A terra da liberdade de Leymah Gbowee: a ativista pela paz que mudou um país em guerra

Vencedora do Nobel da Paz de 2011, Gbowee esteve presente no evento Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, e falou sobre sua experiência junto a mulheres vítimas de abusos na Libéria

(Foto: Ramiro Furquim / Sul21)
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Vencedora do Nobel da Paz de 2011 esteve presente no evento Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, e falou sobre sua experiência com mulheres vítimas de abusos e crianças soldados na Libéria 

Por Débora Fogliatto, do Sul21

Libéria significa “terra da liberdade” em latim. A Libéria é um país na África Ocidental, uma pequena nação de menos de quatro milhões de habitantes que por muitos anos não conheceu, de fato, a palavra que lhe dava nome. A história nacional desse país, que por 14 anos esteve imerso em uma das guerras mais sangrentas do continente africano, é também a história pessoal da ativista Leymah Gbowee, que mobilizou as mulheres liberianas e ajudou a por fim na guerra civil. Vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2011, Leymah contou sua história, defendeu a solução pacífica para qualquer conflito e compartilhou suas crenças com a plateia do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre nesta segunda-feira (9), no Salão de Atos da UFRGS.

Seu país é uma “terra de contradições”, de acordo com ela. “Nos dizem que a Libéria foi fundada pelos ex-escravos dos Estados Unidos, mas quando eles chegaram lá encontraram povos indígenas”, descreve, e lamenta: “Os ex-escravos fizeram com os povos indígenas a mesma coisa que haviam feito com eles. Por cem anos, os indígenas não tiveram os mesmos direitos”. Começou assim a história de um país que até hoje é marcado pela pobreza, desigualdade social e que, muitos anos depois, passou por uma guerra civil que devastou a nação, deixando 10% da população morta e milhares de mulheres traumatizadas após inúmeros abusos e estupros.

[caption id="attachment_30683" align="aligncenter" width="600"] Leymah Gbowee: "Violência e mudança não são compatíveis" (Foto: Ramiro Furquim / Sul21)[/caption]

O conflito começou em 1982, quando Leymah havia recém terminado o Ensino Médio. Aos 17 anos, ela se mudou para um campo de refugiados em Serra Leoa, e então viveu indo e voltando, entre campos e seu país de origem. “Nós voltamos para a comunidade onde eu havia crescido em 1993, e na época eu estava em um relacionamento abusivo, apanhava diariamente”, conta ela. Quando retornou para sua comunidade, decidiu ser assistente social, o que requeria que fizesse trabalho voluntário. Para isso, Leymah teve que trabalhar com as crianças-soldados que lutavam em nome do ditador Charles Taylor, e representavam tudo o que ela mais desprezava. “Mas eu comecei a conhecer essas crianças, que tinham começado a lutar com 10,11, 15 anos. Todos eles tinham alguma deficiência física. A maioria estava sempre drogada. Com o tempo, as paredes do ódio começaram a cair, de pouquinho em pouquinho. Só mais tarde eu iria perceber que aquelas crianças eram mais vítimas do que perpetradores”.

Ela conheceu um grupo de mulheres que haviam sofrido diversos tipos de abusos. “Comecei a perceber que que há uma sensação boa toda vez que eu me comprometia com pessoas em situações parecidas com a minha”. Foi então que surgiu o sentimento de que precisava “fazer algo significativo”. Ao conhecer as mulheres que, apesar de terem sofrido todos os tipos de violência, ainda acreditavam que eram a esperança do país, Leymah percebeu: “Se aquelas mulheres que haviam sido tão abusadas pensavam que nós poderíamos mudar o país, quem era eu para pensar que não?”

