A Bolívia depois do referendo

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Nas ruas de La Paz, a população celebra uma vitória eleitoral. Evo Morales ainda não foi reeleito, mas simplesmente mantido no cargo. O referendo do último dia 10 de agosto confirmou a força política do governo, mesmo em um país que parece dividido ao meio.
Um pleito que tem como origem um erro da oposição que, ao avaliar que daria uma cartada final no governo, tirou da gaveta o projeto e conseguiu a rápida aprovação no Senado. Mas Evo Morales não vetou a idéia, como esperava o partido Podemos, e saiu fortalecido do processo. A atitude da oposição prejudicou inclusive seus próprios governadores. Dois tiveram seus mandatos revogados, o de La Paz, José Luis Paredes, com 64,52% da votação, e o de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, por 64,81%, que acabou se afastando do cargo.
Segundo o professor Eric Torrico, da Universidade Andina Simon Bolívar, não fosse o equívoco estratégico da oposição, o governo de Evo Morales poderia estar em situação crítica. “Os senadores da oposição aprovam de maneira inexplicável a lei e crêem que com isso vão dar a estocada final. Agora, a oposição teria força para passar tudo no Congresso e, com a pressão das ruas, até mesmo a renúncia do presidente”.
Os opositores do presidente sequer podem comemorar a vitória do “não” a Evo Morales em quatro departamentos do país, já que, para o analista Ricardo Paz, isso não representou nenhuma alteração substancial no cenário. “A revogatória não se dá por departamentos, mas em nível nacional. Os de Santa Cruz podem dizer: ‘aqui, foi revogado, Evo não é mais o presidente’. Mas isso não vai mudar nada. O presidente já não pode chegar a vários lugares e vai seguir assim.” De fato, tem se tornado cada vez mais corriqueiro o cancelamento de compromissos oficiais do presidente dentro da Bolívia, como aconteceu no início de agosto em Tarija, onde Evo Morales teria um encontro com Hugo Chávez e Cristina Kirchner.
Essa situação de cerceamento a Evo dentro de seu próprio país beira o absurdo, de acordo com o ex-presidente Carlos Mesa (2003-05). “Isso mostra uma ruptura muito grave com a lei. O presidente tem respaldo superior a 50%, tem mobilização social, não corre riscos. A pergunta não é se Evo Morales pode ou não terminar o mandato. É como recuperamos Estado, lei, instituições. E isso não passa pelo governo de Evo Morales, é uma crise de Estado.”
Muitos analistas concordam que o processo político do país hoje enseja o nascimento de um novo Estado, uma vez que o próprio governo federal admite a necessidade de se dar espaço às autonomias estaduais. Ricardo Paz considera que Evo Morales foi incapaz de entender uma mensagem que recebeu durante as eleições de 2005. “O povo boliviano deu a ele uma vitória tão grande para que trabalhasse pela unidade do país.”

Movimento autonomista, separatista ou racista?
Nas televisões bolivianas, dia sim, outro também, aparece em entrevistas exclusivas o presidente do Comitê Cívico Pró-Santa Cruz, Branko Marinkovic, afirmando que Evo Morales é “racista” por não governar para todo o país. Na verdade, há quem aponte justamente o contrário, ou seja, que no fundo da discussão autonômica haja um viés preconceituoso dos que não aceitam ter um indígena como presidente. Para o diretor da Agência Boliviana de Informação, Grover Cardoso, há “sintomas concretos de manifestações de uma mentalidade colonial que nunca se pôde superar. O que fez o atual processo político foi tornar mais visível a divisão interna. Os setores brancos nunca viram os demais como atores políticos, no máximo como coadjuvantes”.
A impressão de Cardoso a respeito de setores excluídos do processo decisório é partilhada por muitos nas ruas de La Paz. O comerciante Godofredo Rojas aponta que os processos autonômicos são puxados “por milionários bancados pelas instituições. Em parte, Evo Morales liberou o país porque estávamos subordinados aos ricos, que agora querem derrubar o governo”. O técnico em estradas Moisés Plaza complementa: “são os últimos golpes da direita comandada pelos Estados Unidos. Eles não aceitam perder riquezas, não querem perder terras que receberam gratuitamente”.
