A ALCA não interessa ao Brasil

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O economista e professor da Fundação Getúlio Vargas Paulo Nogueira Batista Jr., 47 anos, se destacou nos últimos anos pela sua rigorosa observação do cenário econômico brasileiro. Em entrevistas, palestras acadêmicas e na sua coluna semanal publicada às quintas-feiras no caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo, apontou muitos dos equívocos que levaram o Brasil a ficar refém do mercado e do cenário internacional.

O mesmo Paulo Nogueira, em recente palestra no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), onde atua como pesquisador-visitante, fez uma detalhada análise do que vem a ser a proposta de Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Algumas passagens da apresentação são reproduzidas aqui. Na sua opinião, o país tem grande peso no continente e é o principal alvo dos norte-americanos nas negociações e de modo pragmático deve dizer não à proposta da Alca. A seguir, os motivos que o levam a ter essa posição.

Histórico Essa idéia de uma união das Américas é muito antiga, remonta ao século XIX, mas o pontapé inicial para o que hoje conhecemos como uma eventual Alca, foi dado no início dos anos 90 por George Bush (o pai), que lançou a Iniciativa para as Américas ou Iniciativa Bush, que envolveria uma área de livre comércio do Alasca à Terra do Fogo. Os especialistas em relações internacionais logo perceberam que era uma iniciativa de muita importância. Foi ficando claro que o governo e setores de peso do empresariado norte-americano atribuíam importância estratégica a essa iniciativa. Hoje, não pode haver dúvida de que estamos diante de uma iniciativa prioritária para o establishment norte-americano, ainda que existam também resistências muito grandes dentro do próprio país. Se concluirmos que não interessa ao Brasil participar da Alca, vamos ter que nos valer dessas divergências internas nos EUA para acharmos uma saída diplomática desse enrosco em que nos meteram os governos FHC e Itamar Franco.

Características Não se trata da criação de um bloco econômico no sentido estrito do termo, nada comparável com a União Européia. Não há nenhuma idéia de união política ou criação de um parlamento comum. Não há proposta para se criar fundos fiscais compensatórios para acomodar as necessidades de regiões ou países mais atrasados. Não existe qualquer idéia de permitir a integração dos mercados de trabalho, ou seja, a livre circulação de americanos dentro das Américas. Pelo contrário, os norte-americanos reiteram sua determinação de buscar o máximo de liberdade para bens, serviços e investimentos, mas não aceitam abrandar as restrições à entrada de migrantes nos EUA. O Brasil não coloca essa questão na mesa. Os mexicanos têm colocado, mas no âmbito do Nafta (o acordo de livre comércio da América do Norte). Mesmo no que diz respeito ao comércio de bens, os EUA têm propostas bastante assimétricas. Lutam pelo livre comércio, mas com importantes ressalvas destinadas a proteger os setores pouco competitivos da sua economia.

Alca e UE Se observarmos a legislação européia em várias áreas cruciais, vemos que os alemães foram bastante generosos. Segundo Nietzsche, o Estado é o mais frio dos monstros. Mas o Estado alemão deu mostras de generosidade, por uma razão muito peculiar: o sentimento de culpa que resultou da época do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. A Europa se dilacerou em duas guerras tremendas e depois, sob a liderança de Adenauer e De Gaulle, começou a construir uma nova história. Durante décadas, em uma negociação dificílima, cheia de percalços, chegaram a uma situação em que podem até ter uma moeda comum. O Banco Central Europeu não é inteiramente dominado pelos alemães, é multinacional. A direção do banco é compartilhada com outros países membros da área do euro e as receitas derivadas da emissão de moeda são distribuídas entre esses países. Qual é a atitude dos norte-americanos nesse tema? Não cogitam sequer discutir a proposta de uma nova moeda ou de um banco central comum para as Américas. Não aceitariam nem a hipótese mais modesta de admitir brasileiros ou outros latino-americanos na diretoria do Federal Reserve. Na área monetária, o que EUA parecem esperar é que o dólar vá se consolidando gradualmente como moeda das Américas, sendo adotado unilateralmente por outros países, como ocorreu com Equador e El Salvador, sem contrapartidas do governo dos EUA.