Ela então começou o que chama de “processo de cura pessoal”. Contou às suas companheiras sua própria trajetória de sofrimentos, violência doméstica e dificuldades financeiras. “E então eu percebi que estava em uma jornada de cura pessoal. Eu precisava completar aquela cura. Eu precisava encontrar meu ex-marido abusivo, e dizer a ele ‘eu te perdoo. Porque eu vi a luz e eu sei o que a raiva faz. Você pode ir em paz e eu irei em paz’. Eu precisava fazer as pazes comigo mesma. Quando isso estava completo, eu pude trabalhar com minhas irmãs para mudar a minha nação”, descreve.

Foi então que elas começaram o movimento pacífico de protestar em um local central da capital Monróvia, por onde o presidente Charles Taylor passava duas vezes ao dia. As mulheres se uniram, cristãs e muçulmanas, e juntas rezavam, protestavam, faziam jejum. “Nós fizemos isso por 3 anos e meio. Nós conseguimos conquistar a paz”, afirma. Para ela, a violência e o ódio nunca são as formas de conseguir o que se deseja. “Não há como criar mudanças se você tem ódio em seu coração. Todos os dias eu lembro a mim mesma de não odiar. Se você me ofendeu, e eu estou magoada, eu vou ir até você e dizer ‘mesmo que você tenha me machucado, eu vou deixar para lá. Para isso é necessário muita força e muita coragem. Odiar é fácil. Eu não odiarei ninguém”.

Com sua luta que a trouxe reconhecimento internacional após a derrubada de Taylor e eleição de Ellen Johnson-Sirleaf, em 2005 – a primeira mulher a ser presidente na África – Leymah conquistou prêmios, escreveu um livro e participou de um documentário. “Algum dia eu pensei que a vida que eu comecei aos 17 anos iria me trazer a um enorme público brasileiro interessado na minha história? Não. Algum dia eu imaginei que eu seria considerada uma voz para as mulheres? Não. Eu aprendi muitas coisas. Se você quer conseguir mudanças, nunca deve desprezar começos humildes”, aconselha. “Quem poderia ter pensado que nós mudaríamos um país em guerra?”

Mesmo tendo visto tanta violência e ouvido tantas histórias de sofrimento, Leymah ainda é uma “Guerreira da Paz”, título de seu livro e que se tornou também seu “segundo nome”. Ela se mostrou interessada nas manifestações recentemente acontecidas no Brasil e deu um conselho para os jovens que buscam mudanças em seu país: “não se tornem violentos. Violência e mudança não são compatíveis”. Ela também mencionou que apesar de no Brasil, assim como na Libéria, haver presidentes mulheres, isso não significa o fim das desigualdades entre os gêneros. “Muitas coisas boas que as mulheres fazem, inclusive aqui no Brasil, são esquecidas. Ainda vivemos em um mundo dominado por homens. Às vezes é preciso criar espaços para as mulheres. Os homens só precisam ir para o lado e deixar nós resolvermos”, brincou.

Seu sonho atual é conseguir fazer um doutorado. Ela explica que já tem quatro títulos honorários, mas nunca realmente escreveu sua tese. “Eu nunca me via neste lugar em que eu cheguei. É muito fácil dizer: ‘a vida é muito difícil, eu preciso desistir’. Eu escrevi a minha tese de bacharelado à luz de velas. E eu continuava dizendo na minha cabeça: ‘isso também passará’. Eu irei voltar para a escola e escrever minha tese de doutorado”, garantiu.

Vinte e quatro anos após o início da guerra civil da Libéria e dez anos após seu fim, Leymah é uma mãe de seis filhos conhecida mundialmente por ter colaborado pela paz sem apelar pela violência. Para a plateia que lotou o Salão de Atos e a ovacionou em pé por vários minutos após sua fala de pouco mais de uma hora, ela deixou diversos conselhos. O último foi que a mudança, seja no Brasil ou na Libéria, depende do que cada um está disposto a fazer: “É importante perceber que a mudança só é possível se você decidir que irá mudar o que quer ver diferente. É só você que pode levantar e fazer algo pela sua comunidade. É o momento para perceber que a mudança depende de nós”.