Carlos Cordero, professor de Ciências Políticas da Universidade Mayor San Andrés, analisa que, realmente, o departamento de Santa Cruz cria mais tensões com o governo Evo Morales do que fazia com as gestões anteriores. E aponta que isso acontece, em parte, porque agora os crucenhos têm pela frente um Estado mais presente. “Como o governo conseguiu aumentar o preço do gás vendido a Brasil e Argentina, ganhou capacidade de investimento. Somos um Estado que concentra hoje em dia muito mais riqueza. Ainda é fraco, desmantelado, mas é um Estado que está sendo construído pouco a pouco.” Para Ricardo Paz, não há possibilidade de que as autonomias se imponham. “As regiões têm a limitação dos recursos, das forças armadas. Eles estão amarrados a uma declaração lírica de que são autônomos. Em algum momento, vão se dar conta de que a única possibilidade de sobrevivência é pactuar.”
No mesmo sentido, a analista Jimena Costa acredita que não há por que pensar que Santa Cruz queira ser independente de fato, o que descartaria um cenário apregoado pelos mais pessimistas, a possibilidade de uma guerra civil no país. “Para isso, teríamos que contar com dois lados mais ou menos coerentes, e não é assim. Vão acontecer enfrentamentos isolados, que surgem de uma maneira muito hormonal e inesperada”, acredita. Nessa conjuntura, o equilíbrio entre o fortalecimento do Estado e as autonomias emergentes seria o grande desafio a ser trilhado. “Estamos aprendendo as lições dessa convivência, o que não é fácil. É uma transformação profunda do Estado, passando da centralização para a autonomia. Estamos construindo nosso próprio caminho de modernização”, garante Carlos Cordero.
Para chegar a esse equilíbrio entre interesses divergentes, uma possível saída seria apelar para uma mediação internacional. O professor de Ciências Políticas Jorge Lazarte defende a presença da ONU nas conversas entre oposição e governo. “Essa é uma possibilidade que até o momento não se pensou a sério na Bolívia. O importante é que todas as partes trabalhem formas de aproximação que permitam que nenhum dos lados sinta que está se rendendo ao outro, mas que está cedendo a alguém que permita salvar a própria imagem”, avalia.
Para chegar a esse equilíbrio entre interesses divergentes, uma possível saída seria apelar para uma mediação internacional. O professor de Ciências Políticas Jorge Lazarte defende a presença da ONU nas conversas entre oposição e governo. “Essa é uma possibilidade que até o momento não se pensou a sério na Bolívia. O importante é que todas as partes trabalhem formas de aproximação que permitam que nenhum dos lados sinta que está se rendendo ao outro, mas que está cedendo a alguém que permita salvar a própria imagem”, avalia.

Depois do referendo, mais duas votações Evo Morales deve convocar em breve mais dois referendos, ambos sobre a Constituição. No primeiro, a população vai decidir sobre questões ligadas à propriedade da terra; no segundo, sobre o texto constitucional como um todo.
Mas, para isso, será preciso chegar a um consenso com a oposição. As autonomias previstas constitucionalmente até aqui são cinco, todas se sobrepondo, se anulando e se inviabilizando. Além disso, é preciso resolver todos os pontos sobre a inclusão indígena. E o único ponto em comum até agora é que nenhum dos dois temas pode ficar fora da nova Carta Magna. Eric Torrico aposta que o melhor seria dar início a um novo texto com a convocação de uma Assembléia Constituinte, mas admite que “não se sabe quanta confiança a população vai ter em um exercício desta natureza” devido ao fracasso da legislatura anterior.
Mais uma vez, a disputa pelo voto popular promete um imbróglio jurídico. O Tribunal Constitucional dificilmente estará funcionando até a data das novas votações. O advogado Carlos Alarcon explica que “nem ao governo, nem à oposição interessa recompor o Tribunal neste momento. Isso tem a ver com o novo pacto social em torno da nova Carta”.
A situação política é instável e, no fim de agosto, os oposicionistas de três das nove regiões do país chegaram a bloquear estradas que cruzavam áreas petrolíferas, exigindo que o governo voltasse atrás na decisão de redirecionar repasses da receita obtida com a exploração de hidrocarbonetos para financiar um programa de auxílio a idosos. Por outro lado, Evo tenta ampliar o diálogo com outros setores, para buscar uma possível mediação no conflito com a oposição. “No último 6 de Agosto [Dia da Independência], Evo foi assistir à missa. Ele sempre teve uma relação conflituosa com a Igreja, mas foi lá ouvir o padre. É um sinal de moderação. Mas ainda falta ao presidente dar um passo mais concreto, reconhecer um pouco os erros que comete”, avalia Cordero.
