“A sociedade não nos considera gente”, diz ativista transexual

Daniela Andrade diz que movimento LGBT trata de maneira "precária" a agenda trans e denuncia que ainda existem feministas que não as aceitam como mulheres

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Daniela Andrade diz que movimento LGBT trata de maneira "precária" a agenda trans e denuncia que ainda existem feministas que não as aceitam como mulheres Por Marcelo Hailer  [caption id="attachment_40926" align="alignleft" width="300"] "Ou todas seremos livres ou ninguém será livre" (Foto Aquivo pessoal)[/caption] Desde 2004, quando um grupo de ativistas de transexuais e travestis ocupou o Congresso Nacional para lançar a campanha “Travesti Respeito”, a data 29 de janeiro foi instituída como símbolo da luta trans em todo o Brasil. E é inegável que entre as letras LGBT, as travestis e transexuais são as principais vítimas de machismo, transfobia e invisibilidade social. Para discutir a importância do Dia Nacional da Visibilidade Trans, conversamos com a ativista transexual Daniela Andrade, 33, militante transfeminista, diretora do Fórum da Juventude LGBT Paulista, membro da Comissão da Diversidade Sexual da OAB – Osasco e do coletivo Feminismo Sem Demagogia. Na entrevista a seguir, Daniela é taxativa ao dizer que “para a sociedade, nós não somos gente”. Ela também critica o movimento LGBT onde, em sua opinião, a agenda trans é tratada de maneira “precária e negligente”. Sobre o dia Visibilidade Trans, considera muito importante pois as travestis e transexuais “sofrem 12 meses, 365 dias por ano a transfobia e o cissexismo*”. Fórum - Qual é a importância do dia 29 de janeiro para a luta das travestis e transexuais? Daniela Andrade - O dia da visibilidade trans* é importante para lembrar que pessoas trans* sofrem 12 meses, 365 dias por ano a transfobia e o cissexismo. Que essas pessoas estão marginalizadas, alijadas dos bancos das escolas e universidades, preteridas no mercado de trabalho, sendo forçadas a se prostituírem, tendo o gênero deslegitimado diuturnamente, sendo agredidas por uma sociedade que não nos considera gente, que não vê humanidade em nós. O dia da visibilidade trans* serve para que as pessoas se conscientizem que não podem e não devem lembrar da nossa existência apenas no dia 29 de janeiro. Fórum - Em sua visão, como é tratada a agenda das travestis e transexuais no âmbito do movimento LGBT? Andrade - De forma precária e negligente, salvaguardando as raras exceções. Um debate muito caro para o movimento trans*, que é a aprovação de uma lei de identidade de gênero – a qual desburocratizaria e facilitaria a vida das pessoas trans* que pretendem modificar seus documentos, quase que não existe dentro do movimento LGBT. Estamos com um projeto de lei para ser votado em plenário do Senado Federal nesse sentido, do Luciano Zica (PT-SP), e quantas pessoas dentro do movimento LGBT sabem disso? Fazem o debate? Eu raramente vejo. Quantas pessoas sabem o que é o projeto de lei João W Nery, proposto por Jean Wyllys (PSOL-SP) e Érika Kokay (PT-DF) em janeiro de 2013? Eu raramente vejo. Quantas pessoas sabem que está no STF aguardando julgamento uma ADI de mudança de nome de transexuais, a qual entrou naquele órgão com um mês de diferença da ADI e ADPF que pacificou o casamento de pessoas homossexuais no Brasil? Nunca vi ninguém dizendo que sabia. Quantas vezes alguma parada LGBT em todo o Brasil teve como tema a aprovação de uma lei de identidade de gênero? Eu também nunca vi. Quantas vezes se propôs nacionalmente o debate da prostituição de travestis e transexuais? Dados da ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais dão conta que 90% dessa população está se prostituindo, esse é um número estarrecedor e que não deveria ser tratado como uma questão menor ou algo secundário. É preciso urgente políticas públicas nacionais que visem incluir a população de travestis e transexuais dentro do mercado de trabalho: a sociedade considera que nós só podemos ter dois destinos: ou a prostituição, ou o salão de beleza, ou quiçá em subempregos. Logo, para mim fica muito claro quais são as prioridades do movimento.  