Capital estrangeiro Os Estados Unidos expressaram seu objetivo de definir investimento de uma forma muito ampla no acordo da Alca. Querem regulamentar não apenas os investimentos diretos, mas todas as formas de ativos com características de investimento, como por exemplo ações, certas formas de dívida e certas concessões. A intenção deles é que o acordo da Alca estabeleça a obrigação de conceder aos investidores de um país membro tratamento nacional ou de nação mais favorecida, o que for mais vantajoso para o investidor. Para as entidades subnacionais, governos estaduais e municipais, os EUA propõem que os investidores tenham a garantia de obter o mesmo tratamento que o estado ou província do país membro da Alca. Se prevalecer essa linha, o governo ficaria impedido por tratado internacional – assinado com a maior potência econômica do mundo – de definir políticas que favoreçam as empresas que operam no Brasil, de capital nacional ou mesmo estrangeiro, ainda que isso fosse apenas uma compensação para as desvantagens estruturais que enfrentam as empresas brasileiras. É a igualdade para os desiguais.

Além disso, os EUA pretendem que o investidor estrangeiro de um país membro da Alca tenha o direito de transferir fundos para dentro ou fora de qualquer outro país da Alca, sem demora e a uma taxa de câmbio de mercado. Essa garantia cobriria todas as transferências relacionadas a investimentos, inclusive remessas de lucros, juros, repatriação do capital e injeção de recursos financeiros adicionais após a realização do investimento inicial.

Desenvolvimento local Os norte-americanos querem ampliar algo que infelizmente já foi aceito pelo Brasil na negociação da OMC na Rodada Uruguai: as restrições à definição de políticas para os capitais estrangeiros. Desejam proibir que os países da Alca estabeleçam metas ou requisitos para investidores estrangeiros oriundos de outros países do acordo. Por exemplo, o governo de um país membro da Alca ficaria impedido de especificar níveis de conteúdo local ou índices de nacionalização. Tampouco poderia estabelecer metas de exportação ou compromissos de transferência de tecnologia para o país. Se esse acordo for assinado, nesses termos, as possibilidades de implementar políticas industriais ficariam muito limitadas. A própria idéia de um projeto nacional de desenvolvimento teria que ser arquivada.

Todos os candidatos que disputaram a eleição presidencial defendiam políticas industriais e um projeto nacional de desenvolvimento. De acordo com os planos de Washington, esse tipo de política não poderia ser aplicada, pois a pretensão dos EUA é que o acordo impeça os governos de dar preferência às empresas nacionais e aos fornecedores locais. No capítulo referente a compras governamentais, a intenção dos EUA é incorporar cláusulas que impeçam até mesmo governos estaduais e municipais de darem preferência a produtores locais. Pretende-se também proibir a inclusão nas licitações públicas de dispositivos que especifiquem níveis de conteúdo doméstico, licenciamento de tecnologia ou metas de investimento.

Em suma, o governo de um país membro da Alca ficaria extremamente limitado no que diz respeito a políticas em relação a investimentos estrangeiros e compras governamentais. Estariam em grande medida congeladas as possibilidades dos governos realizarem políticas setoriais e de promoverem o desenvolvimento.

O óbvio Não podemos esquecer o óbvio, que é uma vítima freqüente nas discussões sobre economia. O óbvio é que nós somos um país em desenvolvimento e não deixaremos de ser tão cedo. Os países que negociam a Alca apresentam grandes desníveis de desenvolvimento, maiores do que no âmbito do bloco europeu.

O Brasil é, sem dúvida, um dos países mais desenvolvidos da América Latina, mas a distância que nos separa dos países desenvolvidos é enorme. Do ponto de vista macroeconômico, isso significa que o ambiente no qual operam as empresas que aqui produzem e geram empregos é muito desfavorável em comparação com o de países como os Estados Unidos e o Canadá.

Desvantagens estruturais
Diversas circunstâncias relacionadas à chamada competitividade sistêmica (distorções do sistema tributário, escassez de crédito doméstico, elevadas taxas de juro internas, fraqueza dos mercados de capitais do país, deficiências de infra-estrutura, entre outras), colocam as empresas brasileiras em desvantagem na disputa por mercados externos e internos.

Por exemplo, o sistema tributário brasileiro é hostil à competitividade internacional das empresas nacionais ou estrangeiras que aqui operam. Não só porque onera as exportações do país, mas também porque discrimina a produção local em relação às importações. O peso dos tributos de tipo cumulativo, que incidem sobre faturamento, receita bruta ou movimentação financeira, é muito grande no Brasil. Nos setores que têm cadeia de produção mais longa esse efeito é importante. Cofins, PIS e CPMF funcionam como tarifas alfandegárias às avessas. É fácil dizer: ‘Vamos fazer a reforma tributária e acabar com os impostos cumulativos’. FHC passou oito anos fazendo promessas desse tipo. Acabou aumentando as alíquotas de tributos cumulativos como a Cofins e a CPMF, cuja arrecadação é relativamente simples e não é compartilhada com Estados e Municípios. O sistema tributário apresenta problemas estruturais, que não vão ser resolvidos com uma penada.