Na prática, à época das eleições Evo já havia sinalizado um futuro entendimento quando escolheu como vice-presidente Álvaro Garcia Linera, estabelecendo uma relação completamente nova para os padrões da democracia boliviana. “Hoje, mais do que um homem no banco de reservas, o vice é alguém que também governa, um complemento de Evo Morales. Todos os futuros governos vão buscar mais apoio dos vices, vão buscar gente que realmente os ajude, superando uma lógica caudilhista”, analisa Cordero, que lembra que, num passado não muito distante, alguns vices foram vistos como uma ameaça pelos titulares.
Além disso, Linera é um fator de aproximação do governo com as classes médias e o meio acadêmico. Formado pela Universidade Autônoma do México e autodidata em Ciências Sociais, o vice adotou o discurso da mudança indigenista e não poupa ataques à oposição, classificada por ele de fascista. Recentemente, Linera evocou a história de Tupac Katari, um indígena esquartejado depois de um cerco a La Paz no século XVIII. Às vésperas do referendo, o vice-presidente afirmou que “hoje, depois de fortes batalhas, o corpo de Katari, debaixo da terra, junta-se a nós e levanta-se para dirigir a emancipação do povo”.
Por conta desse e de outros fatores, Cordero destaca que o presidente é hoje o grande defensor da democracia na Bolívia. “Há três anos, chamar Evo Morales de democrata seria o pior dos insultos. Mas, então, ele venceu pelo voto e tudo mudou.” O professor lembra que é perfeitamente possível a convivência entre democracia e socialismo prevista por Evo Morales. “Estamos nesta transição histórica de um Estado que está buscando uma modernização. Temos um presidente e um projeto político que fizeram coisas boas no âmbito social. É um governo que tenta levar adiante políticas de mudança e nisso encontra resistência e bloqueios.”
Nas ruas, as mudanças promovidas pelo presidente encontram respaldo. A comerciante Ledia Yucra aponta que Evo Morales “é a voz dos pobres. Antes, governavam do palácio, empregavam todos os parentes, eram corruptos”. No mesmo sentido, o estudante Rudi Conde destaca que a diferença é que, agora, “o presidente está fazendo o boliviano ter valor, ter amor à pátria. Antes, falávamos da Bolívia apenas como um país corrupto”. A dona de casa Luísa Torres apóia a nacionalização de alguns setores, afirmando que isso possibilita a retomada de “certas coisas que outros presidentes nos haviam alienado”. O apoio popular e de movimentos sociais garante hoje o presidente no comando do país, mas para consolidar o Estado e suas conquistas ele precisará de muita habilidade política. E muito diálogo.

O lado bom e o ruim da relação com Chávez
Helicópteros emprestados, investimentos de peso, cheques entregues diretamente pelo embaixador da Venezuela. A amizade entre Hugo Chávez e Evo Morales é profunda e incomoda a muita gente na Bolívia, especialmente pelas declarações voltadas a uma transformação radical.
Para a analista Jimena Costa, o que o presidente não compreendeu é que “foi eleito para uma mudança, e não para o socialismo. A maioria entendia ser necessário superar as práticas do passado, como o abuso de poder. Há uma distância entre aquele que ganhou a eleição e o presidente hoje”.
Carlos Cordero discorda e acredita que as críticas são apenas parte do processo eleitoral. Ele lembra que Evo Morales reivindicou para si o título de antiimperialista, de exterminador do neoliberalismo na Bolívia e, para tanto, era preciso também mudar de amizades. “Substituiu o dinheiro dos Estados Unidos pelo venezuelano e, com isso, o governo tem mais liberdade para investir essa verba. O cidadão boliviano tem uma atitude pragmática: não importa de onde vem o dinheiro, o que importa é resolver a situação de pobreza”, destaca. O ex-presidente Carlos Mesa avalia que não é possível fazer ressalvas no plano ideológico e que é perfeitamente natural que Evo Morales busque a aliança com a Venezuela. “O que tenho que criticar é que essa relação se converta em dependência. É indigno que a Bolívia dependa da Venezuela, como era indigno que dependesse dos Estados Unidos.”
Dentro desse cenário, alguns analisam que o Brasil poderia ter um peso maior nas relações exteriores da Bolívia. “O presidente Lula, que poderia ser um equilíbrio para a influência de Chávez, tem uma atitude mais contemplativa. Lula tem um peso muito maior que Chávez, é líder do país mais desenvolvido da América do Sul. Fico com a impressão de que o presidente está muito mal informado sobre a realidade boliviana”, reflete Ricardo Paz. Carlos Mesa discorda e acredita que o mandatário brasileiro sabe lidar bem com a situação. “O presidente Lula leva as coisas com equilíbrio e, em termos de custo-benefício, o Brasil foi inteligente com a Bolívia.” F