, pode-se pensar em uma Taxa Municipal de Transporte Público (ou metropolitana, para incluir o Passe Livre em Metrô e Trens), a incidir no IPTU e IPVA, pulverizando o custo unitário da taxa. O positivo em incluir a taxa de transporte no IPVA é que teria um sentido progressivo e não mais regressivo, uma vez que os donos de automóveis subsidiariam parte do transporte público, além de incidir sobre uma ampla base (6 milhões de automóveis em São Paulo). A combinação com a taxa no IPTU, deveria incidir exatamente sobre imóveis e pólos geradores de tráfego (grandes empregadores ou centros de consumo), uma vez que um transporte de qualidade também é insumo para a produção e o consumo. Neste caso também poderia acontecer uma compensação de impostos, da mesma forma que ocorre com o vale transporte (que deixaria de existir com a adoção do Passe Livre), de modo a reduzir o impacto da taxa no custo do contribuinte. A combinação destas 3 fontes, aplicadas em impostos e taxas já existentes (Cide, IPVA e IPTU), permitiria alcançar o custo total do Sistema de Transporte Público possibilitando a adoção do Passe Livre. Ou seja, a adoção do Passe Livre é, sobretudo, uma questão de decisão política e não técnica. Mesmo que se avalie pela impossibilidade de implantação imediata do Passe Livre, ainda assim há que se pensar “fora da caixa” e das imposições do Capital. Por que não adotar medidas gradativas, como o Passe Livre aos finais de semana (como fizemos pioneiramente em Campinas)? Se não em todos dos domingos, ao menos em um por mês, em que a cidade toda poderia se vestir para festa, em atividades de cultura, lazer e convivência social? Se não em um domingo por mês, ao menos nas Viradas. Ou uma linha de Passe Livre nas Marginais, estimulando as pessoas a deixarem os carros em bolsões de estacionamento, melhorando a circulação na cidade. Ou nos Corredores de ônibus, que poderiam ser operados por empresa municipal ou em contrato de prestação de serviços, sem a necessidade de catraca. Enfim, há tanta idéia boa a surgir quando se tem o bem comum como fonte primeira para a construção de políticas públicas. Por fim, registro meu agradecimento aos jovens do MPL e a tod@s que acompanham neste movimento, saindo às ruas e enfrentando gás de pimenta, bombas e cacetetes.  O que estas pessoas estão fazendo vai muito além de um protesto contra o aumento da passagem do transporte. O que eles fazem, ou melhor, o que vocês fazem, independente de eventuais equívocos nas formas de protesto, é mostrar que sempre há gente que se recusa a ser coisa e quer ir além.