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Elas são mais corajosas   Fórum -  Como você analisa o tratamento da mídia/ imprensa para com as transexuais e travestis? Andrade - Péssimo, excludente, preconceituoso, transfóbico, cissexista. Via de regra, desrespeitam a identidade de gênero das pessoas trans*, tratam as travestis como se fossem homens vestidos de mulher, tratam as mulheres transexuais como homens que viraram mulher e os homens transexuais como mulheres que viraram homens. Fazem sempre questão de grafar o nome do registro civil dessa população, considerando o nome social com desdém, um mero apelido. A mídia/imprensa de um modo geral serve para manter a exclusão das pessoas trans* dentro da sociedade, tratadas como seres patológicos, criminosos, ridículos, exóticos. Fórum -  Recentemente você relatou que conseguiu trocar o nome de seus documentos, inclusive nos escolares. Como foi o processo? E na escola, como receberam tal demanda? Andrade - Foi algo extremamente estafante emocionalmente, pois você fica impaciente, fica apreensiva tendo seu destino nas mãos de terceiros, sabendo que um outro que não te conhece irá te dar ou não o direito de ser cidadã, de ser reconhecida como Daniela e mulher perante as leis brasileiras. E isso é um absurdo, ter que judicializar direitos tão básicos. Fora o fato de que, durante o processo, exigências esdrúxulas foram feitas, como comprovação da minha aparência feminina. Como somos nós, pessoas trans*, que estamos sob constante escrutínio alheio, de pessoas cis que detém o poder de nos conceder ou não o direito de sermos consideradas cidadãs e cidadãos, percebe-se que as exigências feitas para que se comprove a nossa identidade não são feitas para pessoas cis, essas tomadas como sujeitos de direito. Tive a “sorte” de uma juíza de primeira instância reconhecer meus direitos e deferir a alteração documental, mas isso não é a regra, muitas pessoas trans* veem seus pedidos indeferidos e precisam recorrer ao Tribunal de Justiça, que pode reformar a sentença e aí precisam recorrer ao Superior Tribunal de Justiça. Pela inexistência de uma lei de identidade de gênero no Brasil, lembrando que a lei de registros públicos é de 1973, cada juiz e promotor define ao bel prazer exigências as mais violentas. Atualmente tenho um mandado de segurança impetrado contra o Ministério da Educação que não responde como faço para retificar meu nome nos meus diplomas, sendo que preciso do diploma por conta de ter passado em um concurso público. Assim como tenho outras ações judiciais contra outros órgãos que, mesmo com um mandado judicial dizendo que meus documentos foram alterados, não respeitam esse fato e lesam a minha dignidade. Fórum -  Hoje nós temos apenas um mecanismo de contagem de denúncias para agressões homo-transfóbicas, que é o disque 100. Acredita que ele é suficiente? Que outro mecanismo você acredita que seria eficaz na luta contra a violência motivada por ódio? Andrade - No caso da população trans*, é um mecanismo que tem se mostrado ineficiente. Veja, os dados computados do Disque 100 do ano retrasado dão conta de que mais de 50% das pessoas LGBTs no Brasil que ligaram denunciando discriminação foram os homens gays cis, travestis e transexuais perfazem menos de 2% do total. Mas se você se debruçar sobre os dados hemerográficos, que dão conta das mortes e discriminações por motivos transfóbicos que a Secretaria de Direitos Humanos recolheu da mídia, descobriremos que mais de 50% da discriminação contra a população LGBT é contra travestis e transexuais. Ora, isso nos leva a ler que travestis e transexuais não fazem denúncias no Brasil. E por que não fazem? Pois há muito descobriram que o Estado não vai lhes proteger, que não lhes vê como cidadãos e cidadãs. Há infinitos relatos de travestis e transexuais que foram agredidas por representantes do Estado, como policiais e demais funcionários públicos. É o Estado demonstrando que essas pessoas, além de serem discriminadas pela sociedade, também o serão pela máquina estatal. E quando procuram a delegacia, são agredidas, debochadas. Veja o caso das mulheres trans* que procuram a delegacia de mulheres e não são reconhecidas como tal caso não tenham modificado seus documentos. E o respeito e a autonomia à identidade de gênero dessas pessoas, onde fica? Essa população aprendeu que não adianta recorrer ao Estado, não adianta