Outro exemplo de desvantagem sistêmica são as condições de oferta de crédito na economia brasileira. As nossas empresas, especialmente as de menor porte, se defrontam com escassez de crédito, taxas de juro exorbitantes entre as mais altas do mundo e prazos curtos. As taxas básicas ou de captação são muito elevadas; as que são cobradas dos consumidores e das empresas, sobretudo das pequenas, chegam a ser pornográficas. A solução desse problema está longe de ser trivial. Não se trata apenas de colocar na direção do Banco Central pessoas que se disponham, corajosamente, a disciplinar os bancos. O nível das taxas de juro reflete, em parte, a estrutura do sistema financeiro. Há aqui toda uma reforma estrutural por ser feita. É curioso que, no Brasil, se fale tanto de reformas tributária, previdenciária e outras, e quase nunca se fale em reforma do sistema financeiro. O artigo 192 da Constituição, que prevê essa reforma, ficou congelado, nunca foi regulamentado. Mas o que interessa ressaltar, no contexto da discussão da Alca, é que as empresas brasileiras têm de suportar um custo financeiro muito mais alto que suas competidoras norte-americanas, canadenses ou mesmo latino-americanas. E esse problema não será resolvido rapidamente.

Além da escassez de crédito, é preciso lembrar o subdesenvolvimento do mercado de capitais no Brasil. A possibilidade de levantar recursos diretamente junto aos investidores, sem a intermediação dos bancos, é muito limitada, particularmente para as firmas pequenas e médias. Nesse caso particular, é extraordinário o desnível entre o Brasil e os países desenvolvidos, que contam com mercados de capitais fortes e consolidados. As empresas brasileiras, não tendo acesso a um mercado de capitais desenvolvido e nem a empréstimos em volume e condições adequadas, acabam dependendo excessivamente de autofinanciamento, o que restringe as suas possibilidades de expansão.

A competitividade internacional das empresas brasileiras também é prejudicada pelas deficiências de infra-estrutura, especialmente transportes e energia. Também nesse campo o Brasil está longe do padrão observado nos países do Primeiro Mundo. Nos anos 90, o Brasil chegou a regredir em algumas áreas de infra-estrutura. Quem tinha dúvidas sobre isso, não pode mais tê-las depois do fiasco que foi a crise energética do ano de 2001.

Mas os problemas não são só macroeconômicos ou sistêmicos. Alguns empresários declaram que as suas empresas estariam, enquanto empresas, preparadas para a Alca. A dificuldade residiria apenas na falta de condições sistêmicas adequadas. Segundo esse ponto de vista, a economia brasileira não seria competitiva, mas as empresas brasileiras, sim. “Se me derem tributos e juros civilizados, infra-estrutura adequada etc., tenho condições de competir livremente”, afirmam alguns empresários.
Isso pode ser verdade em alguns setores significativos da economia nacional. No entanto, não é plausível que isso seja verdadeiro para a maioria das empresas e setores de uma economia que ainda está em desenvolvimento.

Vamos ser realistas: quem se animaria a comparar as empresas brasileiras com as megacorporações dos EUA e de outros países desenvolvidos? Ainda que existam, em diversos setores da economia brasileira, empresas de padrão internacional, as empresas norte-americanas e de outras economias avançadas levam, regra geral, grande vantagem sobre as nossas em termos de escala de produção, tecnologia, pesquisa e desenvolvimento, redes de comercialização, marcas etc.

Alca ou exclusão Não podemos aceitar essa conversa falaciosa de que o mundo está se dividindo em blocos: o europeu, o asiático, o panamericano e o dos excluídos. Se diz que caso o Brasil não entre na Alca, poderá liderar o bloco dos excluídos. Isso é uma fantasia, só existe um bloco importante, o europeu. O bloco asiático não existe e nem está em negociação. Na Ásia, não há liderança capaz de fazer o que Alemanha e França fizeram na Europa e que tentam fazer os EUA nas Américas. De qualquer maneira, o bloco panamericano, se vier a ser criado, não terá as características mais equilibradas e abrangentes que tem o bloco europeu.

Sem obrigações Outro fato importante é que em abril de 2001, na cúpula presidencial de Quebec (Canadá), foi confirmada a meta, estabelecida na primeira cúpula, em dezembro de 1994, de concluir as negociações da Alca até janeiro de 2005 e ratificá-las nos congressos ou parlamentos dos países participantes até dezembro do mesmo ano. Temos menos de dois anos até a suposta data de conclusão das negociações.
É importante ressaltar que essas datas não constituem um compromisso jurídico, mas político. O Brasil e os demais países que participam da negociação não estão contratualmente obrigados a concluir as negociações e a ingressar na Alca nas datas mencionadas. Em política, entretanto, as interpretações são fluidas. Por exemplo, a embaixadora dos EUA no Brasil, em declarações dadas pouco depois das eleições brasileiras, lembrou que o presidente eleito prometera cumprir todos os contratos e que era compromisso do Brasil negociar a Alca conforme cronograma estabelecido em Quebec. É uma interpretação forçada, para dizer o mínimo, pois tenta equiparar um compromisso de natureza política com compromissos contratuais.

Desrespeito à hipocrisia O Brasil ainda é um país subdesenvolvido e não pode fingir que não é. Não estou defendendo que o país se feche em todas as áreas, apenas que preserve suas opções, que não assine tratados que o impeçam de fazer escolhas sobre que setores abrir, que setores desenvolver. Seria lamentável que o Brasil fosse levado a abrir mão de instrumentos de política econômica que os países hoje desenvolvidos utilizaram amplamente ao longo do seu processo histórico de desenvolvimento.

Era possível perceber, desde o início, que a Alca não interessava ao Brasil. Mais do que isso: ela representa uma ameaça à soberania e ao desenvolvimento do país. Com o governo George W. Bush, as perspectivas da Alca tornaram-se ainda mais sombrias. Ficou mais claro que os EUA têm uma concepção assimétrica de livre comércio. Washington já não disfarça que a sua concepção de livre comércio significa simplesmente o seguinte: o máximo de abertura para setores em que os EUA desfrutam de vantagens competitivas e protecionismo para os setores em que os EUA têm dificuldade de competir.

Ninguém mais pode fingir que não percebe que estamos em uma negociação desequilibrada. O governo George W. Bush, com a sua franqueza brutal, se afasta da tradição anglo-americana em que a hipocrisia costuma desempenhar um papel fundamental. Os ingleses sempre se valeram do recurso como arma diplomática. Já os alemães, por exemplo, tinham dificuldades com a hipocrisia, pendiam para uma atuação mais franca e aberta, exercendo o seu imperialismo sem maiores disfarces. Em parte por isso, se deram muito mal.

Os norte-americanos procuraram, de uma maneira geral, seguir o exemplo inglês nesse caso particular. Na época do governo Clinton, por exemplo, a luta pelos interesses nacionais norte-americanos era convenientemente dissimulada por uma retórica de cooperação internacional,“globalização”, fim das fronteiras etc. Essas fachadas foram mais ou menos abandonadas na gestão Bush. A sua franqueza, assim como a dos congressistas norte-americanos, chega a ser constrangedora – sobretudo para os numerosos defensores dos pontos de vista e interesses dos EUA em países como o Brasil. Essa gente recolheu-se ultimamente a um silêncio tumular.

Negociação bilateral Canadá e México já estão no Nafta. A América Central e o Caribe são áreas de influência imediata dos Estados Unidos. Na América do Sul, a Colômbia e a Venezuela estão dilaceradas por conflitos internos. A Argentina atravessa a mais grave crise desde os anos 30. Os outros países não têm muito peso. Na verdade, a negociação da Alca é, em grande medida, uma negociação entre o Brasil e os EUA. Uma negociação bilateral disfarçada de negociação multilateral. O principal alvo da Alca é o mercado brasileiro.
Para o Brasil, a Alca não é o melhor terreno. Para nós, a OMC, onde se pode fazer diversas alianças mais promissoras, é um campo menos perigoso, como lembrou em artigo recente o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Na OMC, o Brasil pode, por exemplo, explorar eventuais contradições entre os interesses da União Européia, dos Estados Unidos e Japão. Pode atuar em conjunto com outros países importantes da periferia do sistema internacional, como a Rússia, a África do Sul, a China e a Índia. O tabuleiro da OMC não é fácil, mas oferece riscos menores. O terreno União Européia-Mercosul e, sobretudo, o da Alca são problemáticos para o Brasil.