denunciar, aprendeu a duras penas que não é gente, em sua maioria está com a autoestima destruída, muito fragmentada. Não se consideram sujeitos de direito. É preciso um grande trabalho de empoderamento dessa população. Fórum -  Acredita que a divisão de gênero fortalece a sectarização da sociedade e consequentemente a construção de estereótipos que alimentam o preconceito? Andrade - Acredito que a legitimação de apenas dois gêneros, masculino e feminino, e do paralelismo que se faz entre genital, gênero e sexo para transformar uma pessoa em sujeito de direito, privilegiada do ponto de vista social, é uma grande violência para as pessoas trans*. Cada um vivencia a sua identidade, o seu gênero de forma muito particular, dividir o mundo em absolutamente dois pólos e colocar os que não se enquadram em nenhum dos dois na categoria aberração, anormal, doente, pecaminoso, é atentar contra os princípios fundamentais do estado democrático de direito, do respeito e dignidade da pessoa humana, em uma sociedade que considera que travestis e transexuais pertencem ao grupo “não gente”. Assimilar que cada pessoa é única e deve ser respeitada em suas especificidades e particularidades deveria ser busca constante de todos nós. Fórum - Ainda convivemos com alguns coletivos feministas que não consideram a luta das travestis e transexuais como parte da agenda feminista, como você encara isso? Já enfrentou algum tipo resistência nesse sentido?  Andrade - Percebo que se o feminismo se quer um movimento de libertação e emancipação da mulher, essa entidade chamada mulher deveria abarcar TODAS as mulheres, incluso aí as mulheres transexuais e travestis. Pois também sofremos machismo, misoginia – ou mais especificamente transmisoginia, também sofremos violências por compor o grupo desprezado dentro da sociedade: de mulheres ou identidades femininas. Se o feminismo quer lutar contra a opressão da mulher, ele não pode fazer isso rifando o direito das mulheres trans* de serem consideradas e respeitadas como mulheres, ele não pode fazer isso sendo transfóbico e cissexista. Um movimento libertador que continua oprimindo não libertará ninguém de fato. Ou todas seremos livres ou ninguém será livre. E sim, frequentemente me deparo com feministas de correntes mais radicais que não conseguem revisitar seus privilégios cis em uma sociedade que nos nega inclusive o direito de ter um nome e um gênero respeitados, não conseguem se afastar da tese que biologiza e genitaliza as identidades e, no caso, as mulheres. Como se ser mulher fosse apenas e tão somente um dado biológico, como se a mulheridade estivesse instalada na vulva, no útero, nos ovários. Não é o corpo que subjuga a minha construção biopsicossocial, mas o contrário. Já inclusive tive minha participação vetada em mesa que visava debater violência contra a mulher em uma semana feminista de uma universidade por eu ser mulher trans*. Debater violência contra a mulher quando está tudo bem violentar a mulher trans* da história. Fórum -  Acredita que o governo Lula e Dilma avançaram na luta contra a homo-transfobia? Andrade - Os índices de violência contra as pessoas travestis e transexuais não diminuíram, os números dessa população se prostituindo também não, não vejo políticas públicas nacionais e consistentes que visem transformar a visão da sociedade para essas pessoas. Que visem devolver a essas pessoas a cidadania negada e desconsiderada cotidianamente. Não vejo políticas públicas federais que visem erradicar a evasão escolar dessa população no que tangem às diversas violências que sofrem dentro desses espaços que são excludentes. De forma que, no que toca à população trans*, não vi avanços nacionais consistentes, mas medidas cosméticas com a aprovação do uso do nome social em um ou outro órgão, o que nada mais é, como diz Berenice Bento, que uma "cidadania gambiarra", a conta gotas. Que reconhece essas pessoas como cidadãs em um ou outro órgão, mas que, em todos os demais, continuam a ser desrespeitadas nacionalmente – aqui fica clara a negligência e a invisibilidade dessa população perante o Congresso Nacional. *Pequeno glossário: Pessoas cisgêneras: pessoas que foram designadas com um gênero ao nascer e se identificam com ele. Sinônimo de cissexual. Abreviado como cis. Pessoas transgêneras: pessoas que foram designadas com um gênero a nascer e não se identificam com ele. Para saber mais, clique aqui.