Protecionismo As vantagens potenciais do Brasil na Alca estão concentradas em setores específicos, protegidos nos EUA por lobbies poderosos, como siderurgia, suco de laranja, etanol e agricultura. Em 2002, o Executivo e o Congresso dos EUA adotaram importantes iniciativas protecionistas em áreas de interesse do Brasil, como siderurgia e agricultura. Na negociação da Alca, os EUA relutam muito em tratar de temas como agricultura e antidumping, alegando que por seu caráter “sistêmico” esses temas devem ser remetidos à negociação no âmbito da OMC. Por outro lado, pretendem incluir na Alca uma série de temas do seu interesse, e igualmente “sistêmicos”, como investimentos, compras governamentais, serviços e propriedade intelectual... Como disse o embaixador Rubens Ricupero, em trabalho recentemente publicado, não é a lógica socrática, mas a lógica do poder.

Já o Brasil tem recebido elogios extraordinários no exterior, desde o tempo de Collor, por sua disposição de abrir unilateralmente a economia às importações. Tem sido apontado como exemplo para outros países subdesenvolvidos. Como lembrou o diretor-geral da OMC, em entrevista a uma revista brasileira, o Brasil foi removendo barreiras às importações, nos anos 90, sem esperar que os outros países abrissem seus mercados para as exportações brasileiras. O país teve a sabedoria de perceber, disse ele, que a abertura é benéfica em si mesma, mesmo sem contrapartidas dos parceiros comerciais...

Os brasileiros já não aceitam mais tão facilmente esse tipo de recomendação e elogio. Estamos nos dando conta de que o país andou importando muita doutrina econômica duvidosa, do tipo que os países desenvolvidos pregam, mas raramente praticam.

Lula e Bush Em 2002 aconteceram dois fatos importantes no campo da política nas Américas. A vitória de Bush nas eleições parlamentares no meio de seu mandato e a vitória de Lula no Brasil. Os dois resultados dificultam ainda mais a negociação da Alca. No Brasil, foi pouco notado que a vitória de Bush e dos republicanos resultou, em parte, do uso cuidadosamente calibrado do protecionismo comercial para conquistar votos e apoio de certos setores econômicos em determinadas regiões. A proteção seletiva contra a concorrência estrangeira tem sido um sucesso político nos EUA e dificilmente será abandonada.

No Brasil, a campanha teve características importantes. Todos os candidatos, inclusive o do governo, foram críticos da política econômica de FHC e da orientação liberal que prevaleceu no período 1990-2002. Todos defenderam um projeto nacional de desenvolvimento e a soberania nacional. Ora, o que é a Alca senão a consagração em acordo internacional da orientação rejeitada na campanha e nas urnas? Se as eleições valeram algo, o Brasil não pode entrar na Alca.

Oportunidade para dizer não O brasileiro é um pouco esquizofrênico. Por um lado, imagina que faz parte do Primeiro Mundo e pode competir livremente, sem anteparos ou barreiras, com as economias mais poderosas do planeta. Por outro, supõe que o país nada vale e não pode resistir às grandes potências, especialmente os EUA, devendo-se submeter de forma passiva às iniciativas estratégicas de Washington.

Nem oito, nem oitenta. O Brasil não é, e nem será tão cedo, membro do clube dos países desenvolvidos. Mas está muito longe de ser um país irrelevante. Um país com a dimensão geográfica, populacional e econômica do Brasil não cabe no quintal de ninguém.

O recrudescimento do protecionismo nos EUA nos prejudica, é claro. Temos todo o interesse em ampliar as nossas exportações para os EUA. Mas não se deve perder de vista que há também um lado positivo no que vem acontecendo. Com a sua intransigência e o caráter desequilibrado das propostas apresentadas na Alca, Washington indica que pretende levar vantagem em todas as questões essenciais. Os EUA estão nos dando, assim, a oportunidade de escapar da armadilha que a Alca representa para o desenvolvimento e a autonomia do Brasil.

Ficaremos isolados? Digamos que os EUA consigam fazer a Alca sem o Brasil e Cuba. Nesse caso, poderíamos buscar acordos de livre comércio com nossos vizinhos sul-americanos ou centro-americanos. O que não nos interessa é participar de áreas de livre comércio com economias muito mais poderosas como os EUA e a União Européia.
O risco de isolamento é em grande medida um mito, um espantalho. Para os países sul-americanos as relações econômicas com o Brasil são muito importantes. Alguém imagina que a Bolívia, o Peru e a Argentina, por exemplo, vão querer se isolar do Brasil? Precisamos analisar a Alca à luz do interesse nacional, de modo pragmático.

Edição por Glauco Faria e Renato Rovai.